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Cancro do Pulmão: "Achei que era um engano, nunca fumei. Sou doente terminal há três anos"

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No mês de sensibilização para este tipo de tumor, Filipe Paixão conta na primeira pessoa como recebeu o diagnóstico e a importância de haver um rastreio. Fez recentemente 40 anos e não sabe por quanto tempo conseguirá desafiar as estatísticas. O cancro do pulmão é o que mais mata, justamente porque a maioria se descobre muito tarde.

Fez 40 anos no passado dia 12 de outubro e há precisamente três anos - poucos dias antes do seu aniversário - recebeu um diagnóstico que julgava impossível para uma pessoa como ele. Filipe Paixão nunca fumou e achava que só os fumadores tinham cancro do pulmão. Estava enganado e quer sensibilizar outras pessoas como ele a estarem atentas - daí a razão deste testemunho. Até porque, quanto mais cedo for o diagnóstico, maiores são as possibilidades de sobrevivência. O informático, que vive em Fernão Ferro, e tem uma filha de 8 anos, tem desafiado as estatísticas, mas sabe que um tumor como o seu - que está no estadio mais avançado de todos - não tem bom prognóstico. Conta à SÁBADO na primeira pessoa como tem sido viver com a doença, e mais recentemente enfrentar os efeitos secundários, e também fala da importância de se implementar o rastreio em Portugal.

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"Achei que era um engano, nunca fumei. E pensava que era impossível ter cancro do pulmão sem fumar. Mas afinal não, até é relativamente comum, parece que 20% são pessoas que nunca fumaram – como eu. Saber por que razão me aconteceu é a pergunta de um milhão, há inúmeros fatores, como o estar exposto a tabaco e a poluição. Também há um elemento radioativo que é o radão, e o mais conhecido, que é o amianto. Mas nunca estive exposto.

O diagnóstico que recebi no dia 6 de outubro de 2022, prestes a fazer 37 anos, não deixava margem para dúvidas: o tumor primário era no pulmão esquerdo e tinha sete metástases cerebrais, e também no osso ilíaco. Fui diagnosticado em estadio IV e, pronto, sou doente terminal há três anos. Honestamente, não pensei que chegasse aqui, já desafiei algumas estatísticas. Como costumo dizer, sou uma pessoa estatisticamente morta.

É importante divulgar porque os sintomas podem passar despercebidos. A história é esta: estava no Algarve, tinha ido ao casamento de uma prima e fiquei num hotel. Estava na piscina com a minha mulher e a minha filha [que hoje tem 8 anos], a correr de um lado para o outro. Fiquei com uma daquelas enxaquecas persistentes, e bastante comuns, de quem fez esforços e não se alimentou bem. Desvalorizei. Mas, depois, à noite, quando estava a ler, reparei que a minha visão periférica estava esquisita. Aí somei uma coisa à outra e fiquei alarmado.

No dia seguinte, quando já tinha voltado a Lisboa, pesquisei no Google o que se poderia passar. Apareceu que podiam ser sintomas de um possível aneurisma – tinha-me dado jeito que fosse… Marquei uma consulta de neurocirurgia e, nessa consulta, o médico observou-me e pediu-me uma ressonância magnética ao cérebro. No dia em que fiz o exame, o técnico não me deixou levantar – pediu-me para esperar pela médica. Uma das metástases no cérebro tinha 4 centímetros, era do tamanho de uma laranjinha pequenina. Nesse dia não me adiantaram nada mas marcaram-me logo consulta para o dia seguinte, às 7h30 – e o hospital só abria às 8h. Mas o pior cenário nessa altura era o do aneurisma, efetivamente.

Quando recebeu o diagnóstico tinha já sete metástases no cérebro. Foi operado para retirar a maior, que tinha 4 cm e lhe afetava a visão
Quando recebeu o diagnóstico tinha já sete metástases no cérebro. Foi operado para retirar a maior, que tinha 4 cm e lhe afetava a visão DR

Quando, naquela sexta-feira, o médico disse que eu tinha uma neoplasia, eu nem sabia o que isso era. Ouvir a palavra 'cancro' deixou-me sem reação, dormente, como se estivesse a assistir a um filme fora do meu corpo. Para definir o tratamento foi preciso fazer uma biopsia para ver exatamente que tipo do cancro era – porque dentro do pulmão existem dezenas. Tive de esperar umas três semanas. Nesse período, fiz uma procuração para a minha mulher poder movimentar dinheiro e levantar exames, se por algum motivo eu não estivesse em condições. Quis antecipar problemas.

A opinião dos médicos era de que muito provavelmente existiria uma mutação (a maior parte das pessoas que não fumam, têm mutações) e tinham razão – tenho uma mutação no gene EGFR. O estadio IV é incurável, não se fazem operações para tirar metástases, porque já está na corrente sanguínea e nos gânglios linfáticos. Não há vantagem em tirar tudo porque vai reaparecer quase que invariavelmente. Portanto, a estratégia foi intervir nos sítios onde estava a causar danos, neste caso o cérebro, porque me estava a afetar a visão. Mas só me tiraram aquela maior. Tive muita sorte com a localização porque a metástase era superficial, o cirurgião não teve de andar a mexer dentro do meu cérebro.

As terapias deixam de funcionar

Como não tinha mais sintomas, e a situação do cérebro estava tratada, avancei logo para a terapia alvo [medicamento dirigido às células cancerígenas]. Tive sorte, mais uma vez: havia uma terapia para a mutação que tenho, com grande eficácia a remover metástases cerebrais. Fiz esse tratamento durante nove meses, um comprimido chamado osimertinib, e foi uma maravilha! Reduziu as metástases no cérebro, fiquei com apenas três, limpou totalmente o osso ilíaco e o pulmão também ficou melhor.

Não tinha efeitos secundários nenhuns, podia fazer tudo sem qualquer restrição. Só que essa terapia alvo deixou de funcionar. Esse é o problema do cancro: as terapias deixam de funcionar, o cancro consegue contornar. Comecei a urinar sangue, fizeram-me exames e viram que o cancro estava completamente espalhado – passou para o pulmão, para o rim e no cérebro, quando já só tinha três metástases pequenas, passaram a ser 12.

Foi então que iniciei a terapia que hoje ainda estou a fazer, trata-se de um anticorpo monoclonal. Para simplificar, até porque a administração é da mesma forma, é como se fosse outro tipo de quimioterapia. Sou o primeiro doente na Europa a fazer este tratamento fora de um ensaio clínico – está aprovado pela Agência Europeia do Medicamento, mas ainda não pelo Infarmed. Estou a fazê-lo através do privado, chama-se amivantamab.

Desde que adoeceu que lê tudo sobre a doença, além disso, participa em encontros de associações europeias e internacionais sobre cancro do pulmão
Desde que adoeceu que lê tudo sobre a doença, além disso, participa em encontros de associações europeias e internacionais sobre cancro do pulmão DR

Comecei há exatamente dois anos, em novembro de 2023. Os ensaios indicam que, em média, este anticorpo monoclonal controla a doença durante 6,2 meses – eu estou a fazê-la há 24. Já tive uma complicação mas, felizmente, não foi preciso desistir da medicação. Houve uma altura em que me apareceram duas metástases, uma no rim e outra no pulmão direito. Fui operado ao rim e fiz radioterapia ao pulmão. Conseguiu-se controlar e não voltou.

Fazia os tratamentos de três em três semanas mas, recentemente, por causa dos problemas que tenho tido na cabeça – tenho metade do couro cabeludo em carne viva –, estou a espaçar e a fazer de quatro em quatro, para o corpo ter mais tempo de libertar a toxicidade. Não tem sido fácil: tenho de dormir com um resguardo e tenho dor intensa. Mesmo se lavar deita muito pus. Também tenho os dedos em mau estado, afetou-me a parte genital e enjoos – que nunca tinha tido –, agora até vomitei depois da última sessão.

A minha médica está com receio que se estejam a acumular demasiados efeitos secundários e que, para preservar a qualidade de vida, tenha de parar e ficar só com quimioterapia de manutenção. Não sei quando isso vai acontecer, o próximo tratamento é dia 20 de novembro e ainda tenho outro antes do Natal, a 18 de dezembro. Infelizmente, não há outra terapia. Ou interrompo o anticorpo, melhoro, e tenho a sorte de isto não progredir, ou não sei. É sempre uma grande incógnita.

A morte sempre presente

O lema é um dia de cada vez. A morte passou a estar muito presente na minha vida, transformei-me num velhinho de 90 anos. Não fisicamente, mas por essa noção de finitude, porque tenho a morte sempre presente. Em dezembro combinei ir com a minha filha e a minha mulher a Paris, mas a verdade é que não sei se poderei ir. Começo a pensar que se continuar assim dificilmente conseguirei.

É por isso que tipicamente não faço planos com tanta antecedência. Por exemplo, em janeiro, tive uma perfuração do estômago. O meu estômago rasgou-se e as dores eram tão insuportáveis que nem a morfina aliviava. Felizmente, foi possível fazer uma cirurgia por laparoscopia, com aqueles furinhos, e só perdi 10% do estômago, nem sequer é significativo. Estou completamente recuperado, mas podia ter sido muito mau – estava a evoluir para uma septicemia [infeção generalizada], já tinha comida espalhada pelos outros órgãos. O cancro é mesmo 50% sorte e 50% medicina.

Faço questão de dar a cara, em primeiro lugar, por causa do estigma em relação ao cancro do pulmão. Em Portugal só existe cancro da mama. Não tenho nada contra mamas, mas os pulmões estão mesmo por trás, como costumo dizer na brincadeira. A verdade é que este estigma fomos nós que os criámos. Nos anos 80 passavam anúncios na televisão a dizer que fumar era bom – incentivou-se o consumo. E agora os doentes oncológicos são vistos como os culpados da doença, porque causaram a doença a eles próprios.

Faço questão de dar a cara, em primeiro lugar, por causa do estigma. Em Portugal só existe cancro da mama. Eu não tenho nada contra mamas, mas os pulmões estão mesmo por trás, costumo dizer na brincadeira. Filipe Paixão, doente de cancro do pulmão

Mas esse estigma arrasa completamente o cancro do pulmão, porque há muitos doentes com este tumor que nem sequer dizem a ninguém. Então, os homens escondem-se imenso e até recusam tratamento. Há pessoas que se entregam completamente. Daí que seja também importante transmitir a importância do rastreio. O cancro do pulmão é o que me mais mata no mundo inteiro porque a maioria dos diagnósticos é tardio. O que altera por completo a taxa de sucesso – é uma diferença de 80 para 5%.

Uma pessoa diagnosticada num estadio I [inicial] tem 80% de probabilidade de estar viva ao fim de cinco anos; enquanto no meu caso, no estadio terminal, as estatísticas são 5%. O rastreio do cancro do pulmão ainda não chegou a Portugal; nos Estados Unidos já existe desde 2012. Mesmo com pouca adesão, só 10% das pessoas elegíveis (é preciso ter mais de 50 anos, ser fumador, entre outros critério), reduziu a mortalidade em 24%.

Não tenho aquela coisa muito americana de uma lista de coisas que quero fazer, mas fiz uma cápsula de tempo para a minha filha. Comprei um baú grande e pus lá coisas para ela abrir em 2035. Quer eu esteja cá, quer não. Tem lá jornais do dia em que ela nasceu, um leitor de Blue Ray onde será possível ver mensagens que vou programando para lá deixar para determinadas datas. Estão lá também os ursinhos que ela usava quando era bebé e o bibe da creche.

Obviamente, se estiver cá para abrir isso com ela seria ótimo. Já desafiei muito as estatísticas, mas conheço pessoas em estadio IV, como eu, com 20 anos de sobrevivência – existem quatro numa fundação americana a que pertenço, a .

E se eles conseguiram, e a medicina está sempre a evoluir, pode ser que eu também consiga. Há sempre essa esperança."

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