Sábado – Pense por si

Israel: o norte deserto ainda teme o Hezbollah

Nos Montes Golã, os drusos ficaram, mas ainda choram as 12 crianças mortas a 27 de julho. Ali perto, dezenas de milhares de israelitas deixaram vilas fantasma atrás de si. Depois de meses de ataques do Hezbollah, o cessar-fogo prevê o regresso a partir de 1 de março, mas impera o medo.

Lythe Abu Salh, pai de Fajr Abu Sahl, foi dos primeiros pais a chegar ao campo de futebol de Majdal Shams, nos Montes Golã, no dia 27 de julho de 2024, depois de um rocket do Hezbollah ter caído ali. Seis meses depois, está com uma filha junto ao mesmo campo, agora transformado num memorial. Há flores, mensagens, panos negros agarrados às grades e às redes da baliza onde decorre um treino animado e outras crianças jogam à bola, gritam e riem. Fajr, o filho de Lythe, está em cima à esquerda no cartaz. A aldeia, praticamente desconhecida, tornou-se momentaneamente famosa com o desastre.

Maria Henrique Espada

No painel, Lythe aponta um rapaz que parece dos mais novos, e explica que foi em cima dele que caiu o projéctil. Ele chegou ali rápido porque a sua loja é perto, a 100 metros. "O míssil veio da montanha, dali, havia mais crianças do que agora, mais outros outros no parque infantil, a sirene tocou 4 ou 5 segundos, e depois 'bum'. Foi um sábado negro. Vi o que espero que ninguém veja nunca, pedaços de corpos no chão, nem consigo falar disso." E não fala mais disso. "Chegaram muitas pessoas à procura dos filhos, encontrei o meu filho ali, no meio da relva." 

Ainda assim, tem um discurso apaziguador, não mostra a revolta que a sul, em Israel ou em Gaza, persiste mais de um ano depois dos massacres do Hamas a 7 de Outubro. "Perdemos 12 estrelas, esperamos que sejam as estrelas da paz do Médio Oriente."

Rabeaa Abu Salh também perdeu um filho, Ameer, nesse dia. Um outro ficou ferido, passou meses no hospital, e só agora regressou a casa, ainda ferido. Mas tem o mesmo tom: "Estamos numa comunidade de paz, não temos inimigos, criamos os nossos filhos com desporto, estudos... há uma alta percentagem das crianças que vão para a universidade, e achamos que não tínhamos nem um inimigo. Estamos num lugar neutro, ideologicamene, e foi uma surpresa, porque temos família no Líbano, temos família na Síria e se tivéssemos uma indicação, por pequena que fosse, teríamos saído e procurado refúgio noutros lugares. Não sabíamos que poderiamos ser alvos do Hezbollah."

Ao contrário da faixa norte de Israel, onde 60 mil israelitas foram evacuados por ordem do governo, os drusos não saíram. Estão ancorados nos Montes Golã e, explica Rabeaa, "não estamos interessados no que acontece à volta, só queremos não receber mais golpes. Não estamos a sair, como os israelitas, não temos outros remédio senão ficar aqui. Temos esperança, porque pior não pode ser." As palavras são calmas e medidas: "Se morressem mais 100 crianças, isso não vai fazer voltar o meu filho. A morte de alguém não traz nada de bom para ninguém e é uma desgraça para os nossos filhos e para os vossos filhos." Lythe concorda, aliás, acrescenta que por entre a atenção que a aldeia recebeu depois das mortes, muitos iam ali perguntar-lhes se desejavam vingança ou sentiam revolta, para ele os contrariar com a mesma calma do outro pai: "Não, pelo contrário. Continuamos a ser o que éramos antes." 

Politicamente, sim. Os drusos não entram en nenhum exército - fazem questão de o recordar - e a tentativa de distância em relação ao conflito que tanto tentam evitar mas que os rodeia foi quebrada por outros. Mas muito mudou noutras frentes e sobretudo no dia a dia. Mais de 30 crianças ficaram feridas, várias ainda não saíram do hospital, a outras caiu o cabelo, a maior parte "não vive uma vida normal", embora ali à volta a gritaria habitual de um jogo de futebol disfarce o ambiente. No campo, uma rapariga usa uma camisola de Ronaldo. Os pais explicam que alguém da equipa do jogador esteve ali depois do sábado negro, falou com alguns, e enviou camisolas para os que conheceu. 

Sob a aparente normalidade, os sinais da anormalidade são ostensivos. Juntou-se entretanto mais um pai a Lythe e Rabeaa, Naef Abu Salh, que perdeu o filho Yazan. Vestem todos de preto e usam ao pescoço medalhões dourados com o rosto dos filhos mortos impresso.

"Eles vão voltar"

David Azoulai, o presidente da câmara de Metula, a 35 quilómetros, também nunca saiu. Mas, a 16 de outubro de 2023, só ficou ele, dois funcionários da autarquia, os membros de comité de defesa e 600 soldados do exército israelita, para evitar que, como temiam, a Radwan, a força de elite do Hezbollah, pudesse entrar por ali. No dia seguinte ao 7 de Outubro, já metade dos 2.400 habitantes saíra, com medo de uma repetição a norte. O medo ali tem várias razões: a fronteira, marcada por uma vedação fortificada em arame, fica a 50 ou a 100 metros de algumas casas e rodeia Metula a norte, este e oeste. E o grupo terrorista a norte, o Hezbollah, que dominava o outro lado da vedação, era maior e melhor armado do que o Hamas em Gaza. Os mísseis do Hezbollah sobre o norte de Israel começaram a cair a 8 de outubro, e o primeiro a atingir Metula foi a 17. David Azoulai diz que não há nenhuma escola para ensinar como isto se faz": ficou sozinho a 'governar' uma vila deserta, fez de bombeiro em inúmeros incêndios, de segurança, e ia à casa das pessoas buscar pertences de que precisavam, mudas de roupa, os passaportes, objetos domésticos que faziam falta na vida longe dali. E passou também a vigia. Tem uma sala de comando com inúmeros ecrãs e câmaras viradas para o Líbano, ali tão perto. Acumulou vídeos de drones e explosões e também quinquilharia, de drones a restos de explosivos e bocados de metal, no gabinete. "O Hezbollah entende Metula como um local a conquistar", diz Azoulai. Caíram ali 2.200 projécteis, dos quais 460 mísseis antitanque, e 470 das 680 casas foram atingidas. Uma volta pelo local mostra habitações perfuradas, meio queimadas, partidas, jardins secos, abandonados há mais de um ano e um ar de cidade fantasma nas ruas rodeadas por casas de pedra. 

Agora, do outro lado da fronteira, vê-se, através de uma das câmaras, uma bandeira israelita içada, mas de acordo com o cessar fogo assinado com o Hezbollah e o Líbano, deverá ser retirada, assim como as tropas que a sustentam, a partir de 18 de fevereiro. A partir de dia 1 de março, as populações poderão tentar voltar, se o quiserem. Poder e querer são coisas diferentes. "As pessoas têm medo de voltar", diz Azoulai. E acusa: "O acordo com o Hezbollah não é bom, está a permitir ao Hezbollah rearmar-se e fazer aqui um 7 de Outubro novamente." Azoulai não é um estreante nas críticas. Ao longo do conflito, surgia frequentemente nos media israelitas, com críticas ao governo e em particular ao primeiro-ministro Benjamim Netanyahu, pelo abandono dos deslocados do norte à sua sorte. E teme que a paz frágil não permita reconstruir o que o local já foi. A escola não está a funcionar, a reconstrução, admite, mesmo sem outros incidentes, durará entre dois a quatro anos, e o medo, esse não se foi embora. Algumas pessoas começaram a voltar pontualmente, para limpar e arranjar as casas. Mas não mostra otimismo: "Quando Israel sair, a 18 de fevereiro, eles vão voltar e vão voltar a fazer o mesmo que faziam antes."  

Haim Barbivay, mais abaixo em Kyriat Schmona, também presidiu à câmara local, mas entre 1997 e 2008, e mostra o mesmo pessimismo. Está na cidade desde 1962, e quer os pais, quer os seus filhos e netos, quatro gerações cresceram sempre com bombas a cair à volta. "Queremos paz com o Líbano, mas ando aqui e vem uma bomba do Líbano. Morreram muitas pessoas sem nenhum sentido, cidadãos civis. O nosso pecado é morarmos aqui. Não há nenhuma disputa entre nós e o governo do Líbano, mas dentro do Líbano está o Hezbollah, que é o cancro que mata o Líbano antes de nos matar a nós." Na cidade, o governo deslocou 24 mil pessoas. Voltarão? Com os filhos noutras partes do país, em hotéis, a frequentar outras escolas, muitos esperarão pelo final do ano letivo para fazer a mudança, antevê. Depois, e sem ironia, "viram a beleza de Telavive, de Eilat, dos cafés, cinemas e teatros, não é como aqui". Por fim, a última razão: sentir-se seguro parece ainda só uma miragem, sobretudo depois do horizonte de 18 de fevereiro: "Não, nada, não estou nada seguro. Mas sempre vivi assim e não tenho o que fazer, é o meu país, a minha casa. Mas [o Hezbollah] não é um estado, decidem quando atacam." Mas não defende que as FDI (Forças de Defesa de Israel) permaneçam no Líbano além da data estabelecida. "Fazer o quê? Não estamos sozinhos no mundo, há outros paises, há a União Europeia, e vai ser feito o que tem de ser feito, mas se morassem aqui também não estariam em tranquilidade nenhum minuto. Se Espanha mandasse mísseis por 40 anos, o que é que acham que o governo de Portugal faria?"

Haim aponta para a casa onde está, no encosta de uma colina de Kyriat Schmona, e elogia o dono - um dos fundadores da cidade. Morreu há dois meses, "de tristeza, teve de abandonar a casa e não conseguiu superar". A mulher, Fanny Zeltker, nunca mais arrumou a casa desde que saiu, ficou como estava, ainda ali volta de vez em quando. "Saí daqui com o marido e voltei sem marido. Sempre morei nesta casa e nos últimos meses moro num quarto, sozinha." Está a viver em Bat Yam, num quarto de hotel, como milhares, à espera de um dia poder voltar. Teve ali os quatro filhos. Recorda, apontando para o sítio, o local onde há muitos anos a queda de um rocket do Hezbollah, vindo dos Golã que tornam a vista magnífica, caiu perto da casa, e a filha - que hoje é embaixatriz em Portugal -, que estava a andar de baloiço, caiu do mesmo e foi projetada uns metros. "Tento não pensar, mas há coisas que me dão medo."

A SÁBADO viajou a convite da embaixada de Israel em Portugal. 

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