Sábado – Pense por si

Debate. Seguro e o Almirante no chiqueiro da pequena política

Num dos debates mais duros destas Presidenciais, os dois candidatos preferiram desqualificar o adversário a falar do País.

Dezasseis minutos. Novecentos e sessenta segundos. Mais coisa menos coisa, o tempo de um intervalo de um jogo de futebol. Foi preciso todo este tempo para que Henrique Gouveia Melo e António José Seguro decidissem dizer alguma coisa sobre o País, o lugar de Portugal no mundo ou o futuro. Até aí, entretiveram-se a degladiar-se à frente das câmeras.

Os candidatos presidenciais António José Seguro (esq.ª) e Henrique Gouveia e Melo (dir.ª) estiveram esta noite a debater
Os candidatos presidenciais António José Seguro (esq.ª) e Henrique Gouveia e Melo (dir.ª) estiveram esta noite a debater DR

Durante grande parte do tempo, viu-se o chiqueiro da “pequena política”. A expressão colocada entre aspas foi proferida a certo momento pelo Almirante e antigo Chefe do Estado-Maior da Armada. Curioso gesto, esse (e António José Seguro confrontou-o com isso) de acusar os adversários de “pequena política” enquanto se chafurda na lama, trazendo até os comentários de um Mário Soares hoje falecido, então à beira dos 90 anos, para tentar denegrir um adversário.

O arranque até parecia encaminhar o debate para um tom conciliatório. Na primeira intervenção, Seguro tentou puxar da “experiência política” para se fazer valer. Não o disse, talvez por elegância oratória, mas o subtexto era óbvio: do lado oposto da mesa, estava um candidato que considerava politicamente inexperiente. Aludiu aos cerca de “130 presidentes de câmara” que o apoiam. E insistiu num argumento que muito tem usado, o de que é preciso “equilibrar o sistema político”. Perante um Parlamento tão à direita, entende, “o campo político que eu represento” - esquerda é uma palavra de que sempre fugiu, nestes tempos ainda mais - deve estar representado na Presidência.

Henrique Gouveia e Melo não aproveitou a deixa, não notou que talvez seja “poucochinho”, para usar uma expressão que Seguro conhece bem (ouviu-a de António Costa), ser-se da área socialista para se ser eleito Presidente. Entrou de carrinho e a pés juntos: a Presidência, disse, “é liderança”, ele é um líder e o seu adversário - ao contrário de Seguro, não temeu a deselegância de o dizer diretamente - “não é um líder para os tempos modernos”. Mário Soares, lembrou, “disse-o há 11 anos” (em 2014, à beira dos 90 anos e três anos antes de falecer), não se deve confiar em Seguro. Ainda para mais, agora “vem tentar reciclar a sua carreira política”.

O chorrilho de ataques começou. Seguro, ao invés de fintar a lama e levar Gouveia e Melo para o terreno do debate de ideias, entrou no ringue de boxe. Lembrou a contenda jurídica entre o Almirante e (ilicitamente, ) por se recusarem a embarcar no Navio Mondego e disse-lhe: “A grande diferença entre nós é que eu não utilizo o poder para humilhar os meus subordinados, como o senhor fez na Madeira.”

É provável que a grande maioria dos telespectadores que assistiam ao debate não fizesse a mais pequena ideia da situação a que Seguro se referia, mas o socialista não se coibiu de pedir ao Almirante que lhe desse o exemplo de “algum dirigente militar que tenha feito o que o senhor fez”. Perante a ausência de resposta, atacou: “Não tem exemplo nenhum.  A forma como exerce poder em público é indigna, não o qualifica.”

Daqui em diante, os dois tentaram fazer valer-se de slogans e de pequenos ataques. Gouveia e Melo puxou do reconhecimento que a gestão do processo de vacinação contra a Covid-19 lhe trouxe para se proclamar “um profissional dos resultados” ao invés de “um profissional da política”. Seguro contrapôs que o Almirante “não vai para Belém dar ordem a partidos”, que votar em Gouveia e Melo “é uma aventura, um tiro no desconhecido” e Gouveia e Melo acusou o socialista de ser “um líder para a estagnação”, ouvindo em resposta que “só diz slogans vazios”.

Em mais uma escolha estratégica discutível, o Almirante canalizou uma voz interior da fação mais à esquerda do PS para afirmar que, aquando da Troika, Seguro não precisava de se abster para validar as escolhas orçamentais de Passos Coelho, prejudiciais ao País. Num momento em que a esquerda da esquerda vale tão pouco eleitoralmente, e em que o País está tão virado à direita, não será arriscado seduzir um eleitorado tão magro, que já divide votos entre outros quatro candidatos? Seguro, talvez não por acaso, disse que ouvira a mesma crítica de Catarina Martins (“se calhar tinha razão”, respondeu surpreendentemente o Almirante). E eis que, pouco depois, os dois começaram a falar do País.

De substantivo, inesperado ou divisivo, pouco disseram. Daí em diante, na Saúde, na Economia, na Justiça, o tom foi sobretudo conciliatório. Nem Seguro nem Gouveia e Melo arriscam a impopularidade. Um e outro não serão talvez os candidatos “nem-nem”, expressão que o Almirante tentou colar a Seguro, mas serão talvez os candidatos “mas”. Não é que sejam apoiados pelo Movimento Alternativa Socialista, é que ninguém os supera na tentativa de parecerem moderados: Gouveia e Melo é “mais liberal” na economia “mas temos de ter cuidado de não partir a coesão social”, Seguro vinca que “há imensos estudos” que mostram como pode a economia portuguesa ser mais competitiva mas ele também não está nesta corrida para os explicar. No final, os comentadores televisivos davam a vitória a Seguro. Privilégios de underdog?

O embaraço

Henrique Gouveia e Melo queria muito atacar António José Seguro, fosse da forma que fosse, e isso ficou visível em todo o debate. A dado momento, conseguiu dizer a seguinte frase: “O senhor representa uma fação do PS, nem sequer representa o PS todo.” As dúvidas estão por responder: há algum candidato que represente o PS todo? O “independente” Gouveia e Melo é esse candidato que representa o PS todo? E desde quando é que representar o PS todo é essencial para se ser Presidente da República (quanto mais um bom Presidente da República)?

KO:

Se os adversários o acusam de estar politicamente impreparado, e de não fazer ideia de como lidar com os movimentos das várias peças do xadrez político, Gouveia e Melo não se ajuda a si mesmo. Quando criticava Seguro por não ter votado contra um Orçamento do Estado de Passos Coelho, num País que entrara pouco antes em assistência financeira para pagar salários e pensões (depois do mandato de um antigo líder socialista, José Sócrates), o Almirante confrontava Seguro por ter viabilizado um “Orçamento do Estado com leis inconstitucionais”. Estava dado o flanco: “Está a ver como não sabe? O Orçamento do Estado não tem leis, o Orçamento do Estado é uma lei”. Recuo, reconhecimento do erro e tentativa de defesa: “Está outra vez a atacar com o pormenorzinho”. Talvez seja um "pormenorzinho". Para um candidato insistentemente acusado de inabilidade política, não foi bom.

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