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David Goggins: as tareias do pai, o choque no coração e o poder do ódio

Carlos Torres
Carlos Torres 14 de dezembro de 2024 às 10:00
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Espécie de super-homem, que corria maratonas com "um buraco no coração", o norte-americano David Goggins ficou famoso quando, em 2018, publicou um livro de memórias - e que vendeu mais de 4 milhões de exemplares. Agora, surge "Nunca Pares", onde traz mais histórias incríveis (revela como quase morreu no aeroporto) e deixa alguns conselhos. Por exemplo, este: "Desistir nem sempre é a decisão errada".

No seu primeiro livro,Não Me Podem Magoar, publicado nos EUA em novembro de 2018, David Goggins relata a sua história de vida, com incidência na infância-pesadelo que teve, marcada pela pobreza extrema, o racismo, obullying, o trabalho infantil e as tareias que levava do pai.

Neste novo livro, Nunca Pares (saiu nos EUA em 2022 e foi agora editado em Portugal pela Lua de Papel), Goggins usa o sucesso da sua obra anterior para nos alertar que tudo muda em segundos.

"A vida é um competidor por excelência. Não tira folgas e não lhe interessa se ganhaste dinheiro ou foste promovido no emprego. Tudo o que isso quer dizer é que estás bem durante um momento ou dois".

Com David, aconteceu isso no Natal de 2018. Estava com a mulher no aeroporto (iam para a Florida), a falar do êxito do primeiro livro, que tinha entrado para a lista de bestsellers do New York Times, quando ele começou a sentir-se mal – "a pulsação disparou de umas estáveis 50 pulsações por minuto para 150 e vice-versa, sem um ritmo fixo".

Acabou no hospital, onde lhe detetaram fibrilação auricular (uma dessincronização entre os aurículos e os ventrículos). Solução: tinham de lhe aplicar um choque no coração. Ele já tinha sido operado duas vezes ao coração, mas, admitiu, "estava aterrado". Levou uma descarga de 200 joules e "ficou tudo branco". "No segundo choque dei um grito tremendo enquanto voltava a mim".

Em Nunca Pares, David Goggins começa por avisar: "Este não é um livro de autoajuda". Mas ele apresenta os seus conselhos e métodos, sempre usando as próprias experiências.

"Vim do fundo do poço e ainda tenho curiosidade em saber até onde conseguirei elevar-me", aponta. David Goggins sente-se um milagre – nasceu com "um buraco no coração" (algo que, se ele tivesse ignorado os sinais de aviso, podia ter feito com que "caísse morto a meio de uma corrida de 6 km"), levava tareias do pai com cintos de cabedal (e o pai também batia na mãe, até que fugiram de casa quando ele tinha 8 anos).

No início, aponta, esses dramas só serviam para o puxar para o fundo. "Tinha 24 anos quando percebi que estava desfeito por dentro", assume, lembrando que tinha 135 kg e era mal pago para trabalhar de madrugada a fazer desinfestações em restaurantes. E tudo porque teimava em ficar preso ao passado.

"Pensamos que a nossa dor nos dá direito a sentir pena de nós mesmos ou nos dá direito a ter boa sorte, por termos sobrevivido ao inferno". Mas, diz, temos de "deixar de perder tempo com merdas sem importância" e seguir em frente. "Não podemos permitir que o medo nos impeça de atirar fora o peso morto".

Ouvir os maus comentários para adormecer

David usa outro exemplo para acabar com a autocomiseração, e que tem a ver com os insultos de que muitas vezes é alvo nas redes sociais, explicando que, ao contrário de muita gente, lê os comentários e emails negativos. "Eu vejo o ódio como apenas mais uma fonte de combustível. Encontro nele beleza e poder e nunca deixo que se desperdice".

Aliás, continua, reuniu todos esses comentários. "Imprimi-os a todos, gravei-me a lê-los, um a um, e pus a puta da gravação em loop. Sempre que tenho um dia mau, ouço-a. A maior parte das pessoas só extrai as merdas positivas. Querem que tudo e todos sejam simpáticos e fofinhos. Mas a bajulação, as felicitações e os elogios não têm, nem de perto nem de longe, o mesmo combustível que o ódio. Há quem adormeça a ouvir uma app de meditação. (…) Eu, à noite, quando vou para a cama, ouço os tipos que me detestam. E é evidente que esses cabrões não fazem a menor ideia de com quem estão a lidar".

Com 47 anos, David é uma espécie de super-homem: fez parte das forças especiais dos EUA, os SEAL (é o único a completar os treinos de três forças especiais dos EUA), esteve durante 15 anos nos serviços médicos de emergência e fez várias ultramaratonas de 160 ou 200 km (em 2009 completou a Race Across América, 4.800 km de bicicleta para atravessar o país).

Para enfrentar todos estes desafios apoia-se naquilo que chama do seu Laboratório Mental, em que usa e orienta a força mental para "alcançar coisas que nunca pensara possíveis".

Para ilustrar isso, recorda um caso que lhe aconteceu, quando falhou a qualificação para o treino SEAL da Marinha. "Tinha chegado ao campo de treino básico na melhor forma física de sempre", conta. Estava convencido que a sua força e velocidade seriam suficientes, mas, após "uma evolução aterrorizadora na piscina", desistiu e percebeu que lhe "faltava força mental". "Os meus problemas fundamentais não eram, e nunca tinham sido, físicos. Eram todos mentais".

Em fevereiro de 2018, um mês depois de ter tido um problema cardíaco no aeroporto, foi desafiado para entrar na prova Leadville Trail 100, uma das ultramaratonas mais difíceis do mundo, que se realiza nas montanhas do Colorado (EUA), e que implica "mais de 4.500 metros de ascensão".

Não respondeu logo, mas andou ali umas semanas cheio de dúvidas, com vontade de sucumbir à tentação fácil de recusar com a desculpa do seu estado de saúde ou da má forma. Como admite em Nunca Pares, "o dinheiro pode tornar-nos satisfeitos; a satisfação fica a um pequeno passo da complacência".

David ficou embriagado pelo sucesso do primeiro livro, dedicando-se a contar a sua história de vida em palestras e colóquios. "Eu era o competidor por excelência, um selvagem a tempo inteiro. Depois, quando tudo se tornou cómodo, escorreguei para uma nova mentalidade".

"A satisfação fica a um pequeno passo da complacência"

O desafio do Leadville Trail 100 serviu para acordá-lo. Ainda andava a fazer exames para perceber exatamente o que acontecera ao seu coração e já definia planos de treino para as 10 semanas seguintes, nas quais iria completar quase 2 mil km. Começou por correr 16 km por dia, mas rapidamente passou para os 30 a 40 km. Num dia de julho, em que os termómetros marcavam 38 graus e a humidade era de 80%, com as autoridades a emitirem alertas ("um dia perfeito para ir fazer uma corrida de 35 km"), a certa altura parou junto a ele um condutor, que o conhecia e se mostrou espantado por ele estar ali naquelas condições extremas.

Depois dessa breve troca de palavras, continuou a correr, mas agora mais satisfeito. "Tinha escolhido o pior dia do verão para a minha corrida mais longa da semana. Porquê? Porque mais ninguém teria sequer pensado em fazer uma coisa dessas e isso dava-me uma oportunidade de provar a mim mesmo que era outra vez um tipo invulgar entre tipos invulgares".

Mais à frente, e recorrendo mais uma vez ao seu próprio caso, David Goggins fala de como, muitas vezes, é mais fácil desistir. Na Semana Infernal de treinos, enregelado até aos ossos no meio das ondas do Oceano Pacífico, esse pensamento assaltou-o muitas vezes, o conforto da cama quentinha, o abraço da namorada ou da mãe eram muito melhores. Mas conseguiu não ceder à tentação. "Estava farto de mostrar fraqueza. Estava farto de medo. Ia ficar na água todo o tempo que fosse preciso".

Ainda assim, nota, "desistir nem sempre é a decisão errada". "Mesmo em combate, há ocasiões em que devemos retirar", muitas vezes porque percebemos que "não estamos preparados". No entanto, diz, "é preciso assegurar que estamos a tomar uma decisão consciente, que não se trata de uma reação". E termina: "Nunca desistas quando a tua dor e insegurança estão no máximo. Se tiveres de retirar, desiste quando for fácil e não quando for difícil. Assim, saberás que não foi uma decisão assente no pânico, mas uma decisão consciente, assente na razão, e terás tempo para engendrar um plano B".

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