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Como a Rússia utilizou o Brasil para rampa de lançamento dos seus espiões mais importantes

Gabriela Ângelo 23 de maio de 2025 às 12:12
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A busca aos agentes de inteligência russos intensificou-se depois da invasão à Ucrânia, levando à descoberta de vários espiões que se faziam passar por brasileiros para depois cumprir a sua missão em outros continentes. Um casal terá passado por Portugal.

Uma investigação do jornal norte-americano The New York Times, desvendou que a Rússia usava o Brasil como rampa de lançamento para os seus espiões de elite, conhecidos como os "ilegais". 

Vyacheslav Prokofyev, Sputnik, Kremlin Pool Photo via AP

Ao contrário de outras operações de espionagem russas reveladas no passado, o objetivo desta não era espiar no Brasil, mas sim para os agentes se tornarem brasileiros. Depois de obterem a identidade e se imergirem na cultura, iam para os Estados Unidos, para a Europa ou para o Médio Oriente e começavam a sua missão. 

Os "ilegais" são o nível de espionagem mais respeitado da inteligência russa. Meticulosamente treinados na Direção S do KGB, passam anos a assumir uma identidade falsa, conhecida em russo como "lenda", e depois aguardam ordens.

Na operação agora desvendada , os espiões desfizeram-se do seu passado russo, abriram empresas, fizeram amigos e arranjaram parceiros românticos, criando ao longo de vários anos identidades inteiramente novas. Nos casos desvendados pelas autoridades brasileiras, um era dono de uma empresa de joias, outro um modelo loiro de olhos azuis, outro foi aceite para estudar numa universidade norte-americana. Havia também um investigador brasileiro que arranjou trabalho na Noruega e até um casal que eventualmente veio para Portugal.

Os serviços secretos brasileiros passaram três anos a construir o seu caso contra estes agentes, tendo desvendado pelo menos nove oficiais russos que operavam sob identidades brasileiras, sendo que seis nunca tinham sido identificados publicamente. A investigação abrangeu pelo menos oito países, segundo as autoridades, com informações provenientes dos Estados Unidos, Israel, Holanda, Uruguai e outros serviços de segurança ocidentais.

A criação de uma nova identidade

Todos os espiões enfrentam o mesmo desafio, criar uma identidade falsa que resista a investigações e dúvidas. Durante anos os agentes secretos utilizaram passaportes falsos, nomes roubados e histórias bem ensaiadas, mas a era digital tornou as coisas um pouco mais complicadas.

Neste caso, o Brasil era o local ideal para os espiões de Putin criarem as suas novas identidades. Primeiro porque o passaporte brasileiro é um dos mais úteis e poderosos do mundo, permitindo viajar sem visto para quase tantos países quanto o norte-americano. Também a diversidade étnica do Brasil faz com que não se coloquem muitas questões sobre um loiro de olhos azuis com um sotaque português ligeiramente fora do normal.

Depois, enquanto muitos países exigem a verificação de um hospital ou médico antes de emitir certidões de nascimento, o Brasil permite uma exceção para as pessoas nascidas em áreas rurais desde que declare, na presença de duas testemunhas, que têm pelo menos um progenitor brasileiro.

Com a certidão de nascimento na mão, é apenas uma questão de requerer o registo eleitoral, os documentos militares e, finalmente, o passaporte.

A "Operação Este"

Em abril de 2022, depois da invasão russa à Ucrânia, a CIA informou a Polícia Federal do Brasil sobre um oficial russo nos Países Baixos que tinha aceitado um estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI). Na altura o TPI tinha iniciado uma investigação à Rússia sobre crimes de guerra cometidos na Ucrânia.

Ele tinha passaporte brasileiro sob o nome Victor Muller Ferreira e tinha tirado uma licenciatura pela Universidade de Johns Hopkins dos Estados Unidos, mas a sua identidade verdadeira era Sergey Cherkasov. Depois da sua entrada nos Países Baixos ter sido negada, o homem regressou a São Paulo.

Durante dias a polícia manteve-o sob vigilância e perante um mandado de busca, detiveram-no não por espionagem mas pelo uso de documentos fraudulentos. Durante o interrogatório Sergey defendia que era brasileiro e tinha os documentos oficiais para o provar, o seu passaporte era legítimo e estava inscrito para votar.

Contudo, tudo desabou quando a polícia encontrou o seu certificado de nascimento. Geralmente os espiões russos utilizavam identidades de pessoas que tinham falecido, muitas vezes bebés, mas desta vez Victor Muller Ferreira nunca tinha existido. O documento indicava que ele tinha nascido no Rio de Janeiro em 1989 e tinha uma mãe brasileira, uma mulher que existiu mesmo e que tinha morrido em 1992. Quando a polícia falou com a família dela eles revelaram que ela nunca tinha tido um filho.

Foi a partir daí que a polícia começou a procurar dentro do sistema, pessoas que intitularam de "fantasmas", ou seja, pessoas com certificados de nascimento legítimos, mas que tinham passado toda a vida sem qualquer registo de ter estado no Brasil e apareceram subitamente em idade adulta para recolher o seu passaporte ou documento de identidade. O que chamaram de "Operação Este"

Identidade desvendada

Um dos primeiros nomes a vir à tona foi o de Gerhard Daniel Campos Wittich. Ele encaixava o padrão de "fantasmas" que a polícia tinha identificado: o seu certificado de nascimento indicava que tinha nascido no Rio de Janeiro em 1986 mas apareceu do nada a querer levantar documentos em 2015.

Na altura em que os agentes começaram a investigá-lo, já tinha construído uma identidade convincente. Tinha uma empresa de impressão 3D, que construiu do zero, e passava longas horas a trabalhar no 16º andar de um arranha-céus, a um quarteirão do consulado norte-americano, na cidade carioca. A sua empresa cresceu de tal forma que começou a angariar clientes importantes como a estação de televisão brasileira Globo e até o exército. 

Mas ao longo do tempo, os seus colegas e amigos próximos começaram a notar algumas anormalidades. Gerhard nunca mantinha o seu computador ligado à internet quando não o estava a usar e parecia sempre ter mais dinheiro do que aquele que faturava com a empresa. Ia em viagens espontâneas à Europa ou à Ásia e gozava que ia fazer "espionagem industrial" sobre concorrentes da área, também não gostava de aparecer em fotografias. Veio a descobrir-se mais tarde que o seu nome verdadeiro era Artem Shmyrev. 

Em privado, Shmyrev estava aborrecido e frustrado com a vida à paisana. "Não há realizações reais no trabalho", escreveu numa mensagem à sua mulher russa. "Já há dois anos que não estou onde tenho de estar". A mulher, Irina Shmyreva, era também uma espiã, a trabalhar na Grécia. "Se querias uma vida familiar normal, bem, fizeste uma escolha fundamentalmente errada", respondeu, reconhecendo que as suas vidas enquanto espiões não era a que esperavam. "Sim, não é como foi prometido e é mau", escreveu,  "basicamente, eles enganam as pessoas. É desonesto e não é construtivo".

Seis meses depois, a Rússia invadiu a Ucrânia. De repente, os serviços secretos de todo o mundo começaram a trabalhar em conjunto e a dar prioridade à interrupção da espionagem do Kremlin e as vidas dos espiões russos espalhados por todo o mundo sofreram uma reviravolta. Primeiro foi Cherkasov, o estagiário que foi preso semanas depois da invasão. Depois, Mikhail Mikushin, que estava a ser investigado no Brasil, apareceu na Noruega e foi preso. Dois agentes russos foram detidos na Eslovénia, onde viviam sob identidades argentinas. 

No final de 2022, os agentes brasileiros estavam quase a chegar a Shmyrev, mas ele fugiu do país poucos dias antes da polícia o tentar prender. No entanto, Shmyrev tinha um bilhete de regresso com data de 2 de fevereiro de 2023. Os agentes obtiveram mandados de captura e ordens de busca para as suas moradas, para quando aterrasse em solo brasileiro, fosse logo preso. Mas ele nunca voltou.

Durante algum tempo, depois de deixar o Brasil, Shmyrev contactou regularmente os amigos e a namorada brasileira, mas no início de janeiro de 2023, as suas mensagens pararam. A namorada ainda publicou num grupo de Facebook chamado "Brasileiros em Kuala Lumpur", pedindo ajuda para o encontrar, mas não resultou em nada.

Quando Shmyrev não apanhou o voo de regresso ao Brasil, a polícia entrou em ação. Os agentes descobriram que tinha deixado para trás vários dispositivos eletrónicos com detalhes pessoais cruciais, incluindo as mensagens com a sua mulher russa e 12 mil dólares num cofre. Na mesma altura, a sua mulher deixou subitamente o seu posto de espionagem na Grécia, tendo sido exposta pouco tempo depois pelas autoridades gregas.

Cada vez que as autoridades brasileiras tinham recolhido provas e obtido autorização para ir atrás dos supostos espiões, eles fugiam. O mesmo aconteceu a um casal com cerca de 30 anos, que se apresentava como Manuel Francisco Steinbruck Pereira e Adriana Carolina Costa Silva Pereira, e que vieram fugidos para Portugal em 2018 e desapareceram. Anos depois a sua identidade verdadeira foi revelada: Vladimir Aleksandrovich Danilov e Yekaterina Leonidovna Danilova.

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