Sábado – Pense por si

Paulo Lona
Paulo Lona Presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público
26 de agosto de 2025 às 07:43

Gaza e a erosão do Direito Internacional

Quando tratados como a Carta das Nações Unidas, as Convenções de Genebra ou a Convenção do Genocídio deixam de ser respeitados por atores centrais da comunidade internacional, abre-se a porta a uma perigosa normalização da violação da lei em cenários de conflito.

A situação na Faixa de Gaza voltou a expor de forma crua as fragilidades do sistema internacional de justiça e a distância entre os princípios universalmente consagrados e a realidade no terreno. Perante o aumento contínuo das vítimas civis, os bombardeamentos indiscriminados, a fome generalizada e a destruição quase total de infraestruturas, a questão central já não é apenas a dimensão humanitária da crise, mas sobretudo a erosão progressiva da ordem internacional baseada no direito.

Apesar dos sucessivos alertas das Nações Unidas e das determinações expressas do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), Israel prossegue operações militares que, para além da destruição imediata, trazem consigo o risco real de deslocações forçadas em massa e condições de vida suscetíveis de comprometer a sobrevivência de uma parte significativa do povo palestiniano. O parecer consultivo do TIJ de julho de 2024 foi claro ao declarar a ocupação ilegal, afirmando que nenhum Estado ou organização internacional pode apoiar ou assistir a sua manutenção. Poucos meses depois, em maio de 2024, uma ordem vinculativa exigiu a suspensão imediata das ofensivas em Rafah, precisamente para impedir que se impusessem à população condições que a poderiam conduzir à destruição física. Estas determinações permanecem, até hoje, ignoradas.

À primeira vista, esta realidade pode transmitir a sensação de impotência da justiça internacional. Mas a questão mais profunda é outra: o incumprimento destas decisões mina a credibilidade do próprio edifício jurídico erguido nas últimas décadas para prevenir as atrocidades que marcaram o século XX. Quando tratados como a Carta das Nações Unidas, as Convenções de Genebra ou a Convenção do Genocídio deixam de ser respeitados por atores centrais da comunidade internacional, abre-se a porta a uma perigosa normalização da violação da lei em cenários de conflito.

A União Europeia não pode permanecer passiva perante esta erosão, dada a sua responsabilidade como ator global. O respeito pelos direitos humanos e pelos princípios democráticos transcende o plano político — é uma obrigação jurídica vinculativa. O Acordo de Associação UE–Israel estabelece no seu artigo 2.º que esses valores constituem uma cláusula essencial das relações bilaterais. Ignorar a persistência de violações massivas mina não só a credibilidade da política externa europeia, mas também os próprios princípios fundadores do projeto europeu.

A Associação de Magistrados Europeus pela Democracia e Liberdades (MEDEL) manifestou, em comunicado recente, grave inquietação pela dramática deterioração da situação na Faixa de Gaza. A MEDEL formula um duplo apelo: primeiro, o fim imediato da escalada militar e das suas consequências devastadoras para os civis em Gaza; segundo, que a comunidade internacional demonstre claramente que os mecanismos de justiça internacional são instrumentos eficazes de responsabilização, não meras declarações simbólicas. Fortalecer estes mecanismos significa defender um sistema multilateral que, apesar das limitações, constitui a única salvaguarda contra a repetição das tragédias históricas.

Mais do que um conflito localizado, Gaza tornou-se hoje um teste decisivo à vontade política dos Estados e das instituições internacionais de manterem vivas as regras universais em que assenta o direito internacional. Ceder perante a violação sistemática destas normas significa aceitar um mundo em que o mais forte impõe a sua lei, mesmo à custa da vida de populações inteiras. Reafirmá-las, pelo contrário, é a única forma de assegurar que a justiça ainda pode ser um pilar de paz e dignidade humana.

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