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Filipe não queria fazer 100 anos e não chegou a fazê-los

Sónia Bento
Sónia Bento 09 de abril de 2021 às 16:23
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O marido de Isabel II morreu a 61 dias de ser centenário. O príncipe grego caminhou quatro passos atrás da rainha durante mais de sete décadas, mas em casa era ele quem mandava

Nunca desejou viver até os 100 anos e que chegou a afirmá-lo. "Nas comemorações do 100.º aniversário da rainha-mãe, a 4 de agosto de 2000, o duque de Edimburgo desabafou: ‘Meus Deus, não quero viver até os 100 anos. Não consigo imaginar nada pior. Nessa altura, já estarei a cair aos bocados’", contou Ian Lloyd, escritor e fotógrafo da família real, no livro 100 Chapters In The Life Of Prince Philip. O seu desejo cumpriu-se. O marido da rainha Isabel II, que completa 95 no próximo dia 21, morreu "pacificamente" na manhã desta sexta-feira, dia 9, no castelo de Windsor, a 61 dias de ser centenário, a 10 de junho.  

Sem funeral de estado, como queria

O príncipe Filipe foi internado a 16 de fevereiro, depois de se sentir indisposto, e entrou pelo seu próprio pé no hospital King Edward VII, em Londres, onde dias depois foi submetido a uma cirurgia cardíaca. Teve alta no passado dia 16. As exéquias fúnebres do consorte da rainha de Inglaterra, a que deram o nome de Operação Forth Bridge, estavam planificadas ao detalhe, mas a pandemia forçou a algumas alterações. O duque terá um funeral cerimonial real na capela de St George, no castelo de Windsor, como era a sua vontade. Não será um funeral de estado porque ele não queria. As cerimónias serão transmitidas pelas televisões, de modo a desencorajar ajuntamentos. Deverá ser sepultado em Frogmore Gardens, também em Windsor.

A rainha e os seus filhos e netos entrarão num período de luto, que pode durar várias semanas. Espera-se que Isabel II trasmita uma mensagem na televisão para a nação nos próximos dias, embora dependa de como se sente. A morte do marido num dos períodos mais difíceis para a família real, com o palácio de Buckingham mergulhado em plena crise após a entrevista explosiva de Harry e Meghan a Oprah Winfrey.

O filho mais desejado do príncipe da Dinamarca

Filipe nasceu a 10 de Junho de 1921, na mesa da sala de jantar na casa da família, na ilha grega de Corfu. Depois de quatro raparigas, este foi o filho mais desejado pelo príncipe André da Grécia e da Dinamarca e por Alicia de Battenberg. Deram-lhe o nome de Philippos zu Schleswig-Holstein Sonderburg Glucksburg, então sexto na linha de sucessão ao trono da Grécia.

Dezoito meses a seguir ao nascimento e após a derrota do exército grego na guerra contra a Turquia, os príncipes e os cinco filhos tiveram de fugir do país, exilando-se em casas de familiares em França, na Grã-Bretanha e na Alemanha, e sentindo muitas dificuldades financeiras. Aos 9 anos, o futuro duque de Edimburgo assistiu a um dos episódios mais traumáticos da sua vida, ao ver a mãe, surda de nascença, ser levada à força para um hospital psiquiátrico, depois de lhe ter sido diagnosticada esquizofrenia paranóide. O pai partiu para o Mónaco, Paris e Alemanha, onde viveu como um playboy, ficando Filipe na Grã-Bretanha, sob a tutoria de um tio, o marquês de Milford Haven, irmão de Alicia.

Divertido, afetuoso e auto-confiante

Separado das irmãs e internado num colégio em Surrey, no sul de Inglaterra, não teve notícias da mãe durante anos, tendo visto o pai de passagem apenas nas férias escolares. Apesar de tudo, o mais antigo consorte da história real britânica tornou-se num homem sem traumas, divertido, afetuoso e com uma personalidade forte. "Tendo em conta o que passou, era notável a sua auto-confiança", lembrou um antigo colega de escola.

Em 1939, entrou para a Marinha inglesa e durante a II Guerra Mundial andou pelo Mediterrâneo e pelo Pacífico. Foi então que viu pela primeira vez a futura rainha de Inglaterra. Ele tinha 19 anos, ela 13. Lilibeth, como lhe chamavam, apaixonou-se instantaneamente pelo nobre oficial, loiro, de olhos azuis, alto e com um corpo atlético, que vivia da caridade dos seus parentes, e começaram a trocar cartas. Filipe não era bem visto pelo rei Jorge VI e pela rainha-mãe Isabel, que não o queriam como visita, por as suas irmãs se terem casado com alemães, alguns com ligações nazis, e por não o considerarem um pretendente à altura da filha.

Sem escova para se pentear nem roupa decente

Após a guerra, quando voltou a ver Isabel, Filipe não tinha onde morar (o tio morrera de cancro) e vivia com as 300 libras anuais que a Marinha lhe pagava. "Engomava" as calças debaixo do colchão e andava sempre com o mesmo par de sapatos, já muito maltratados. Segundo o rei, Filipe era "muito irreverente e atrevido", chegando a aparecer em festas sem ser convidado, e dizia o que pensava sem contemplações, mostrando ser "demasiado seguro de si mesmo". Além disso, "não tinha sequer uma escova para se pentear, nem roupa decente como todo o cavalheiro bem nascido", descreve o livro. Contrariado, o monarca pedia aos criados que vestissem o jovem grego de modo a aparecer em público adequadamente, sempre que Isabel o convidava para banquetes e caçadas, ainda que o rei e a rainha não lhe dirigissem a palavra.

Isabel não desistiu de Filipe e Jorge VI acabou por aceitar o pobre oficial como noivo da filha, concedendo-lhe várias promoções na Marinha. Ficaram oficialmente noivos no verão de 1946, em Balmoral, mas o anúncio oficial foi adiado até a princesa completar 21 anos e voltar de uma viagem oficial à África do Sul. Filipe solicitou a nacionalidade britânica e em fevereiro de 1947 tornou-se um súbdito britânico naturalizado, renunciando ao seu título real grego.

Quatro passos atrás da rainha

Casaram-se a 20 de Novembro de 1947, na Abadia de Westminster, e como marido da futura rainha de Inglaterra, Filipe ganhou o título de duque de Edimburgo. A sua  devoção por Isabel era clara. O seu primeiro secretário particular, Michael Parker, um amigo da Marinha, revelou: "Logo no meu primeiro dia, ele disse-me que o seu primeiro, segundo e último trabalho seria nunca a decepcionar". Isabel sentia nele o maior apoio e chamava-lhe a "minha rocha".

A 2 de Junho de 1953, na coroação da sua mulher como rainha de Inglaterra, ajoelhou-se à sua frente, segurou na mão dela e jurou ser o seu "homem soberano de vida e morte". Ao longo de mais de sete décadas, Filipe viveu à sombra da rainha - deveria caminhar quatro passos atrás dela e tratá-la por "senhora" segundo o protocolo – mas, dizem os mais próximos, no casamento, do qual nasceram quatro filhos – os príncipes Carlos, Ana, André e Eduardo – foi sempre ele quem mandou e nunca se terá sentido em segundo plano. Filipe queria modernizar a monarquia e foi o primeiro membro dos Windsor a dar uma entrevista televisiva à BBC. Graças a ele, o palácio de Buckingham teve uma linha de comunicação interna, acabando com o envio de mensagens através dos funcionários, assim como aquecimento em todo o edifício.  

Refugiado com os seus livros e aguarelas

Apesar de ter sido muito intransigente com o filho mais velho, Carlos, Filipe criou excelentes relações com os dez netos. O príncipe William descreve-o como uma "lenda" e a princesa Eugénia como "incrível". Considerado o patriarca de sua família, tornou-se o mentor de membros da realeza mais jovens. Foi ele quem convenceu William, então com 15 anos, e Harry, com 12, a participarem no cortejo fúnebre no funeral da mãe, a princesa Diana, em 1997, e acompanhou os dois netos no momento mais difícil das suas vidas.

Espirituoso, incontinente verbal e por vezes até insensível, o príncipe Filipe de Edimburgo tornou-se conhecido por ser o membro da família real britânica mais politicamente incorreto, não se contendo em dizer o que lhe vinha à cabeça – situação que deu origem a livros sobre as suas gafes. Casado com a rainha de Inglaterra, caminhou atrás dela durante 73 anos, embora nos bastidores tenha tido o poder de a influenciar em decisões importantes. Amante de pintura, de poesia, de cavalos, de literatura, de jazz e de cerveja, o príncipe consorte mais longevo do Reino Unido retirou-se da vida pública no outono de 2017, mas continuou a ser notícia pelas suas "saídas" inconvenientes, que os subditos adoravam e que faziam dele uma das figuras mais populares dos Windsor. Refugiou-se em Sandringham, com os seus livros, aguarelas e reuniões privadas. Há precisamente um ano interrompeu o seu retiro voluntário para agradecer aos profissionais de saúde que lutavam na linha da frente contra a pandemia.

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