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Nuno Cunha Rolo
Nuno Cunha Rolo Jurista
14 de dezembro de 2025 às 08:31

Por que a inovação, e o país, precisa de burocracia

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Edição de 9 a 15 de dezembro

Os governos devem instituir burocracias de inovação, constelações de organizações públicas que criam, fazem, financiam, intermedeiam e regulam inovação, suportando a estabilidade ágil do Estado empreendedor.

“Sempre temos duas tarefas a fazer ao mesmo tempo. Por um lado, tentamos o tempo todo saltar para o próximo nível, para promover o estado digital. Mas esse avanço deve ser acompanhado da garantia do que já temos. Não podemos simplesmente dar saltos de inovação. Mas também não podemos nos concentrar apenas em manter o básico em ordem, mesmo que os recursos sejam escassos porque as pessoas esperam por mudanças. Precisamos lidar com dois desafios ao mesmo tempo.”

Siim Sikkut, considerado um dos pais do Governo Digital da Estónia,

Ex-“Chief Information Officer” do Governo da Estónia

 

Neste artigo, como prometido no anterior, escrevo sobre o conceito de “estagilidade” (tradução minha de “stagility”) na burocracia. A burocracia, aqui entendida, representa o setor público (grosso modo, Estado, administrações e empresas públicas) e respetivos meios de garantia de direitos e deveres dos atores de todos os setores, incluindo os setores privado e social.

A estagilidade no setor público é mais adequadamente designada por “estabilidade ágil”, seguindo a formulação proposta na obra “Como Construir um Estado Empreendedor – Por que a inovação precisa de burocracia”, de Rainer Kattel, Wolfgang Drechsler e Erkki Karo, publicada em 2022 pela Yale University Press.

A tese do livro é simples: a inovação depende de burocracias fortes, estáveis e capacitadas. Estados verdadeiramente empreendedores são aqueles que conseguem, em simultâneo, desencadear inovação (e a riqueza associada) e manter estabilidade sociopolítica. E não é de agora. As sociedades industriais, pós-industriais e inovadoras não nasceram de Estados reduzidos, “leves” ou mínimos, nem eficientes. Nasceram de burocracias robustas, profissionalizadas, estrategicamente ancoradas, com capacidade de combinar capacidades de longo-prazo (regras, rotinas, infraestruturas, profissionalização, previsibilidade) com capacidades dinâmicas (experimentação, adaptação rápida, resposta a crises), ou seja, da “estabilidade ágil”.

Teoricamente, a obra inscreve-se nos modelos de Estado Neoweberiano (para saber mais, ver o meu livro aqui) ? arquitetado pelos eminentes Christopher Pollitt e Geert Bouckaert e trabalhado pelo académico alemão Wolfgang Drechsler ?, e do Estado Empreendedor, formulado por Mariana Mazzucato (University College London, UCL), fundadora do Instituto de Inovação e Propósito Público, da UCL.

Numa palavra, o Estado Neoweberiano representa um modelo híbrido compreendendo a burocracia weberiana (que sustenta que a mudança ou inovação oscila entre a autoridade carismática e a racional-legal, entre redes carismáticas, que conferem dinamismo e agilidade, e organizações de especialistas, que garantem legalidade, estabilidade, previsibilidade) e a administração “prestativa” e “participativa”, focada ou serviço público focado no cidadão e no envolvimento destes na conceção e prestação de serviços públicos, numa missão comum. Cresceu desde o início do século XX como alternativa europeia ao modelo Nova Gestão Pública (NGP, saber mais, idem, aqui) e referencial de modernização sem perda da capacidade do Estado. 

No domínio das políticas de inovação, as agências neoweberianas trabalham com capacidades, metas e marcos de longo prazo (por exemplo, metas climáticas com foco em 2050), sendo instrumentos alinhados com regulações e políticas “inovadoras” e societais, assentes na lógica de “missão”. As missões destas agências devem ser de tripla ordem: voltadas para o investimento, focadas na conformação (normativa) de mercado e na mudança ou transformação de sistemas, com vista a mudar de paradigma: do “crescimento” (NGP) para o da “sustentabilidade”, da eficiência das políticas públicas (NGP) para a formação de mercados e parcerias para uma causa comum, das soluções tecnológicas (NGP) para a resolução de problemas complexos e superação de desafios socioeconómicos.

Daí a integração e enfase, na sua gestão e funcionamento interno, em métodos e ferramentas analíticas novas e digitais, como, por exemplo, design estratégico, economia da complexidade, ciência de dados e de previsão, laboratórios de políticas, experimentação e pensamento crítico.

O modelo de Estado Empreendedor, enraizado na filosofia económica keynesiana (o Estado deve intervir ativamente para estabilizar, transformar e sustentar a economia e sociedade, pois, os mercados não se autoequilibram de forma fiável) e schumpeteriana (a inovação é o motor de transformações estruturais, distinguindo estados empreendedores de estados rentistas), defende que o Estado cria e molda mercados, assume riscos e investimentos empreendedores e lidera missões e transformações de inovação, não o reduzindo a um interventor regulador, distribuidor e reparador das falhas de mercado.

O marco deste modelo é a obra “O Estado Empreendedor - Desmistificando os mitos sobre o setor público versus o setor privado”, da própria Mariana, publicado em 2001, pela Penguin Press. Uma obra que deveria ser lida por todos os amantes da tecnologia e inovação, pois, assaz desmistifica os setores público e privado. Por exemplo, ela demonstra empiricamente que grandes inovações (como a internet, GPS, écrans táteis, smartphones, biotecnologia, energias limpas, assistentes virtuais como o SIRI, etc.) não teriam sido possíveis sem a maciça intervenção, liderança e investimento – de risco - do Estado e seus cientistas e especialistas.

Resumindo, e voltando ao livro de Rattel, Drechsler e Karo e conceito de estabilidade ágil, estes exploram 5 argumentos principais:

1) Não existe dilema entre estabilidade e agilidade, é uma falsa dicotomia, o que importa é, antes, a combinação entre ambas.

2) Agilidade sem estabilidade destrói capacidades, como demonstraram as reformas e políticas sob o jugo do modelo NGP.

3) O objeto de análise e ação política/pública não é a criação ou reforma de um organismo isolado, mas a constelação institucional de organizações públicas tendentes à área de missão em comum. Importa mais “como organizar” do que “o que fazer”.

4) A história da inovação pública é a história da estabilidade ágil, desde a Revolução Industrial e, sobretudo, do pós-Segunda Guerra Mundial, à atualidade.

5) O sucesso das burocracias depende da “estabilidade ágil”, ou seja, no equilíbrio entre capacidades de longo prazo e capacidades dinâmicas reticulares e presentes.

Segundo os autores, a pandemia COVID-19 mostrou que a estabilidade ágil deveria fazer parte do “DNA” de todas as organizações públicas. As capacidades de longo prazo (coordenação de parcerias público-privadas em grande escala, infraestruturas, pessoal, sistemas digitais) são simultaneamente os blocos de construção de respostas ágeis a crises e de inovações políticas ousadas. Além disso, demonstrou que a estabilidade ágil pode ser uma questão de vida ou morte.

A tríade de autores apresenta, ainda, neste domínio dois novos termos ou conceitos críticos: “missão mística” (mission mystique) e “hackeamento burocrático” (bureaucracy hacking). O primeiro consiste na crença partilhada e robusta na missão da organização, que reforça compromisso interno e legitimação externa das burocracias de inovação. O segundo consiste em estratégias (ora externas, ora internas) que exploram, contornam ou reconfiguram regras e rotinas burocráticas para permitir que novas funções e inovações emerjam e, posteriormente, sejam rotinizadas nas estruturas existentes.

Concluindo, o mantra da tese do livro de Rattel, Drechsler e Karo é claro, embora contraintuitivo: a inovação exige capacidade burocrática, não a sua eliminação. E para ser capaz, a burocracia tem de ser simultaneamente estável e ágil. Uma burocracia criativa.

Os governos devem instituir burocracias de inovação, constelações de organizações públicas que criam, fazem, financiam, intermedeiam e regulam inovação, suportando a estabilidade ágil do Estado empreendedor.

E as crises são oportunidades de redesenho institucional. Como a Covid-19 mostrou, onde havia capacidades de longo prazo, foi possível respostas mais ágeis; onde estas estavam erodidas ou desmanteladas, as respostas falharam.

Para políticos e decisores, a lição parece ser, também, clara: estabilidade e agilidade, resiliência e inovação, caminham juntas e devem ser incorporadas na arquitetura das burocracias, ou seja, nas reformas e gestão de governos e administradores, para assim estarem preparadas para a próxima, e certa, grande crise.

A estagilidade ou a estabilidade ágil tem, pois, o potencial de contribuir, tanto no setor privado quanto no setor público, para a abertura e aliança de todos os atores juntarem esforços nas suas áreas de domínio (governos, entidades públicas, academias, empresas) e criarem espaços e infraestruturas de diálogo e parceria para projetos, respostas e eventos comuns.

Em Portugal, são ainda poucos, avulsos ou desconhecidos os casos da sobredita união, valoração e criação de valor público (bem comum) sob a estagilidade, o que pode constituir razão de atraso cultural, profissional, económico-social e ético do país, para não falar do risco de promoção do preconceito individual, radicalismo grupal e particularismo e opacidade institucional.

A burocracia está, e bem, na ordem do dia e carece, sem dúvida, de ser reformada, mas sem preconceito, radicalismo e particularismo. Caso contrário, a reforma mais urgente, e difícil, do país é a dos próprios reformadores.

 

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