O exército israelita admite sem rebuços que o que se passou foi a "maior falha de inteligência e militar da história" do país, mesmo enquanto mostra os restos do erro.
Roni Kaplan, porta-voz do exército israelita, está de pé em cima do abrigo de uma casa, ou do que resta dela, o abrigo. Ali viveu Amitai Ben Zvi. Também morreu ali, aos 80 anos, a 7 de outubro de 2023. Jimmy Pacheco, filipino, que lhe prestava assistência, foi levado sequestrado para Gaza e regressaria no dia 51 da guerra. Atrás de Kaplan, a 1600 metros, vê-se Gaza ao fundo. Amitai costumava ir ali ver o pôr do sol em Gaza. O major faz o relato: "Os terroristas entraram por este portão às 6h26 da manhã. O primeiro grupo eram uns 140. Entraram por este portão e entraram por quatro pontos mais. Tinham mapas do kibutz e primeiro foram assassinar o chefe da segurança. Havia aqui, antes do 7 de Outubro, 417 pessoas, membros do kibutz e também estrangeiros, tailandeses mais na agricultura e filipinos mais em trabalhos domésticos. Nesse dia, 117 pessoas foram aqui assassinadas ou sequestradas, ou seja, 28% da população. Mais de um em cada 4. E dentro da falha colossal que cometemos, as IDF, no dia 7 de Outubro - que foi a maior da história, tanto em inteligência como em defesa, do estado de Israel - hoje vamos ver uma das falhas mais importantes dentro dessa falha."
Ali, praticamente tudo falhou. Houve 29 brechas na rede que separa Gaza, que se avista bem do topo do abrigo, e que deram origem a 35 pontos de luta em território israelita e a quatro grandes massacres, nos kibutz de Nir Oz, Be'eri, de Kfar Aza, e o terceiro no festival Nova.
Em Nir Oz, houve 57 assassinatos, 41 logo no dia 7. A chegada ali de Roni Kaplan é talvez inesperada. Uruguaio de origem, deixou pais para trás para ir para Israel. Reservista, apresentou-se na manhã de dia 7 quando o desastre em curso era já evidente. No dia 8, às dez da manhã, chegou a Nir Oz. "Chego depois das forças de primeira resposta, com jornalistas. Contei pessoalmente 41 corpos, mas havia gente desaparecida e resgatámos da faixa de Gaza pessoas que tinham sido assassinadas aqui, dentro de casa. Ainda hoje, em Gaza, este kibutz tem 29 pessoas sequestradas. 9 delas mortas e 20 com vida."
O seu papel é mostrar o kibutz, onde apenas há visitas previamente autorizadas, mas mesmo num papel oficial não tem qualquer problema em assumir o que correu, objetivamente, mal: "O exército, nós, não chegámos a tempo, só chegámos às 14h30, seis horas mais tarde." Era demasiado tarde. Tinham queimado contentores usados para trabalhos agrícolas, visíveis ao lado dos restos também carbonizados da casa de Amitai, e dezenas de casas - algumas com os habitantes lá dentro.
"Foi a falha mais importante que tivemos na história deste país", repete. "Mas quando temos 4.700, 4.900 terroristas a entrar juntos ao mesmo tempo e não se tem a informação dos serviços secretos e se tem a concepção, a nível de defesa, de que quem pode invadir é o Hezbollah, a 220 km a norte, e não o Hamas aqui à nossa frente... Pensávamos que o Hamas iria cuidar das 2.5 milhões de pessoas que vivem na faixa de Gaza. E o 7 de Outubro dá-se numa altura de uma disputa importante na sociedade israelista e num contexto internacional em que Israel normalizava a sua relação com a Arábia Saudita. Se parte do Médio Oriente, como já os Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos, Sudão, normalizaram as suas relações com Israel, mais a Arábia Saudita, então a razão de ser destes terroristas como o Hamas, Hezbollah ou as milícias xiitas, desaparece, porque Israel deixa de ser um anticorpo, um bicho estranho aqui no Médio Oriente e passa a ser parte desta zona."
O erro foi ao ponto de se ignorar os avisos das observadoras do exército - as mesmas que foram libertadas na mais recente troca - sobre os movimentos do Hamas junto à fronteira. "O treino do Hamas perto da fronteira é constante. É verdade que elas falaram disso - e nós falhámos. Não há pior cego do que aquele que não quer ver, a concepção era de que o Hamas não iria atacar. E atacou. Aqui, as pessoas foram para os abrigos, e começaram a avisar no WhatsApp 'parece que há uma célula de quatro ou cinco pessoas que nos invadiram', e eram 900 um momento mais tarde."
Não esconde o choque pessoal do embate: "Eu pessoalmente vi mais de 100 cadáveres de terroristas e dezenas de cadáveres dos nossos civis naqueles dias. Pensei, 'como pode acontecer uma coisa assim, um pogrom, um massacre deste tipo, haver gente sequestrada por civis?'" Um pai e um filho, civis palestinianos, levaram do kibutz Nili Margalit, de 41 anos, enfermeira. No dia 8, foi vendida, em Gaza, "como mercadoria" à jihad islâmica palestiniana - como a própria contou, quando regressou, durante a primeira "pausa operativa", no dia 53 da guerra.
Kibutz Nir Oz: as cinzas e a dor de um "erro colossal"
O serem também civis a intervir no 7 de Outubro chocou muitos israelitas. Kaplan aponta diferenças para explicar o que claramente também o chocou a ele: "Na nossa cultura - na da bíblia hebraica, ou na cultura ocidental - o mais importante fio condutor é que tem de se respeitar o estrangeiro, o estranho, que é diferente de mim. Temos de dignificar o outro na sua diferença. Na cultura do radicalismo islâmico - não todos eles - todos têm de ser a mesma coisa, e temos de tentar que todos sejam como nós."
Está agora na casa, escombros, de Oded Lifshitz, de 84 anos, ainda refém em Gaza. Oded, jornalista, músico, jardineiro - os seus cactos ainda sobrevivem ao lado da casa - ia com outros do kibutz, todas as semanas, ao cruzamento de Erez, de onde vinham dezenas de milhares de palestinianos trabalhar diariamente em Israel. Ele e outros voluntários pegavam em palestinianos que vinham para tratamentos médicos, levavam-os aos hospitais, passavam o dia com eles, levavam-nos de volta à fronteira ao final do dia. Escrevia no Haaretz, o jornal mais à esquerda em Israel, e fazia parte dos que queriam a paz com os vizinhos a sul. O exército enviou-lhe medicamentos específicos, através da Cruz Vermelha, com o seu nome, para Gaza - mas foram encontrados depois pelo exército no hospital de Khan Younis. Nunca lhe chegaram. O acordo de cessar fogo em vigor prevê que seja libertado na primeira fase.
Roni Kaplan abre uma porta das poucas fechadas, porque a família começou a arrumar o pouco que restou no interior. Ali morava Ofelia Roitman, de 77 anos, que estava sozinha quando os terroristas chegaram. Há buracos de bala, sangue pelo chão, espezinhado, no abrigo de onde a levaram. Contou depois ao major, depois de ser libertada, que quando esteve em Gaza a fizeram ficar nua à frente de nove homens, que passou fome, que tinha para comer um pão pita com algum tomate. Tentou escrever um diário, "para os meus netos", lembrava-se do Diário de Anne Frank. No dia em que foi libertada tomou banho pela primeira vez em 53 dias e tentou levar os papéis apertados debaixo do braço para o duche, mas o pai da família percebeu, afastou-lhe o braço, e queimou-lhos.
Algumas casas mais à frente, há entre a erva restos de cinzas já praticamente desfeitos pela chuva. Ali, continuavam nove desaparecidos por localizar, meses depois do 7 de Outubro. O governo mandou um grupo de cem antropólogos e arqueólogos para os kibutz, que retiraram e organizaram os escombros de cada casa em montes de tamanhos diferentes e os peneiraram, até às cinzas, permitindo isolar pedaços de osso, de um crânio, ou um dente. O irmão de Arbel Yehoud, a refém civil cuja libertação deveria ter ocorrido a 25 mas que está agora prevista para quinta-feira, dia 30, que se presumia refém, só foi assim identificado, ao fim de nove meses.
O major Roni Kaplan cresceu a ouvir histórias que agora diz parecidas. Os avós, da Polónia e da Bielorússia, imigraram para o Uruguai em 1946, a avó perdeu cinco irmãs e os pais, e eram ambos os últimos sobreviventes da família na Europa. Nenhum esteve em campos de concentração, mas os amigos com quem se davam tinham estado em Treblinka ou em Auschwitz e traziam as marcas no corpo e nas histórias que contavam. Cresceu a ouvi-las. O que ouviu nos últimos meses evoca-as.
Continua a visita guiada: "Karina veio morar aqui da Argentina nos anos 80": o filho, Ronem, "foi sequestrado", mas dado como morto, outros reféns em Gaza viram-no a ser morto. É no Nir Oz a casa da família Bibas, os filhos, Ariel e Kfir, terão agora 5 e dois anos. Na porta vêem-se buracos de bala, de entrada e de saída, o pai, Yarden, tentou proteger a família. Quando percebeu que seria impossível, supõe-se que terá imaginado que ao ao entregar-se não matariam nem levariam uma criança e um bebé com mãe. Foi sequestrado pelo Hamas. A mulher, Shiri (cujos pais também foram assassinados) estará com um grupo mais radical do que o Hamas. Há temor em Israel sobre se estarão vivos. "Temos muita preocupação pelo estado de Shiri e dos seus dois filhos. Na lista que o Hamas enviou há 25 reféns com vida, oito sem vida. Pessoalmente, amo esta família, uma família linda, conheço a irmã. Rezamos para que regresse com vida. Tenho esperança. Não sei" - e Kaplan faz uma paragem rara no discurso praticamente ininterrupto.
Já perto da saída, mais uma família que morreu ali, em casa, quando esta foi incinerada. Os terroristas cortaram as canalizações de gás e lançaram fósforos para dentro das casas, provocando explosões e incêndios. Morreram carbonizados, abraçados uns aos outros, e assim foram enterrados.
Neste cenário, Kaplan mostra-se otimista. Tem seis filhos, cinco raparigas e um rapaz, e explica que Israel é o país do mundo ocidental com mais filhos por casal e "nas ciências sociais, o número de filhos por casal é um indicador de optimismo". Lembra que o hino israelita é o Hatikvah, que quer dizer "esperança", que a avó, apesar da tragédia no passado, era uma mulher resiliente e que nunca perdeu o humor, e diz, numa nota mais política, acreditar que vão "fazer um dia a paz, porque a paz faz-se com o inimigo". "Poderíamos só jogar a cartada de vítimas, mas quem o faz está muito mal. Somos responsáveis pelo que se passou aqui. Além disso, até fevereiro, março de 24, grande parte do mundo e do eixo liderado pelo Irão achavam que era o princípio do fim de Israel, mas é o princípio do fim deste eixo liderado pelo Irão. Mas pagamos um preço elevado por isso. 841 soldados israelitas morreram, mais de cinco mil foram feridos", e por cada refém libertado e cada pai e mãe que ficam felizes, são também libertados "terroristas com sangue nas mãos" dos filhos de outros pais e mães.
A SÁBADO viajou a convite da embaixada de Israel em Portugal.
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