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Peter Haugan: "Quando o gelo derrete no Norte, o nível do mar sobe no Pacífico. É um bom exemplo da injustiça"

Ana Bela Ferreira, em Nice
Ana Bela Ferreira, em Nice 29 de junho de 2025 às 10:00
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O copresidente do grupo de especialistas do Conselho Científico Internacional para a Conferência dos Oceanos da ONU acredita que no futuro pode ser encontrada uma forma limpa de explorar o fundo do mar. Até lá o mais prudente e ficarmos quietos. O próprio testemunhou contra o seu país para evitar a mineração.

Peter Haugan é diretor de políticas do Instituto de Pesquisa Marinha da Noruega e professor do Instituto Geofísico da Universidade de Bergen, na Noruega. Foi também copresidente do grupo de especialistas do Conselho Científico Internacional (ISC, na sigal em inglês) para a Conferência dos Oceanos da ONU (UNOC3), que decorreu em Nice, de 9 a 13 de junho. Falou com aSÁBADOdurante a conferência sobre a importância da ciência para proteger o oceano e o ambiente, ao mesmo tempo que se garante a equidade entre populações.

ISC

Quais foram os principais contributos que o ISC trouxe para o UNOC? 

Temos muitas coisas, mas uma mensagem muito breve é que devemos atuar com base na ciência, quando a temos, utilizá-la e partilhar o conhecimento entre as diferentes nações. Partilhamos o oceano. Devemos também partilhar todos os dados, a informação, o conhecimento científico, e depois agir em conformidade. E nos casos em que não temos conhecimento, devemos usar o princípio da precaução. Devemos ter cuidado com as intervenções nos oceanos, em particular no mar profundo. 

O secretário-geral das Nações Unidas falou da dinâmica que nunca tinha visto antes para tomar medidas de proteção dos oceanos. Sente o mesmo?

Estamos a meio da década dos oceanos, a Década das Nações Unidas da Ciência dos Oceanos para o Desenvolvimento Sustentável, até 2030. Penso que os últimos cinco anos criaram uma maior dinâmica, em parte devido à década, em parte devido a alguns passos positivos que foram dados. Estamos a falar da proteção da diversidade biológica, em particular no mar profundo e no oceano aberto. Há uma convenção que foi negociada e os países estão a começar a ratificá-la. Isso é muito prometedor. É urgente atuar e as coisas não estão a correr tão depressa como deveriam. É melhor do que há cinco anos, mas é necessário que seja ainda muito melhor daqui a cinco anos.

António Guterres falou também do anterior tratado do oceano que demorou 12 anos a ser aplicado. E agora estamos a ver que talvez em dois, três anos pode ser a aprovado o tratado do alto mar. Acha que é possível que a UNOC crie essa urgência para que os países o ratifiquem? 

Sim, penso que sim. Quero dizer, muitos países fizeram-no mesmo antes de virem para cá, incluindo o meu próprio país, a Noruega, que conseguiu aprovar a tempo no Parlamento. Outros países disseram que já estão muito avançados no processo e que têm de usar um pouco mais de tempo. Por isso, estou otimista em relação a isso, pois precisaremos da ratificação de 60 países. E depois há também preparativos para a criação do organismo científico e técnico que irá apoiar este processo. Penso que temos de aproveitar esta dinâmica para criar conteúdos e não para discutir formalidades. Temos de passar à ação e podemos fazê-lo se utilizarmos a ciência para orientar a aplicação efetiva desta convenção. 

Podemos fazê-lo sem países como os Estados Unidos?

Temos de o fazer independentemente do que os Estados Unidos estejam a pensar. Não há maneira de sair disto. E este é o oceano para toda a gente. E os Estados Unidos, ao longo dos anos, mesmo que não tenham ratificado a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, têm atuado mais ou menos de acordo com ela. Por isso, é uma espécie de parte do regime jurídico que também se aplica nesse país. Temos de encarar a situação atual como uma anomalia e temos de trabalhar o mais possível para que todos os países participem também na aplicação deste novo acordo. 

Vemos algumas das economias do Norte a fazerem isso, a olharem para o oceano e a tentarem protegê-lo, enquanto o Sul pede mais desenvolvimento para as suas economias. É possível proteger o oceano a duas velocidades?

Quando falamos de um oceano sustentável e de uma economia sustentável do oceano, temas com os quais tenho estado a trabalhar, falamos frequentemente da saúde do oceano, que tem de ser boa. Precisamos de criar riqueza oceânica. E para aqueles que não o têm, temos de ter financiamento. Mas temos de ter equidade. Temos de ter o mesmo direito ao oceano para toda a gente. Isso inclui todas as pessoas, quer se encontrem em países pobres ou ricos. Por isso, penso que, na verdade, a distinção é talvez mais entre pessoas pobres e ricas do que entre países pobres e ricos. É claro que há mais pessoas pobres nos países pobres. Mas é um direito humano o acesso a um oceano equitativo, acessível e que funcione bem. É um património comum da humanidade. O património comum da humanidade não é apenas o acesso aos resultados comerciais do que fazemos no mar. É também um direito a um oceano que continua a viver e que tem todos os valores culturais além dos valores monetários. Mas sim, compreendo que, para as pessoas que não têm peixe ou carne para comer ou qualquer outra coisa, a primeira prioridade é obter isso. Mas também temos de dizer a todas as pessoas que só nos poderemos alimentar do oceano se este estiver a funcionar bem. Não podemos arriscar a destruição dos ecossistemas oceânicos ao avançar para as indústrias extractivas...

...Ao mesmo tempo, alguns desses países são os que estão a viver a realidade das alterações climáticas.

Sim, exatamente. Por exemplo, os pequenos estados insulares em desenvolvimento, muitos são em zonas muito baixas. Quando o gelo derrete, e tenho de explicar isto a muita gente, quando o gelo derrete, mesmo que derreta a norte, na Gronelândia, perto do meu país, o nível do mar sobe mais nos locais mais afastados do Pacífico, devido à compressão da terra-É muito injusto. É um bom exemplo da injustiça entre aqueles que emitem e não sofrem as consequências e aqueles que não causaram qualquer dano e sofrem as consequências. Por conseguinte, é perfeitamente legítimo pedir equidade e ajuda para enfrentar as consequências.

Há pouco falava da Noruega que ratificou o tratado do alto mar. Depois da discussão sobre minerar o fundo do mar. Como vê estas decisões?

O caso não está encerrado na Noruega no que diz respeito à exploração mineira em águas profundas. No ano passado, houve um processo judicial em que a WWF apresentou queixa contra o governo. Testemunhei neste processo judicial em nome da WWF como perito. O processo foi suspenso durante um ano. Temos uma nova eleição parlamentar e depois um novo processo judicial. Por isso, não sabemos como vai correr. Os cientistas dos oceanos acham que, se se pensar na exploração mineira em águas profundas, é preciso fazer uma avaliação do impacto ambiental que permita saber quais são as consequências. E o que sentimos fortemente é que isso não foi feito da forma que o ambiente merece, que as pessoas merecem e que, de facto, a lei exige. Por isso, pensamos que é necessário fazer muito mais para avaliar as consequências de potenciais atividades mineiras antes de se considerar sequer a exploração comercial. 

Pensa que será possível, um dia, fazer-se extração mineira em águas profundas sem tantos perigos?

Não o excluo. Não vou dizer que devemos proibir para sempre, de certeza que não, mas penso que ainda estamos a dar os primeiros passos e que há muito mais investigação a ser feita nas áreas onde existem estes nódulos. Existem diferentes formas de encontrar minerais no fundo do mar. Nódulos como pequenas batatas ou granadas de mão, com uma grande quantidade de minerais, encontram-se no fundo do mar. Pode imaginar-se que a tecnologia consegue apanhá-las sem perturbar demasiado, talvez. O que temos na Noruega são sulfuretos e crostas de manganês, que são bastante diferentes, e pode imaginar-se que, para as utilizar, é realmente necessário explorar, escavar, perfurar e trabalhar no fundo do mar. Penso que, se vier a acontecer, será muito provavelmente com estes nódulos antes de acontecer com as outras formas de minérios que temos. 

Precisamos de descobrir quais são as coisas fundamentais para nós nestes ecossistemas, como é que os ecossistemas estão estruturados, são muito diferentes dos ecossistemas que conhecemos perto da superfície, onde a luz do sol é o motor de tudo, o que não é o caso no fundo do mar. 

Começou na indústria petrolífera. Como é que isso moldou a sua carreira?

Já foi há muito tempo e devo admitir que mudou mais porque eu era um cientista que estava mais fascinado pelo oceano. Fascinado pelas correntes oceânicas, pela variabilidade, pela forma como as coisas acontecem. Fiquei mais fascinado com isso do que com o facto de estar a estudar o fluxo de petróleo, gás e água nos reservatórios da geologia. Portanto, era mais uma curiosidade científica. De qualquer forma, comecei por aí e já não estou lá.

Considera que a era dos combustíveis fósseis chegou ao fim ou ainda estamos longe? 

Em primeiro lugar, tem de chegar ao fim. Em segundo lugar, penso que, do ponto de vista técnico e económico, existem boas razões para avançarmos para as energias renováveis e para pouparmos energia através de várias tecnologias. E a única coisa que nos faz recuar são as estruturas de poder, os investimentos. E isso atrasa a transição. O custo nivelado da energia que se pode obter da eletricidade é inferior ao dos combustíveis fósseis. É, portanto, o caminho a seguir. É também uma fonte de energia que está distribuída de forma muito mais homogénea pela Terra. Muitos dos conflitos a que temos assistido historicamente no mundo têm a ver com combustíveis fósseis, com o acesso a esses combustíveis. 

Olhamos frequentemente para o oceano como um local onde podemos obter alimentos ou outros recursos, mas precisamos de um oceano saudável também para o clima. 

Esse é outro desafio. Precisamos de um oceano saudável para o clima, em parte porque o oceano absorve uma grande quantidade de CO2 da atmosfera. Se matássemos toda a biota do oceano, seria um desastre para o clima, porque muito CO2 sairia do oceano. Não estou a dizer que estamos a caminho de matar toda a biota do oceano, mas é importante manter estas estruturas e mantê-las em funcionamento, também para o clima, não só pela comida, mas também por outras razões.

Entre o início da sua carreira e o momento atual, quais são as diferenças que vê no oceano?

Estamos a ver corais a morrer. Agora temos quase a certeza de que grande parte dos corais tropicais desaparecerá neste século. Trata-se de uma mudança radical. Estamos muito mais conscientes do estado dos ecossistemas que suportam a pesca. Já sabíamos há 30 anos que as capturas de peixe estavam a começar a estabilizar e não iriam continuar a aumentar. E pensámos: "Muito bem, podemos gerir as pescas de modo a mantê-las assim". O que aprendemos desde então é que, mesmo que tenhamos uma retirada estável dos recursos haliêuticos, podemos ter criado outras alterações no ecossistema. Alterámos a distribuição etária e de tamanho destas unidades populacionais de peixes. Podemos ter alterado outras partes do ecossistema que tornam a captura de peixe mais resistente. E, por conseguinte, podemos ter um sistema mais frágil do que o que tínhamos anteriormente. Também nos tornámos muito mais conscientes da poluição por plásticos, que não era um problema há 30 anos ou mais, e da forma como essa poluição se junta a outros poluentes e como temos aquilo a que chamamos os impactos cumulativos. Se tivermos muitos tipos de stress no sistema e acrescentarmos um, esse pode ser o fator que o faz tombar e mudar drasticamente.

Paralelamente assistimos à recuperação de algumas áreas protegidas - o objetivo é ter 30% até 2030. Trata-se de um bom sinal ou de um sinal que pode afastar o público da urgência de agir?

Espero que isso não tire a urgência, porque a urgência está definitivamente lá. Quanto mais aprendemos, mais temos a certeza de que a urgência continua a existir. E sim, já vimos exemplos de áreas marinhas protegidas que funcionam na perfeição. Também vimos exemplos de chamadas áreas marinhas protegidas, que não são realmente protegidas, onde a pesca continua. E isso é que não faz sentido. O que vemos é que os ecossistemas dependem de algumas áreas onde não podem ser afetados. E se criarmos essas áreas, isso pode ter um efeito de arrastamento. É possível pescar fora desta zona, é possível fazer todas as atividades. Por isso, temos de continuar a trabalhar nesse sentido. Mas também precisamos de fazer, não podemos fazer, sabe, o que quisermos fazer nos restantes 70%. Também é necessário gerir de forma sustentável 100% da área do oceano para cada nação e para as águas internacionais além das fronteiras nacionais. 

O que gostaria de ver debatido na próxima UNOC?

Deixe-me contrastar, eu estive numa coisa chamada fórum de economia e finanças azuis que aconteceu no Mónaco, dois dias antes da UNOC, e havia muita gente boa, pessoas ricas que podem contribuir e fazer coisas boas. Depois estive num evento aqui no espaço público da zona verde de Nice sobre direitos humanos e artes no oceano como forma de conseguir o envolvimento da população. Sabe, a economia azul nas finanças era a sua centena de pessoas ricas. Os direitos humanos e as artes eram uns 20, sabe, a pesca artesanal, os pescadores e as pessoas dos países em desenvolvimento. O meu desejo é que, na próxima Conferência das Nações Unidas, os temas dos oceanos e dos direitos humanos e do acesso equitativo ao oceano por parte deste tipo de atores tenham um espaço e um contributo tão importantes para a ONU como a economia azul e as finanças tiveram este ano. Isso seria um sinal muito bom de que estamos a levar a sério a equidade e a distribuição do acesso ao oceano para todos.

A jornalista viajou a convite da Fundação Oceano Azul

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