Sábado – Pense por si

O corajoso povo ucraniano que venceu o Prémio Sakharov

João Carlos Barradas analisa a evolução do povo venceu o prémio do Parlamento Europeu, do século IX aos tempos atuais.

O povo ucraniano foi o vencedor do Prémio Sakharov 2022. A distinção foi anunciada pela presidente do Parlamento Europeu Roberta Metsola. Leia a análise de João Carlos Barradas. 

REUTERS/Jorge Silva

Por duas crenças antagónicas do que sejam povo e nação morre-se e mata-se na Ucrânia e terão de passar gerações antes de serem reinventados outros mitos.

A guerra envolvendo ucranianos, russos e bielorussos começa pela reivindicação da herança primordial da Rous.

O reino fundado no final do século IX por guerreiros viking, agregando tribos de línguas eslavas, nórdicas e fino-úgricas, que ao longo de cerca de três séculos acabaria por abarcar terras do Mar Branco ao Mar Negro, está na origem de tudo.

Essa Rous, com a sua capital na Kiiv de ucranianos - a Kiev de russos e a Kiey de bielorussos -, é a comum matriz civilizacional a partir do ano de 988 com a conversão do príncipe Volodimir – o Vladimir russo e o Uladzimir bielorusso – ao cristianismo de Bizâncio.

Neste oitavo ano de guerra celebrou-se, pela primeira vez, o 28 de Junho, Dia do Estado Ucraniano, em honra dos "mais de mil anos de história contínua do estado ucraniano", coincidindo com o Dia do Baptismo da Rus de Kiiv – Ucrânia em louvor de Volodimir I, O Resplandecente, honrando-se, ademais, os monges Cirilo e Metódio evangelizadores dos eslavos e criadores um alfabeto próprio.

Por oposição à pretensão de Moscovo de representar a herança comum do cristianismo ortodoxo, como a messiânica Terceira Roma, consagrada após a queda de Constantinopla à mãos do Turcos, em 1435, Kiiv reivindica outra linha de continuidade histórica.

Muita história e imensos ódios

Putin é a ideia essencialista em que povo e nação se confundem, do líder providencial reunificador de um estado poderoso de todos quantos foram abençoados pelo contacto com a língua e cultura russas, únicas e lídimas herdeiras da Rousprimordial, e baluarte de valores cristãos contra o satanismo ocidental.

Em Kiiv destaca-se, pelo contrário, a história que une o primeiro grande reino dos eslavos orientais, a partir do século IX e as entidades subsequentes à sua desagregação, passando pelo Principado e Reino da Galícia-Volínia (séculos XII a XIV), o Hetmanato Cossaco (séculos XVII e XVII), a República Popular Ucraniana (1917-1920), a República Popular da Ucrânia Ocidental (1918-1919) e a Ucrânia Carpática de 1939.

Sem abandonar mitos de alegado carácter nacional – celebrando, por exemplo, a autonomia igualitária e individualista de comunidades rurais alheias às prepotências de um estado imperial – o nacionalismo ucraniano, aspirando a um renascimento cultural, ao reconhecimento da dignidade da língua e a um estado independente, manifesta-se a partir do século XIX.

O projecto político de intelectuais como o historiador ucraniano Mikhailo Khujevskii traz, no entanto, uma componente de nacionalidade cívica até então inexistente.

Um estado independente tinha de se diferenciar substancialmente da Rússia Imperial em que a supremacia russa se impunha a uma infinidade de etnias, tribos e povos, incluindo eslavos como os camponeses e cossacos da Ucrânia, terra fronteiriça.    

Impérios e sovietismo

A Ucrânia que veio a integrar a partir de 1922 a União Soviética fora repartida pelos impérios dos Habsburgos, cuja marca é evidente nas regiões ocidentais e na grande cidade de Lviiv - a Lemberg austríaca - e dos Romanov russos.

A afirmação como estado independente, após a Grande Guerra, falhou em grande medida devido às clivagens regionais e étnicas que se confundiram com o confronto político-ideológico.

As estepes a leste do rio Dnieper, com a exploração iniciada na segunda metade do século XIX de minas e a criação de siderurgias na Bacia Carbonífera do Donetsk, o Donbass, eram já região de emigração russa que se acentuaria nos anos 30 com a industrialização da era stalinista.

Bem diferente era Odessa que se afirmaria como a capital cosmopolita da Novorossiia, a região a norte do Mar Negro conquistada pela imperatriz russa Catarina ao Império Otomano nas guerras de 1768-1774.

Porto de exportação de cereais, cidade de ucranianos, russos, judeus, gregos e de quem mais lá aportasse, Odessa passou pelos transes da guerra civil, que também envolveu polacos e checos, da ocupação romena e nazi que massacrou a população judia e cigana da Ucrânia.        

Holodomor – o morticínio pela fome – é outro trauma e dramática marca identitária da Ucrânia.

A colectivização stalinista da agricultura que entre 1932 e 1933 chacinou quatro milhões de camponeses, 16% da sua população ucraniana, cala fundo e tal como a catástrofe de Tchernobil, em 1986, tornou-se argumento vital nos confrontos do colapso da União Soviética para a mobilização independentista.

A avaliação do que representa a resistência anti-russa e anticomunista dos anos 40 e 50, em que se destacou a extrema-direita pró-nazi, anti-polaca e anti-judia da União dos Nacionalistas Ucranianos, de Stepan Bandera posteriormente desavindo com os ocupantes alemães, é outro pomo de discórdia que envenenará por décadas as relações entre ucranianos, russos e países como a Lituânia, Letónia, Belarus, Polónia, sem falar da Alemanha e Roménia.

Fé de uns e de outros

A emancipação do Patriarcado de Moscovo, a que a igreja ortodoxa ucraniana estava submetida desde 1686, alimentou, por seu turno, paixões consentâneas com uma fé religiosa muito exposta politicamente.

Em janeiro de 2019, Bartolomeu, Patriarca Ecuménico de Constantinopla – primeiro entre iguais no seio das igrejas ortodoxas – concedeu, por fim, a independência eclesiástica almejada pelo patriarcado de Kiiv.

Os crentes ortodoxos, cerca de 75% dos 43 milhões de ucranianos, seguem agora o Metropolita Epifânio de Kiiv e de Toda a Ucrânia ou o Metropolita Onófrio, Primaz da Igreja Ortodoxa Ucraniana, submetido ao Patriarcado de Moscovo.

A invasão de fevereiro acentuou divergências, com Onófrio recusando secundar o apoio do Patriarca de Moscovo, Círilo, à guerra de Putin.

Epifânio defende a independência da Ucrânia, bem como os clérigos das minorias greco-latinas e católicas, seguidoras de Roma, além dos rabinos dos cerca de 200 mil membros das comunidades judias.

O Metropolita Pantaleão de Lugansk e Alchevsk, o Arquimandrita João Prokopenko, abade do Sagrado Mosteiro de Melitopolis, e o Arquimandrita Alexei Fedorov, abade da Catedral da Dormição da Virgem Maria, de Kherson, estiveram presentes, no entanto, na cerimónia no Kremlin, a 30 de setembro, assinalando a anexação de territórios ocupados.

As línguas do povo 

Na língua, por onde quase tudo começa e acaba, a viragem dos últimos anos é assinalável.

O ucraniano foi proclamado única língua oficial em 1989, dois anos antes da independência, com garantia de protecção constitucional às demais línguas do país (russo, tártaro da Crimeia, moldavo, húngaro, etc.), conforme se veio a verificar em 1996.

A adopção a partir da adopção em 2019, sob a presidência de Petro Poroshenko, da Lei sobre o ucraniano como língua de estado, gradualmente extensível a todas as esferas públicas, acabou por ser ultrapassada pelos acontecimentos.

Desde fevereiro é patente o uso ostensivo, por orgulho e desafio, do ucraniano, num país onde as estatísticas indicavam que, antes da invasão, 62% assumia o ucraniano como língua de uso corrente e 35% o russo.

O imenso cisma cultural e linguístico entre os ucranianos em desafio à agressão, russos e bielorussos, sob regimes ditatoriais, faz-se sentir em todos os domínios e afecta inclusivamente o relacionamento entre as comunidades residentes, refugiadas ou deslocadas no estrangeiro, seja na Polónia ou na Geórgia.  

A maldição do secretário-geral 

A intransigência quanto a negociações advogada pela grande maioria dos ucranianos cedo ou tarde terá de levar em conta a questão da Crimeia.

A península de maioria russa, cuja população tártara fora deportada para a Ásia Central e Sibéria em 1944, foi transferida pelo secretário-geral do Partido Comunista Nikita Khrutshov, em 1954, da Rússia Soviética para a Ucrânia Soviética.

O expediente de Krutshov, onze meses após a morte de Stalin, para obter o apoio do secretário-geral do Partido Comunista da Ucrânia, Oleksii Kirichenko, contra o primeiro-ministro Georgii Malenkov na luta pela liderança, redunda hoje num impasse tremendo.

A anexação da Crimeia por Moscovo, em 2014, em violação da lei internacional, surge como diferendo em que, sejam quais forem as próximas mudanças políticas na Ucrânia e na Rússia a tentação irredentista se fará sentir.

Uma comunidade de destino

Abundam os sacrifícios e fúrias a demonstrar que a esmagadora maioria dos ucranianos, sob a chefia de um presidente judeu, ateu, oriundo da comunidade russófona, se mostram dispostos a resistir a uma guerra de aniquilação.

A existência da Ucrânia como comunidade política dotada de estado independente é a garantia da existência de um povo ou povos de nação entidade como entidade multi-étnica e multi-religiosa.

A guerra avivou, pelo menos até agora, a consciência de que as gentes da Ucrânia partilham uma comunidade de destino.

É esse o doloroso plebiscito quotidiano dos povos que, com seus desvarios, ilusões, empenhos e solidariedades, define uma nação.

Artigos Relacionados