Como enfrentou os anos negros da troika (2011-2014)?
Quando Passos Coelho disse aos portugueses para serem criativos e emigrarem, os meus filhos foram para Londres e eu fui para os Estados Unidos. Tinha uma proposta giríssima de Scott Gilbert, pai da Biologia do Desenvolvimento, de quem sou amiga. Ele queria escrever um livro sobre as técnicas de reprodução assistida no humano, sendo que na maior parte dos casos não funcionam. Queria que essa parte fosse feita por mim, porque já me tinha ouvido em várias conferências. Esse livro [Fear, Wonder, And Science - In The New Age Of Reproductive Biotechnology, editado em 2017 pela Columbia University Press, e traduzido por medo, admiração e ciência - na nova era da biotecnologia reprodutiva] foi um grande sucesso nos Estados Unidos. Foi traduzido para japonês, mas Portugal varreu-o para debaixo do tapete.
Porque é que o livro passou despercebido em Portugal?
Acho que as pessoas tinham raiva, inveja, vontade que me caísse um raio em cima. Porque eu era um bocado demais, escrevia livros, era jornalista, depois ia para a América. Nada me atrapalhava.
Nessa altura, fez uma série de palestras sobre o livro, com Scott Gilbert, em universidades japonesas. Como correram?
Estavam pessoas não só do Japão, mas também de Hong Kong e Taiwan: chefes de departamento, catedráticos. Trataram-nos como realeza. Cheguei lá e nem queria acreditar que nos tinham arranjado um hotel no centro de Tóquio, tinha quartos grandes e uma vista linda sobre a cidade. No último dia, disseram-me que o Scott não iria lá estar. Porque elas queriam fazer um seminário só comigo. Levaram-me para uma sala, fecharam a porta e as mulheres sentaram-se à volta da mesa, queriam que eu falasse da minha experiência pessoal. Eu disse: "Está bem, conto a minha história. Mas não vamos fazer disto uma catarse." Acabou com toda a gente a chorar, menos eu. A senhora da tradução simultânea disse-me: "Fiz dez tentativas, depois o meu marido divorciou-se. Casou-se com uma rapariga mais nova, teve logo um filho." Meteu-se num táxi e desapareceu.
Tentei quatro vezes [engravidar]. Agora eles [filhos adotivos] têm 31 e 32 anos. Estão em Londres"
Tentou engravidar durante muito tempo?
Tentei quatro vezes, de seguida. Até que desisti, tive uma depressão. Deduzo que todas nós passámos por coisas muito parecidas. Criei uma linha SOS depois dos meus quatro falhanços. Eu e uma amiga psicóloga distribuímos panfletos em clínicas de fertilização com o número da linha de apoio que criámos, na altura era a única forma. Vi tantas mulheres sofrerem, achei que era uma boa ideia a gente reunir-se uma vez por semana em minha casa, quando estava em Portugal. As pessoas responderam avidamente. Toda a gente levava petiscos, era a noite inteira à conversa. Também experimentei criar um husband happy hour, depois arrependi-me e acabei com aquilo. Era para os maridos, não se calavam e embebedavam-se. E diziam que as mulheres não os compreendiam. Íamos para o Procópio.
Adotou dois rapazes, tinham que idades?
Seis e sete anos, portugueses. Eu tinha quase 40 anos, estava casada com o Dick. Ao fim daqueles anos todos, entraram dois miúdos pela casa a dizerem: "Mãe, mãe, mãe!" Puseram-nos em nossa casa em três semanas, porque vinham de uma família problemática. Eram tão magrinhos, assim que os adotámos, fomos passar um mês para um monte alentejano. Quando voltámos de lá, eles estavam maiores, mais altos, mais confiantes. No dia seguinte, metemo-nos no avião para os Estados Unidos. Agora eles têm 31 e 32 anos e eu tenho seis netos: as mais velhas já são adolescentes e o mais novo ainda não fez 1 ano. Estão todos em Londres.
Foi casada três vezes: primeiro com António Mega Ferreira, depois com um académico norte-americano (Dick) e a seguir com o fotógrafo Pedro Palma. É romântica?
O amor é a força motriz da vida e está a perder-se. O Dick, pai dos meus filhos, é um homem maravilhoso com quem ainda hoje me dou lindamente. Casámos em Las Vegas, na capela Candlelight Wedding Chapel, onde se casou Bette Midler e mais umas quantas pessoas. Eu tinha 34 anos, em 1994. Fomos os dois de camisa branca, jeans e botas de cowboy. As minhas botas eram de pele de cobra.
Casámos em Las Vegas. Fomos os dois de camisa branca, jeans e botas de cowboy. As minhas botas eram de pele de cobra"
Tentaram salvar o casamento com terapia de casal?
Por acaso fizemos, mas à terceira consulta achámos aquilo tão divertido que entrámos a rir. O terapeuta declarou-nos curados. Desatámos a fazer apostas pelo caminho do consultório [em Lisboa]. O Dick começou a dizer: "Hoje é um jogo em que tenho de fazer o pino e tu tens de me agarrar enquanto vou cair." O terapeuta punha-nos a fazer uns jogos com cadeiras, nas posições em que achávamos estar em relação ao outro. Acabou ali. O nosso casamento ainda durou uma data de tempo.
Porque é que nunca comprou casa?
Comprei a que o Dick gostava, mas para mim era uma casa odiosa, na Parede. O Dick ficou com tudo o que estava na América, eu fiquei com um casarão, por pagar. Foi entregue à Caixa Geral de Depósitos, a quem tinha pedido dinheiro. Tive que me apresentar à insolvência.
Passa a imagem de rebelde, mas faz cedências?
Sou sempre muito boazinha.
Tem a ver com a formação católica, por exemplo a que teve no colégio de São José de Cluny, em Angola?
Sim, sem dúvida. Tenho orgulho nisso. Vou à missa. Acho que se deve tratar bem as pessoas.
Vou à missa. Acho que se deve tratar bem as pessoas"
Foi para Angola em que fase?
Ainda bebé. Nasci na maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, prematura de sete meses. Estava coberta de eczema e o meu pai disse: "Ainda por cima é feia."
Faz ideia com que peso nasceu?
Não. Faço ideia do meu peso quando tive polio [poliomielite, doença infecciosa]: seis meses depois de ter nascido tinha 2,1 kg. As pessoas tinham medo de me pegar. A boca torta é por causa da polio. O Dick inventou uma expressão sobre o meu sorriso "de gato que acabou de engolir o canário."
Filha de médicos, com três irmãs (uma delas Margarida Pinto Correia, jornalista) e educada em colégios, foi-lhe difícil sair de casa?
Saí aos 17 anos para trabalhar em Trás-os-Montes, numa aldeia com telescola. Foi no ano propedêutico, as aulas eram na TV. Depois a pessoa habitua-se a estar fora de casa.
Tirou Biologia na Faculdade de Ciências de Lisboa e destacou-se na carreira académica. O jornalismo foi um acaso, por viver no mesmo prédio da redação d’O Jornal?
Perguntei [n’O Jornal] se não tinham trabalho para mim. Fui para estagiária, deram-me as centrais ao fim de dois meses. Depois convidaram-me para fazer coisas na rádio e na televisão. Em 1981, eu e o Cáceres [Monteiro, fundador da revista Visão] fomos ao Irão.
Essa viagem tornou-se lendária, como conseguiram lá entrar?
Salazar tinha feito um acordo com o Xá [da Pérsia] para os trabalhadores portugueses poderem entrar e sair do Irão sem precisarem de vistos, porque não causavam problemas e eram parecidos com os iranianos. Na confusão do 25 de Abril e da Revolução Religiosa no Irão, ninguém se tinha lembrado de eliminar esse acordo. Os portugueses podiam entrar, mas não como jornalistas. Nós fomos por terra, pelo rumo do Expresso Oriente, como turistas.