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Ex-vice-presidente angolano e filha perdem recurso. Editora portuguesa e autor absolvidos

Raquel Lito
Raquel Lito 05 de dezembro de 2024 às 07:00
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Bornito de Sousa e Naulila acusaram de difamação o jornalista britânico Oliver Bullough e a editora que publicou a versão portuguesa do seu livro. Tentaram várias instâncias, alegando que a liberdade de expressão não era "ilimitada". Em causa estavam as críticas aos gastos da então noiva: quase 200 mil euros em vestidos. Perderam.

Foram três anos de litigância e um rol de testemunhas inquiridas (13, sete da acusação e seis da defesa), ao longo de três audiências de julgamento durante dias inteiros. Alegações de centenas de páginas, longos articulados, etc. Em algumas sessões houve necessidade de intérpretes para fazerem a tradução simultânea de português para inglês, porque um dos réus, Oliver Bullough, ouvido por vídeochamada, é autor e jornalista de investigação britânico. O outro réu era a editora 20l20 (atualmente PRH grupo editorial).

D.R.

Em causa estava a versão portuguesa do livro de não-ficção Moneyland, ou País do Dinheiro – A História dos Super-ricos e Corruptos Que Estão a Roubar o Mundo e a Destruir a Democracia (399 páginas), lançada em novembro de 2019. 

Como começou: sentindo-se visados pelo título, subtítulo e capítulo 14 do referido livro, Bornito de Sousa (antigo n.º 2 da República de Angola durante a presidência de João Lourenço) e a filha Naulila Katika (empresária) avançaram com uma queixa por difamação contra o autor e a editora, nos tribunais portugueses.

Na petição inicial, de agosto de 2021, pediram 750 mil euros de indemnização, por danos não patrimoniais, e que fossem retirados os exemplares de circulação. Em primeira instância, perderam. A juíza Maria Isabel Póvoa absolveu os réus na sentença de 9 de janeiro de 2024, no Juízo Central Cível de Sintra.

Recurso para o Tribunal da Relação 

Recorreram em segunda instância para o Tribunal da Relação de Lisboa. Sofreram, dizem, devido aos "sentimentos de embaraço, ansiedade e estado clínico depressivo, tendo evitado/reduzido os contactos sociais e/ou políticos e diplomáticos, em consequência clara da descredibilização em face quer da opinião pública, quer do seu círculo pessoal e profissional".

D.R.

Alegaram ainda que o direito à liberdade de expressão "não é ilimitado, e não pode prevalecer sobre os direitos fundamentais dos cidadãos ao bom nome e reputação, quando a ofensa seja suscetível de invadir o núcleo essencial destes outros direitos fundamentais de forma desmedida, desproporcional e sem motivo atendível".

"Liberdade de expressão é respeitada", diz defesa

Voltaram a perder. A sentença de 12 de setembro passado, a que a SÁBADO teve agora acesso, assinada pelos juízes desembargadores (Laurinda Gemas, Carlos Castelo Branco e Inês Moura) condenou os autores do processo (Bornito e Nautila) ao pagamento das custas do recurso. Em última instância poderiam recorrer ao Supremo Tribunal de Justiça, mas havendo duas decisões anteriores no mesmo sentido ficariam sem hipótese. 

Francisco Teixeira da Mota, advogado de Oliver Bullough e da editora, diz à SÁBADO: "Era uma ação sem sentido, em termos legais, desde o princípio. Porque vivemos num país democrático, onde a liberdade de expressão, em geral, é respeitada."

A advogada Leonor Caldeira, que também defendeu os réus, acrescenta à SÁBADO que apesar "do desfecho positivo" o sistema judicial "deveria ter mecanismos mais fortes para travar o SLAPP [acrónimo inglês de Strategic Litigation Against Public Participation, traduzido por ações judiciais estratégicas contra a participação pública]. Ou seja, "pessoas com muito poder que tentam dissuadir pelos tribunais as pessoas que investigam, como jornalistas", explica a também cronista da SÁBADO

Os vestidos para a noiva 

No capítulo 14 do livro de Oliver Bullough, reproduzido nos autos, o autor recorda um episódio televisivo. A filha do ex-vice-presidente de Angola participou, de forma voluntária, no final da 13.º temporada do programa norte-americano Say Yes to the Dress (diz sim ao vestido), transmitido em maio de 2015.  

Colin McPherson/Corbis

À época, Naulila era uma das "três noivas VIP" com "orçamentos ilimitados", que se deslocara de avião de África para Nova Iorque para escolher o guarda-roupa do casamento. O destino: loja Kleinfeld Bridal, em Manhattan, com criações da designer de moda israelita Pnina Tornai.

No final do episódio, o narrador Randy Fenoli, diretor de moda, concluía: "Naulila gastou mais do que qualquer outra noiva na história da Kleinfeld, levando um total de nove originais Pnina Tornai, uma saia-surpresa, personalização e acessórios num total de mais de 200 mil dólares [ao câmbio atual, 189,9 mil euros]." 

Desigualdades apontadas 

Pouco depois do lançamento do livro em Portugal, o professor universitário e comentador televisivo Paulo Alexandre de Morais publicava na sua página do Facebook (a 20 de janeiro de 2020) um comentário aos gastos da noiva, em contraponto à situação de miséria em Angola. "Uma outra princesa de Angola: Naulila (...), gastou nos vestidos do seu casamento 200 mil dólares. Enquanto a larga maioria dos angolanos vive com menos de dois dólares por dia; a esperança média de vida é de 42 anos. E um quarto das crianças morre antes de fazer cinco anos." 

Três dias depois, retomava o assunto no noticiário das 20h da CMTV. A 24 de fevereiro do mesmo ano, Bornito de Sousa e Naulila reagiram. Enviaram uma carta a Paulo de Morais, exigindo que ele destacasse na sua página do Facebook que a informação era falsa. A 1 de abril de 2020, o visado reiterou na mesma rede social: "Não retiro o que afirmei. E não altero nem uma palavra, nem uma vírgula." 

O político e a filha angolanos instauraram um processo-crime contra Paulo de Morais, de difamação agravada com publicidade. Mas o Juízo de Instrução Criminal do Porto decidiu, a 16 de novembro de 2021, que o arguido não deveria ser submetido a julgamento por falta de indícios. Só houve uma audiência de debate instrutório. À época, os queixosos pediam uma indemnização de meio milhão de euros. A batalha judicial seguiu para o Tribunal da Relação, que confirmou a decisão de não pronunciar o arguido. Carlos Cal Brandão foi o advogado de defesa.

Entretanto, Bornito de Sousa e Naulila instauraram uma ação cível com o mesmo fundamento (ofensa ao bom nome e reputação), reduzindo o valor dos danos invocados para 250 mil euros. Após cinco sessões de julgamento, Paulo de Morais também foi absolvido. Desta sentença, a 3 de dezembro de 2023, foi interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a absolvição por acórdão de 3 de junho de 2024. 

À SÁBADO, Paulo de Morais reforça: "Em nenhum momento me arrependi do que disse, se fosse hoje teria dito o exatamente o mesmo". Mas foi "cansativo", admite: "Não acho justo que num país democrático uma pessoa seja alvo de bullying jurídico, porque os queixosos apresentaram ações distintas com o mesmo motivo". No fim de contas, "perde-se tempo e dinheiro, mas ganha-se satisfação pelas vitórias em nome da liberdade expressão".

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