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PS-CDU: espelho meu, espelho meu, quem é mais de esquerda do que eu?

Gonçalo Correia
Gonçalo Correia 21 de abril de 2025 às 23:20
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A força do idealismo comunista contra a política como arte do possível do PS: num debate para eleitores de esquerda, as afinidades foram mais teóricas do que práticas. O muro voltou?

"Argumento do Rui Rocha", "persiste num erro histórico", "isso é uma frase feita": o tom pode ter sido cordato, simpático, sem a berraria de outros frente-a-frente, mas o debate que opôs esta segunda-feira à noite os secretários-gerais do Partido Socialista e do Partido Comunista Português, respetivamente Pedro Nuno Santos e Paulo Raimundo, não deixou de ser um confronto estrategicamente jogado como uma partida de xadrez importante. Afinal, um partido corre atrás da recuperação do poder e o outro da sobrevivência parlamentar. Não é coisa pouca.

Rúben Sarmento

O anterior secretário-geral do PS, António Costa, era conhecido como "otimista irritante" mas Pedro Nuno Santos vai caminhando sobre gelo fino nesta campanha, avançando cuidadosamente entre os elogios ao Costismo e à governação do PS - que, sugerem os resultados eleitorais de Costa, as pessoas apreciaram - e o reconhecimento dos erros, insuficiências e "correções" de rota, necessários a quem quer afirmar uma liderança de futuro e com mais para oferecer do que o passado. Se os adversários lhe apontam as insuficiências passadas, a estratégia é uma no cravo e outra na ferradura. Como quem diz: queremos fazer mais, mas já fizemos muita coisa. O otimismo, esse tem de ser refreado porque os tempos não estão para ele.

Uma no cravo e outra na ferradura, então: para Pedro Nuno Santos, todo o debate foi assim, frente a um adversário com menos meias tintas. Começou pela Saúde, com proclamações teóricas de esquerda, mas com a preocupação de tentar traduzir o raciocínio para o tornar o menos teórico e mais prático possível: "Por exemplo, oncologia pediátrica: não há um único hospital privado que trate, porque não é um negócio, não dá dinheiro [ao hospital]. O Serviço Nacional de Saúde não nos pergunta se temos dinheiro, ou qual é a doença. O hospital público não diz que não a ninguém".

Se formos rigorosos, não é exatamente verdade: o número de urgências fechadas sugere que muitos hospitais públicos também dizem que não, é melhor ir a outro lado, e Paulo Raimundo (PCP) lembraria que o PS tem responsabilidade no estado débil do Sistema Nacional de Saúde - uma das áreas que mais preocupa os portugueses, apontam todas as sondagens. A partir daqui, rapidamente o debate tornou-se um confronto entre a força do idealismo e a política como arte do possível: Paulo Raimundo pouco calculista, sem abdicar de princípios programáticos por tacitismos estratégicos, Pedro Nuno Santos a vestir o papel de responsável, sugerindo que com o PS, se o Estado não vai mais longe, não é porque não quer, é só mesmo porque não pode.

Paulo Raimundo aludiu ao "embate muito forte" entre os dois partidos em 2021, aquando das negociações do Orçamento do Estado. "Esta [Saúde] era uma questão fundamental. Podiam ter feito mais". O OE em 2021 [de 2022] foi aquele em que a Geringonça morreu e que precipitou eleições antecipadas, de que o PS sairia beneficiado, conquistado uma maioria absoluta. Talvez por isso, Pedro Nuno Santos recuou até à mesma data minutos depois, para lembrar ao camarada comunista que o PS aumentou pensões "mesmo depois do PCP ter deitado abaixo o segundo Governo de António Costa". Raimundo ainda gracejou "dá-nos essa força toda?" mas o socialista não hesitou: "Chumbaram o Orçamento do Estado". 

Pouco distintivos quanto à política de imigração - querem-na regulada, não estancada -, diferenciam-se, isso sim, na estratégia de apelo ao voto útil: para Paulo Raimundo o voto só é útil para quem o recebe, para Pedro Nuno Santos é mesmo preciso o PS ficar à frente da AD para que "o País avance". Estranhamente, o secretário-geral comunista não lembrou que se a esquerda não tiver maioria, o que o PS fará é um Governo de bloco central, que dificilmente agradará ao eleitorado mais acantonado à esquerda. Talvez a recusa tradicional do PCP em fazer cálculos estratégico-partidários o tenha impedido de ir por aí.

A força do idealismo contra a política como arte do possível, dizíamos, também marcou os principais momento que se seguiram do debate. Primeiro, Pedro Nuno Santos visou o adversário dizendo que o PCP "comete um erro histórico e persiste numa equiparação que não é credível entre o PS e a AD". Paulo Raimundo ainda lhe disse "isso é uma frase feita" (já tinha dito que "a questão do SNS não se resolve com proclamações"; por outras palavras, frases feitas) mas além de confirmar a equiparação pouco depois - "Se for caminhos diferentes mas o mesmo rumo, connosco não contam" -, tentou fazer uma colagem PS-AD que soou pouco eficaz. 

Um dos argumentos pouco sólidos foi a viabilização do primeiro Orçamento do Estado de Luís Montenegro pelo PS. Raimundo criticou-o, para ouvir Pedro Nuno Santos dizer que "o PS não deu estabilidade à AD, deu ao País", lembrar que "o PS não ganhou as eleições" e acrescentar (e as sondagens confirmam) que "a maioria esmagadora dos portugueses não queria ir novamente a eleições" meses depois das anteriores; em suma, permitiu-lhe fazer o brilharete de político responsável que é força de solução, não de bloqueio ou protesto. 

Depois, Paulo Raimundo perguntou-lhe diretamente se não tinham, com esse voto, viabilizado a descida do IRC - "foi metade" do que a AD queria, retorquiu o socialista, lembrando que também o IRS Jovem foi "moderado" pelos socialistas. Por último, o líder comunista tentou visar as "borlas fiscais" que o PS dá, ouvindo o socialista responder que "o PS acha que as empresas que reinvestem os seus lucros e que investem em investigação, desenvolvimento e em capitalização, em vez de distribuírem lucros por acionistas, devem ter um desagravamento fiscal". Ou não quis, ou não conseguiu contrapor. 

Enxofrado pelas críticas de Paulo Raimundo às subidas ténues do salário mínimo que o PS promete para os próximos anos, Pedro Nuno Santos acantonou-se ao centro para dizer que os socialistas querem "promover o aumento do salário mínimo até onde a economia consegue pagar", sem asfixiar as "pequenas empresas" que já não vivem com grande folga. "Não venha com o argumento do Rui Rocha para mim", atirou-lhe Paulo Raimundo. Perante o ataque, Pedro Nuno Santos, à caça de indecisos e eleitores flutuantes do "centrão", só não terá sorrido porque não pôde.

O embaraço

Paulo Raimundo tentou o argumento de que o PS só aumenta rendimentos e pensões quando o PCP a isso o obriga. Ouviu Pedro Nuno Santos responder-lhe: "Mesmo depois do PCP ter deitado abaixo o segundo Governo de António Costa, depois disso, com maioria absoluta, o PS voltou a fazer um aumento extraordinário de pensões". Ressentido, Raimundo pareceu sorrir a contragosto: "Não precisam de nós para nada." Era ironia. Soou a resignação.

KO

Paulo Raimundo pode ter toda a razão quanto ao chumbo do Orçamento do Estado em 2021, que fez cair em geringonça e nascer uma maioria absoluta do Governo, mas em política não basta ter razão, é preciso saber explicá-la. A descida eleitoral dos partidos de esquerda depois desse OE e o reforço eleitoral do PS que se seguiu deveriam ser suficientes para não ser o líder comunista a vir lembrar a desavença. Reavivar velhos fantasmas de desacordo à esquerda dificilmente não favorece o voto útil.

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