Esta sexta-feira o Parlamento vai discutir o alargamento do prazo para recorrer a uma IVG e a regulamentação da objeção de consciência.
Raquel descobriu que estava grávida em 2022, com 33 anos e já com um filho decidiu que queria fazer uma interrupção voluntária da gravidez (IVG). Para isso, dirigiu-se à Maternidade Alfredo da Costa onde lhe disseram que tinha de marcar uma consulta no Hospital de Santa Maria, por ser este o hospital de referência da sua área de residência, mas onde foi logo avisada que "não podia ser obrigada a ir ao centro de saúde".
Ao chegar ao Santa Maria foi precisamente isso que tentaram fazer, mas referiu que sabia que não podia ser obrigada a ir ao centro de saúde e que queria marcar uma consulta naquele momento. "A administrativa perguntou-me quando é que tinha sido a minha última menstruação e depois de eu dizer que tinha sido há quatro semanas, mas que não tinha a certeza de quanto tempo estaria grávida, disse-me que ia ter de esperar mais quatro para ouvir o batimento cardíaco e que não me ia marcar a consulta", conta à SÁBADO. Foi preciso muita insistência para conseguir uma consulta para a semana seguinte, onde descobriu que estava grávida de cinco semanas e lhe foi novamente dito que precisava de esperar mais quatro para dar início ao processo porque havia a possibilidade de ter um aborto espontâneo.
Com o passar dos dias, os sintomas próprios da gravidez tornaram-se mais fortes e, devido à imposição de esperar por uma consulta depois das oito semanas e dos três dias de reflexão, só tomou a medicação abortiva às dez semanas, prolongando um processo já por si doloroso e que deseja que tivesse sido mais rápido.
Filipa teve uma história semelhante, apesar de numa realidade diferente. Descobriu que estava grávida em 2023, quando já era mãe e numa altura em que estava a sofrer de uma candidíase muito grave e por isso estava medicada, conta-nos isto não porque o tenha que fazer, por lei ninguém está autorizado a questionar uma mulher o que a leva a recorrer a uma IVG, mas para explicar que se encontrava em sofrimento. Depois de decidir que não queria continuar com a gravidez dirigiu-se ao centro de saúde e foi encaminhada para o hospital de Santarém, na altura estava apenas com quatro semanas e a resposta que teve foi a mesma dada a Raquel, tinha de esperar. "Não me deixaram ter acesso aos meus direitos", partilha.
A justificação também foi a mesma, era preciso esperar para ouvir o coração e saber se não ia ter um aborto espontâneo. Porém, não há nada na legislação que refira que uma IVG só pode ser feita depois das oito semanas. "Às seis semanas liguei novamente para o hospital e só havia vaga para consulta passado quinze dias", assim sendo Filipa teve a sua primeira consulta no hospital de Santarém às nove semanas, mas este é um dos vários hospitais onde não é possível realizar o procedimento pelo que foi encaminhada para a Clínica dos Arcos, em Lisboa.
Devido ao arrastar do processo, e à necessidade do período de reflexão, a IVG só foi realizada quando já estava a chegar às doze semanas, altura em que já não pode recorrer à medicação abortiva e teve mesmo de fazer uma aspiração com anestesia geral.
As duas mulheres ouvidas pela SÁBADO partilham o mesmo arrependimento, não ter recorrido ao privado para evitar o prolongar do processo e do seu sofrimento. Mas, isso não é algo que todas as pessoas possam fazer e, por isso, é que Patrícia Cardoso, fundadora da associação Escolha, considera que é essencial haver uma revisão da lei e mais discussão pública sobre a mesma, para que as mulheres "sejam capazes de se defender, sabendo os seus direitos".
É precisamente isto que vai ser discutido esta sexta-feira, 10, no Parlamento. O PS propôs um Projeto de Lei para alterar alguns dos requisitos para a realização da IVG, entre eles o alargamento do prazo para a realização da mesma e a regulamentação da objeção de consciência. Toda a esquerda acompanha a necessidade de alteração da lei, mas diverge no prazo proposto, enquanto o PS e o PCP propõem que a IVG possa ser feita até às doze semanas o Livro e o Bloco de Esquerda consideram que o prazo deve ser alargado até às 14. À direita tanto o CDS como o Chega já referiram ser contra o alargamento e a favor de manter a objeção de consciência sem registos, propondo o CDS o regresso de alguns aspetos da lei do tempo do governo de Passos Coelho. O PSD deverá votar contra todos os projetos de lei em votação.
A realidade é que dentro dos países europeus onde o aborto é legal, Portugal é aquele onde o limite de semanas é mais curto, igual ao da Turquia. A Islândia é o país onde o prazo é maior, com 22 semanas, na Dinamarca é de dezoito semanas, França 14, Áustria, Espanha e Países Baixos o período é de treze semanas, Bélgica, Finlândia, Alemanha, 12. Andorra, Hungria, Liechtenstein, Malta, Monaco e Polónia são os únicos países europeus onde o direito ao aborto não está consagrado.
Patrícia Cardoso considera que o alargamento do prazo é o "mais urgente e o mais fácil de fazer", considerando que "as doze semanas já é uma grande ajuda e mais próximo do prazo que impera na Europa, não fazendo qualquer diferença a nível biológico".
Regulamentar a objeção de consciência?
Ainda assim reforça que "a principal questão, e a mais difícil de resolver, é a objeção de consciência" que limita bastante o acesso tendo em conta que "existem concelhos inteiros, ilhas inteiras onde não são feitas IVGs".
A objeção de consciência é um direito dos profissionais, que todos os partidos querem manter, mas atualmente não é regulamentado o que permite que "existam hospitais objetores de consciência como um todo onde os médicos sofrem pressões para o serem também", acusa Patrícia Cardoso, foi por isso que Filipa teve de ser reencaminhada de Santarém para Lisboa.
Para resolver a questão a associação considera que é fundamental uma "regulamentação independente que venha de fora do pessoal médico e dos sindicatos". Isto porque, acredita, "existem muitos médicos que não são aliados dos seus pacientes e muitas direções que são contra o acesso à IVG". Tal como o relatado por Raquel e Filipa à SÁBADO, Patrícia Cardoso refere que "o tratamento que é dado às pessoas que querem recorrer a uma IVG no SNS é muitas vezes agressivo e marcado por um julgamento constante, desde o momento da receção até ao procedimento estar concluído, e não há nenhum controlo sob o comportamento dos profissionais".
Também a fundadora da associação Escolha já passou pela mesma situação: "Obrigação de ouvir o coração, esperar pela possibilidade de termos um aborto espontâneo são coisas que prolongam o sofrimento e que não estão na lei". Além disso, "não somos educadas para saber os nossos direitos e para sermos capazes de saber o que nos pode ser pedido ou não", apesar de considerar que é normal as mulheres baixarem a guarda no hospital e ouvirem, "é suposto serem espaços seguros onde estamos protegidas", partilha.
Raquel considera que "todo o processo é propositado para fazer a mulher desistir", especialmente devido à forma como os profissionais de saúde lidam com a situação. "Só faltou perguntarem se temos a certeza do que estamos a fazer", sublinha, acrescentando que "tudo é muito camuflado, há muito tabu, tentei procurar informação e tive muita dificuldade, no hospital nunca foram claros com o que é legal ou não, diziam sempre ‘isto é o que aconselhamos’, mas nunca foi claro se podia ter outra decisão ou não". O processo da IVG é encerrado com uma consulta de acompanhamento onde Raquel sentiu que a falta de sensibilidade se manteve: "Cheguei e disseram-me ‘vamos ver se o problema está resolvido’".
Filipa partilha a mesma posição: "É uma lei que existe, mas ninguém fala dela, há um tabu enorme e parece que não sabemos nada sobre isso. Quando fui ao hospital não sabia os meus direitos e quase nenhuma mulher sabe e ninguém teve interesse em explicar-me". "Enganaram-me ao dizer que tinha de ouvir o coração a bater, se eu soubesse tinha batido o pé porque tinha o direito de acabar logo com a gravidez em vez de arrastar o sofrimento".
Para que estas situações sejam alteradas, Patrícia Cardoso acredita que era preciso constituir uma "comissão independente", mas considera que são necessárias "alterações muito profundas que serão muito difíceis de fazer".
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