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O que liga Francisco Louçã, Kiko is Hot, chocolate do Dubai e capitalismo tardio?

Pedro Henrique Miranda
Pedro Henrique Miranda 27 de março de 2025 às 07:59
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O que é que a recente tendência de chocolate inflacionado pode dizer-nos sobre o tempo em que vivemos? Francisco Louçã e Kiko is Hot tentaram explicar

Foi, talvez, a iniciativa de propaganda política mais comentada dos últimos dias. O Bloco de Esquerda pode estar a arregimentar as suas figuras históricas para disputar as próximas eleições legislativas - Francisco Louçã, Fernando Rosas ou Luís Fazenda entre eles -, mas isso não impede o partido de continuar a direccionar a sua mensagem às camadas mais jovens.

António Cotrim/Lusa

Foi o que aconteceu num vídeo amplamente difundido nas redes sociais TikTok e Instagram, em que Louçã, que coordenou o Bloco entre 2005 e 2012 e candidata-se agora ao hemiciclo pelo círculo eleitoral de Braga, reage a um vídeo em que o influenciador digital Kiko is Hot experimenta a maior tendência alimentar do momento: o chocolate do Dubai, chocolate de leite com creme de pistachio, knafeh e tahini.

No vídeo, Kiko afirma que "o facto de ter gasto €25" no chocolate, cujo preço tem aumentado exponencialmente graças à sua popularidade nas redes sociais, "prova que estamos claramente num late stage capitalism", uma deixa aproveitada por Louçã para avançar a causa de um partido político cujo discurso se tem centrado no combate aos problemas deste capitalismo tardio que sentimos hoje: a habitação, a desigualdade económica ou a precariedade laboral.

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Avisa, ainda assim, que o fenómeno do chocolate do Dubai não é mais do que "o capitalismo como ele foi desde sempre", remetendo a análise para Karl Marx e o seu diagnóstico de um mundo em que "tudo passava a ser uma mercadoria" a ser "comprável e vendável para criar uma ilusão" de um consumo "tantas vezes inútil e tantas vezes enganador" - um diagnóstico que, para muitos na esquerda, incluindo Louçã, continua tão verdadeiro hoje quanto era no nascimento do marxismo, em meados do século XIX.

O chocolate do Dubai é, em muitos aspectos, o exemplo perfeito desse fenómeno a que hoje chamamos "consumismo", estado de coisas em que a aquisição de bens de consumo se desliga dos objetivos de satisfação de necessidades e demonstração de estatuto, sendo elevado a um valor em si mesmo. O aumento do consumo como bem intrínseco, potenciado pelo aumento da produção e que potencia o aumento dos lucros, está na base do capitalismo como sistema económico.

A vontade da compra do chocolate é, no contexto moderno, imposta pela tendência - o fenómeno viral das redes sociais que o retrata como apetecível, inflacionando o seu preço para várias vezes o seu valor real. O produto em si até pode ser "bom", como diz Kiko no seu vídeo original, mas a compra essencialmente vápida não o "fez esquecer o vazio existencial" da sua vida, como refere, com algum humor.

Capitalismo tardio

Mas se o capitalismo clássico é a mercantilização de tudo - "o trabalho, a moeda, a natureza", como diz Louçã no vídeo viral -, o candidato explica que "talvez a maior diferença de todas do late stage capitalism seja que nos vendemos a nós próprios como mercadoria", uma ideia não totalmente alheia à vivência dos nossos tempos. "É a nossa atenção, é a nossa vida que passa a ser consumida", diz, um fenómeno cujo primeiro exemplo é, ironicamente, o das próprias redes sociais.

Ainda que seja usado num sentido muito propriamente contemporâneo, o termo "late stage capitalism" foi cunhado há quase cem anos pelo sociólogo alemão Werner Sombart, e viria a ser popularizado no pós-Segunda Guerra por pensadores da área da esquerda, para descrever uma nova ordem do sistema económico e social num Ocidente em desenvolvimento vertiginoso - embora nunca tenha havido um consenso sobre que nova ordem era essa. 

Enquanto alguns viam o capitalismo em implosão, no seu último fôlego - uma visão que viria a ser desmentida pela História, já que o sistema vigora até hoje em todo o mundo, com algumas variações - outros liam-no como uma convulsão, transformação ou reinvenção do capitalismo perante uma nova realidade social, tecnológica e financeira. Certo é que o termo permanece em uso até aos dias de hoje, e se a tradução mais comum para português é a de "capitalismo tardio", talvez seja mais correto chamá-lo de "capitalismo avançado".

Ao passo que os efeitos nefastos do capitalismo arrancaram no século passado - a desregulação da economia a que devemos a crise financeira global de 2008, a aceleração das alterações climáticas ou a crescente abismo financeiro entre ricos e pobres -, o capitalismo tardio como o entendemos hoje é sentido como muito próprio do século XXI: a "Uberização" do mercado de trabalho (um fenómeno a que o próprio Louçã já aludiu), a gentrificação dos grandes centros urbanos ou a venda, por parte dos gigantes tecnológicos, dos próprios consumidores como produto aos anunciantes.

É um estado de coisas que se presta a leituras bastante distópicas, e que continua a inspirar reflexões na nossa ficção: os cenários apocalípticos da interação entre tecnologia, humanidade e capitalismo de Black Mirror, a valorização da produtividade como valor supremo de Severance, a mercantilização do próprio corpo do recente Mickey 17. À sua maneira, todos apontam para a mesma conclusão de Louçã no vídeo propagandístico: "Talvez este seja um bom momento, Kiko, para falarmos sobre o combate ao capitalismo".

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