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A ascensão e queda dos Al-Assad na Síria

João Carlos Barradas
João Carlos Barradas 09 de dezembro de 2024 às 19:14
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Herdeiro do poder conquistado pelo pai, Hafez al-Assad, em 1970, Bashar não conseguiu sobreviver a uma guerra civil que se prolongava desde 2011. Fugido do país, será para a minoria alauita, a que pertence, que os rebeldes sírios se vão voltar.

A derrocada do regime liderado por Bashar al-Assad marca a entrada da guerra civil síria numa nova fase e põe termo ao domínio de uma minoria étnico-religioso desprezada e temida pela maior parte da população. 

Reuters

A minoria alauita era o fulcro do poder desde que Hafez al-Assad, figura maior do nacionalismo promovido pelas estruturas militares herdadas do período de domínio francês, se impôs como homem-forte em Damasco em 1970. O capitão da força aérea participou no golpe de estado de 1963, em que o Partido Baath – Renascimento, um movimento pan-arabista de orientação socialista fortemente influenciado por intelectuais cristãos libaneses – tomou o poder em Damasco.  

Três anos mais tarde al-Assad, bem como outros oficiais alauitas, conseguiram impor-se nas lutas de poder no seio do Baath que, assumindo uma estratégia marcadamente nacionalista, rompeu as parcerias políticas com as demais secções do partido nos estados vizinhos. Data de 1966 a rutura entre o Baath sírio e o Baath iraquiano que, após a revolução iraniana de 1979, levaria Damasco e Bagdade a formarem alianças divergentes no Médio Oriente ainda que partilhassem, por exemplo, o apoio de Moscovo com outros rivais como o Egito de Gamal Nasser ou a Líbia de Muammar Gadaffi.  

A derrota árabe na Guerra dos Seis Dias, em 1967, em que a Síria perdeu os Montes Golã, acentuou divergências nas chefias de Damasco. 

Assad, responsável pelas forças armadas, assumiu o confronto com o líder do partido, Salah Jadid, outro alauita, e quando, em setembro de 1970, a Organização para a Libertação da Palestina, liderada pela al Fatah de Yasser Arafat entra em conflito com o reino Hussein da Jordânia, surge uma oportunidade. Opondo-se a uma intervenção na Jordânia contra o monarca haxemita, Assad derruba Jadid em novembro e, a partir de então, inicia um processo de consolidação no poder assente nas lealdades do seu clã e dos Kalbiyya, uma das quatro tribos alauitas.

Os franceses, após se apoderarem dos domínios otomanos no Levante no final da Grande Guerra tinham promovido nos seus mandatos concedidos pela Sociedade das Nações minorias étnicos-religiosas dividindo oposições nacionalistas e formando núcleos de lealistas nas forças armadas e de segurança. Os maronitas no Líbano, independente a partir de 1943, e os alauítas na Síria, independente desde 1946, foram particularmente favorecidos. 

Para al-Assad a lealdade dos vínculos tribais prevalecia, mas apoiar-se apenas na província de Laquatia, na costa do Mediterrâneo, reduto dos alauitas – variante esotérica e heterodoxa do xiismo, com reconhecimento de Ali, primo e genro do profeta Maomé, como divindade e crença na transmigração das almas – seria sempre insuficiente. Representando menos de 10% da população, os alauitas eram inclusivamente considerados pelos demais árabes, maioritariamente sunitas e representando 70% dos sírios, como heréticos.  

Al-Assad conseguiu gradualmente alargar os apoios do sistema ditatorial controlado pelos alauitas, caso único de domínio de uma minoria não sunita ou xiita no mundo árabe, graças ao assentimento da oligarquia de negócios sunita, em particular das tribos Hadidyn, Shammar e Tay e de outras minorias, como cristãos, turcomenos e druzos. 

O aliciamento dos curdos revelou-se mais difícil, mas, uma vez presidente, al-Assad foi capaz de esmagar a rebelião dos Irmãos Muçulmanos, entre 1979 e 1982, que culminou no massacre de mais de uma dezena de milhar de opositores na cidade de Hama.

A novo fracasso na guerra contra Israel, em 1973, seguiu-se a intervenção na guerra civil do Líbano iniciada dois anos mais tarde, com a entrada de tropas sírias no país em 1976. Damasco, num emaranhado de alianças em que predominaram xiitas e druzos, manteve-se como potência tutelar até 2000, firmando no Líbano o vínculo com o Irão nos confrontos com o Iraque e islamistas sunitas.

A difícil sucessão

Garantir respeito pela linha de sucessão foi uma questão difícil para al-Assad. O irmão mais novo, Rifaat, tentou derrubá-lo em 1984, fracassou e exilou-se em França. O herdeiro designado, o filho mais velho, Bassel, morreu num desastre de automóvel em 1994 e acabou por ser Bashar, o seguinte na linha de sucessão, a assumir o poder em junho de 2000 pela morte do pai.

Nascido em 1965, Bashar era oftalmologista, vivia em Londres, mas o pai chamou-o de volta quando Bassel morreu. O oftalmologista cursou rapidamente a academia militar, foi fiel aos pergaminhos familiares e tomou a cargo a tutela do Líbano. O casamento, em dezembro de 2000 com Asma Akhras, uma sunita, nascida e criada em Londres, com carreira na banca internacional, proporcionou boas e acríticas parangonas acerca de alegados novos ventos de liberalização na Síria.

O controlo político e as redes de patrocínio mantiveram-se inalteradas, o terrorismo persistiu como arma do estado, patente no assassinato do antigo primeiro-ministro do Líbano, o sunita Rafik al Hariri, em Beirute, em fevereiro de 2005, atentado que acabou por incentivar uma revolta que obrigou al-Assad a retirar as tropas sírias do país em abril.  

A aliança, via Irão, com os xiitas do crescentemente influente movimento Hezbollah proporcionou, porém, a manutenção de uma influência incontornável no país que compensava a paz que Damasco tinha de manter com Israel, os diferendos com o Iraque e uma difícil relação com a Turquia.  

O regime que Hafez al-Assad consolidara a partir de 1970 e legara 30 anos depois a Bashar acabara, depois de muitas convulsões - da intervenção militar no Líbano entre 1976 e 2005, às frentes de rejeição anti-Israel, passando pelo confronto com Saddam Hussein ou a cooperação nuclear militar clandestina com Teerão -, por tornar-se numa ditadura de conveniência para a maioria dos atores políticos, mas em 2011 as alianças étnicas e tribais romperam-se. 

A guerra civil, potenciada pelos conflitos do Iraque desde a queda de Saddam Hussein em 2003, pôs em causa o sistema de patrocínio imposto pelos alauitas e a maioria sunita arrebatada pela militância islamista digladiou-se em conflitos internos, combatendo, ainda, curdos, druzos, turcomenos e cristãos. 

O recurso a gás sarin pelas forças de al-Assad contra rebeldes sunitas nos arredores de Damasco em agosto de 2013 foi um dos pontos de viragem da guerra. O presidente norte-americano de então, Barack Obama, ao não cumprir a ameaça de intervenção se fossem usadas armas químicas abriu caminho a uma mediação russa. Dois anos mais tarde, Vladimir Putin enviava forças regulares, armamentos e as milícias do Grupo Wagner para sustentar, com apoio iraniano, Bashar e a guerra civil passou a uma fase de consolidação de posições. 

Firme em Lataquia, al-Assad passou a controlar as principais cidades, cedendo parte do Noroeste a islamistas, bem como o Nordeste, enquanto curdos e sunitas se acantonavam em posições no Norte, ora em conflito, ora em conivência com Ancara. A Liga Árabe que suspendera Bashar em 2011 reconheceu a precária repartição de facto da Síria acolhendo o presidente sírio de volta às cimeiras em maio de 2023.

Vassalo de Moscovo, Bashar acabou por ser uma das vítimas do Hamas e de Volodymyr Zelensky. 

A retaliação israelita ao ataque terrorista de outubro de 2023 não poupou também o Hezbollah, deixou Teerão numa posição delicada, receoso de bombardeamentos de Israel e dos Estados Unidos a pretexto do seu programa militar nuclear e incapaz de prover assistência militar quando os islamistas sunitas da Hayat Tahrir Al Sham, Organização para a Libertação do Levante, desencadearam uma ofensiva sobre Aleppo, com apoio da Turquia, a partir da província norte de Idlib.

Putin, atolado na Ucrânia, mesmo com o risco de perder a base naval russa em Tartus, deixando de momento as suas unidades, sem pontos de apoio no Mediterrâneo, e a base aérea de Hmeimim, fechou-se em copas e não ofereceu nem ajuda militar, nem mediação política. 

Bashar al-Assad deixou de contar e os alauitas vão arcar com a vingança que os cerca.  

Os movimentos de refugiados sírios, cerca de 7,2 milhões com 3,3 milhões concentrados na Turquia e outros 2,3 milhões na Jordânia, Líbano, Iraque e Egito, são a partir de agora um dos fatores essenciais do conflito, com a Áustria e iniciar desde já deportações a pretexto da queda da ditadura em Damasco. 

Num país arruinado, onde 90% dos 24,6 milhões de habitantes, entre eles sete milhões de desalojados, subsistem abaixo do nível de pobreza, finda a dinastia al-Assad desenrola-se desde já outra guerra.

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