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Profissionais negros na televisão portuguesa? Existem, mas ainda são poucos

Margarida Gaidão com Ana Bela Ferreira 18 de agosto de 2022 às 20:00
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Investigadora fez, em 2017, um levantamento e estudo do número de profissionais negros nas televisões nacionais e concluiu que a sua escassez não espelha a realidade. Helena Vicente admite que o panorama mudou, mas muito pouco e ainda está distante do que poderia ser.

Na sua dissertação de mestrado, "Presença e perceções dos profissionais negros nos programas de informação e entretenimento na televisão portuguesa", Helena Vicente analisou os anos de 1992 a 2017 e concluiu que apenas 16 profissionais afrodescendentes trabalhavam na televisão portuguesa, num universo de 23 canais - RTP (1,2, 3, Açores, Madeira, Memória, Internacional e África), SIC (Notícias, Mulher, Radical, Internacional e Caras), TVI (24, África e Internacional), CMTV e MTV Portugal, Canal Panda, Foxlife e 24 Kitchen. De fora ficaram aqueles que trabalhavam somente para a RTP África – 20.

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Cinco anos depois da sua investigação, admite que hoje já se veem mais profissionais negros nos ecrãs nacionais. "Pergunto de onde apareceram? Não havia profissionais ou os canais não estavam interessados em colocá-los na área?"

A investigadora, em conversa com a SÁBADO, admite haver mais pessoas na área mas não o suficiente para existir uma representatividade. Considera a televisão um espaço que "não permite assim tanta mobilidade, sendo um sector profissional difícil de furar, onde são poucas as pessoas que conseguem estar no meio, tornando-se ainda mais complicado para a população racionalizada".

Porém, nem tudo é mau, e Helena Vicente, que hoje trabalha na banca, acredita que tem existido uma preocupação dentro dos media para falar desta temática, o que fez com que o tema tenha vindo a ser bastante debatido.

As dificuldades a ultrapassar

Ainda assim, garante que as pessoas negras continuam a ser conotadas como não sendo cidadãos portugueses fazendo com que muitas vezes não sejam empregadas em várias áreas.

"Cada minuto é dinheiro, em televisão. As pessoas negras não eram vistas como capazes de rentabilizar nem um minuto - Talvez por isso não houvesse representatividade", diz Helena Vicente, acreditando que pela insistência e exigência social está-se a produzir uma adaptação da televisão às "demandas" da sociedade. "As pessoas precisam de modelos. Se os jovens veem mais pessoas negras na televisão, vão-se sentir capazes e ver como uma possibilidade estarem ali também", justificava Helena Vicente na sua dissertação, lamentando que ainda existissem estereótipos de que pessoas negras só podem trabalhar nas limpezas ou que jornalistas negros só podem trabalhar na RTP África.

"Não só impacta positivamente o canal como o telespectador, o facto das pessoas se relacionarem a nível de pertença étnica ou racial fará com que mais pessoas se identifiquem e consumam o canal e, por sua vez, com que futuramente os jovens queiram estar naquela posição", afirma a investigadora.

Helena Vicente garante que a maior visibilidade de profissionais negros falantes de português, não necessariamente portugueses, pode contribuir para a eliminação dos sentimentos intergeracionais de domínio e não pertença das populações afrodescendentes em Portugal. Vincando que é através da televisão, assim como nos outros meios de comunicação, que se espelha os valores e contra-valores de uma sociedade, e igualmente se cria e se constrói uma imagem de representação coletiva e de identidade nacional.

Sobre os dias de hoje, aponta: "Se fizesse agora um mapeamento quantitativo tal como fiz em 2017, poderiam ter surgido mais meia dúzia de pessoas. Porém isso não é assim tão significativo quanto possa parecer".

Numa análise à distribuição dos profissionais negros na televisão portuguesa e o estatuto dos lugares ocupados por este conjunto de profissionais, a investigadora concluiu com a sua dissertação que existe segregação nos canais portugueses, "verificando-se um padrão de quase inexistência de pessoas negras na televisão e quando existem são transmitidos em horários de menor visibilidade, em formatos repetidos e concentram-se esmagadoramente na RTP África e nunca como protagonistas. Contudo, é possível notar que a situação tem melhorado".

Deparou-se com a existência de um bloqueio de acesso, na área do entretenimento e da informação, dos profissionais afrodescendentes aos canais portugueses, principalmente nos canais privados. "Existe uma separação entre os portugueses e as notícias sobre Portugal e os negros e as notícias sobre África."

Helena Vicente dá como exemplo a RTP África para mostrar como não se inclui as notícias acerca de África nos meios de comunicação, por isso mesmo é que Portugal tem um canal dedicado "à chamada África lusófona e os advogados, comentadores e apresentadores negros só são convidados para falarem acerca de temáticas africanas, como se não tivessem legitimidade para falar sobre a sociedade portuguesa."

A autora do estudo acredita que se cria a perceção de que os negros não fazem parte da memória coletiva nem da realidade atual de Portugal e mesmo havendo sinais que possam indicar a mudança de padrão, descreve que o discurso visual transmite-nos que a população portuguesa é apenas branca, que a ascensão social é permitida aos profissionais brancos e, consequentemente, o profissionalismo é uma qualidade daqueles que permanecem nos canais portugueses e nos horários de maior audiência.

Assim, encontrou "legitimidade" para afirmar que existe racismo nos media portugueses, mais concretamente na televisão, por se observar uma "quase marginalização" das pessoas que representem a diversidade étnico-racial caracterizante da sociedade portuguesa.

"O ato do racismo, neste caso, não é explícito por palavras ou ofensas diretas a determinados membros residentes em Portugal, mas sim, de forma "subtil", através de um pano de fundo quase totalmente branco e português que cobre a maioria dos canais televisivos, no fundo, uma forma de racismo institucional", descreve Helena Vicente, acrescentado que através da invisibilidade de profissionais pertencentes às minorias étnico-raciais é emitida uma mensagem simbólica de que não pertencem àquele espaço.

"Por estas razões, constrói-se uma dúvida acerca da sua competência e questiona-se o possível sucesso na área - o sistema que nos é apresentado pelos vários canais de televisão é o reflexo de um sistema que discrimina tendo como base a cor da pele."

"Ser a única significa algo"

Na sua experiência profissional, a autora do estudo diz nunca se ter sentido discriminada pelo tom de pele, apenas sentiu o facto de não haver mais pessoas nos lugares onde estava. Helena Vicente, que estudou comunicação social, via essa questão como um indicador mas não necessariamente contra si. "Mais por esta invisibilidade ser uma questão transversal e mais estrutural do que propriamente individual. Eu estar ali significa alguma coisa, ser a única também significa algo", reconhece.

Dos 20 anos que viveu em Lisboa foi percebendo que não existiam pessoas como a própria na televisão e à medida que foi crescendo, foi constatando em que lugares estão estas pessoas negras, em que géneros televisivos estas pessoas trabalham e em que horários.

No estudo conseguiu apenas trabalhar um grupo, "vou chamar-lhe pequeno, porque quando falo em diversidade o meu objetivo não era só falar de pessoas negras mas sim olhar para pessoas não brancas que fazem parte da sociedade portuguesa, mais concretamente em Lisboa, a realidade lisboeta que não via espelhada na televisão", descreve.

Foi por crescer em Lisboa, ter frequentado diferentes escolas, ver pessoas como a ela nesses espaços e muitos em vários outros lugares que se deparou com um "desfasamento" entre a realidade vivida e a realidade televisionada.

"Entrevistei apenas jornalistas e apresentadores de televisão mas se pensar na ficção percebo que as pessoas negras em televisão, séries, cinema, novelas ou faziam de empregada ou no caso dos homens de bandidos ou pessoas problemáticas de bairros sociais."

O seu foco foi sempre conhecer o percurso das pessoas que chegaram à televisão, perceber se fizeram estágio em comunicação ou televisão, se eram formadas, perceber a questão de liderança e direção de equipas, saber porque estão num determinado tipo de formato, qual é o seu desenvolvimento profissional, se chefiam alguma equipa, se têm algum cargo na direção, no caso de pessoas com alguns anos de experiência, se têm autonomia para escolher que programa vão fazer ou que assuntos abordam.

Com a investigação verificou que não existiam profissionais negros nestes cargos ou com este tipo de responsabilidades até ao momento da dissertação, há exceção de um freelancer e de duas pessoas ligadas às temáticas de racismo.

A investigadora diz que a televisão transparece o que vivemos e que apesar de se ter passado 50 anos após o 25 de Abril e de haver maior massa de pessoas negras em Portugal, o reflexo do período colonial e de escravatura, ainda impactam a nossa realidade social. Sente que ainda existe preconceito na televisão, e que esta é um espaço que funciona muito por recomendações.

Em comparação a outros países, Helena Vicente acha que Portugal está mais "atrasado" dando como exemplo de diversidade os canais franceses, do Reino Unido, EUA, e do Brasil. Descreve que nos canais internacionais que analisou é possível observar pessoas negras, brancas, asiáticas, de etnia chinesa, de alguma forma espelhadas na televisão.

"Não vemos um pano branco como em Portugal. Em toda a linha até chegar ao consumidor há pouca representatividade. Se com este levantar de bandeira, os profissionais apareceram é sinal que eles já existiam só não queriam apostar neles", frisa Helena Vicente.

A própria admite que a investigação teve um impacto em si. "Costumo dizer que saí de um estado de cegueira para debater e questionar este tipo de situações".