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A vida, a obra, o luto e uma nova série de contos exclusivos para a SÁBADO. Eis José Luís Peixoto, o ainda idealista miúdo de Galveias e autor de "Reis na Diagonal".
Quando em 2001 recebeu das mãos de José Saramago o prémio literário homónimo do Nobel, José Luís Peixoto não tinha forma de prever a viagem em que iria embarcar. Ou talvez soubesse: a morte do pai empurrou-o para as palavras em Morreste-me (2000) e o idealismo que o movia na adolescência trouxe frescura à escrita.
Não há explicação para esta "obsessão" de frases que constroem histórias, diz – nenhuma evidente, pelo menos –, mas é aí que tudo começa para o miúdo de Galveias, nascido em 1974, que nunca deixou de gostar de "música pesada", que às irmãs agradece o apoio, à mãe a capacidade narrativa e à escrita "a oportunidade de viver em constante reflexão".
Está prestes a iniciar uma senda de contos na SÁBADO intitulada Reis na Diagonal cuja sinopse se assemelha a alguns pontos da sua vida.
Na verdade, estes contos têm muito pouca relação com a minha experiência pessoal. Identifico-me pouco com as personagens. Trata-se, sobretudo, de um enredo-tese, que pretende sugerir algumas ideias sobre a chamada realpolitik, as relações entre razão e emoção, o Portugal de hoje e de há 30 anos, entre outros assuntos. Tendo em conta de que serão publicados na SÁBADO esses temas foram pensados de acordo com as características desta revista que, semanalmente, lança um olhar sobre a atualidade portuguesa e do mundo. Nestes contos, para além da dimensão literária, há uma certa perspetiva sociológica, jornalística até.
Há um temor nostálgico na vida destes dois casais dos contos, não só nas pessoas mas na perspetiva destas sobre o espaço, que é a cidade de Lisboa. A Lisboa de hoje ainda tem alguma coisa da "sua" Lisboa?
Lisboa, para mim, começou por ser uma cidade com que sonhava. Na infância e na adolescência, quando vivia no Alentejo, visitava Lisboa esporadicamente e ficava sempre impressionado com o trânsito, com as pessoas, com as lojas, com as luzes à noite. Mais tarde, quando vim estudar para a cidade, comecei a apropriar-me dela aos poucos. A partir daí, comecei realmente a ter a "minha" Lisboa. Hoje, na minha vida, já não existem essas noites que passava no Bairro Alto, os passeios na Baixa, as vezes que subia e descia a Almirante Reis, etc. É certo que a cidade mudou muito. Ainda assim, nessa relação, fui eu que mudei mais.
Qual é a parte mais fascinante, para si, no ato de escrever sobre pessoas?
O fascínio da escrita sobre pessoas é o de qualquer tipo de escrita, uma vez que toda a escrita é sobre pessoas. Não existe outro tema. Mesmo quando se escreve sobre a natureza ou, por exemplo, sobre objetos, está-se sempre a escrever sobre pessoas. Isso acontece porque somos nós, pessoas, que escrevemos. Como autores e como leitores, não somos alheios ao texto, fazemos parte dele. Ao mesmo tempo, a linguagem e todos os elementos do texto são absolutamente humanos. A literatura é uma investigação da humanidade, uma tentativa permanente de sabermos quem somos.
Um miúdo de Galveias (Alentejo), nascido em 1974, filho de um pai que se transforma em carpinteiro e neto de uma avó que vivia do fabrico de queijo. Em retrospetiva, houve alguma experiência da infância que o tivesse levado a escrever?
Essa é uma pergunta difícil de responder. Muitas vezes me interrogo sobre as raízes mais profundas dessa minha vocação e, normalmente, lembro-me da minha mãe, da sua grande capacidade narrativa, da sua necessidade de expressão, das histórias que contava e conta ininterruptamente. Lembro-me do meu pai, do seu enorme voluntarismo, do seu imenso otimismo e capacidade de sonhar. Lembro-me das minhas irmãs, sempre a puxarem por mim, a acreditarem em mim; lembro-me de Galveias, esse mundo, com as suas histórias mirabolantes. Lembro-me também de tantas outras coisas, nomeadamente dos livros que me vieram parar às mãos, mas não consigo ter a certeza de quais terão sido as reais razões dessa atração que, a partir de meio da adolescência, se transformou numa obsessão.
Bruno Colaço
No podcastMaluco Beleza, em 2020, dizia a Rui Unas que "nessas apresentações [referindo-se à forma como o apresentam biograficamente] já tenho a capacidade de deixar de ouvir". Como lida com o mediatismo inerente à sua escrita?
Hoje, encaro esse aspeto com muita naturalidade. Há já mais de 20 anos que essa presença faz parte da minha vida. Por um lado, trata-se de uma atenção bem-vinda, uma vez que encaro a escrita como uma forma de comunicação, um meio para chegar aos outros e, claro, o mediatismo ajuda a alargar um possível público, a chegar a gente que possa ter interesse no meu trabalho. Por outro lado, creio que, desde cedo, a minha postura apresentou bastantes diferenças em relação ao que era habitual por parte de outros escritores. Tenho a sensação de que isso chamou a atenção de muita gente. Já para não falar dos próprios livros, claro, que, um a um, devido aos seus temas e propostas, sempre atraíram bastante curiosidade.
No mesmo episódio, diz que os seus livros continuam a ser "muito frequentemente rejeitados por editoras", particularmente por chancelas internacionais. Sendo um escritor consagrado em Portugal, que impacto tem isso em si?
Nessa entrevista, referi esse facto pois faz parte de um mundo que a grande maioria das pessoas desconhece, não porque tenha uma grande importância para mim. É normal que os livros sejam aceites por uns editores e rejeitados por outros, depende daquilo que cada um tiver em mente para os seus catálogos. Hoje em dia, tenho livros traduzidos em 35 idiomas, publicados com regularidade em pelo menos metade dessas línguas, tanto em editoras enormes como em editoras ínfimas. Movimento-me o suficiente pelo mundo para não me deixar inebriar por sucessos aparentes ou desanimar por fracassos igualmente aparentes. Sei que uns e outros são bastante relativos. As minhas medidas são de outra natureza.
Estreou-se oficialmente em 2000 com Morreste-me, obra de uma grande intimidade, em homenagem ao seu pai. De que forma é que a perda e o processo de luto lhe moldaram a escrita?
Sem essa perda, não teria escrito os livros que escrevi. E não me refiro apenas a Morreste-me, refiro-me a todos os que publiquei. Esse pequeno livro é a fundação de tudo o que haveria de vir. A perda do meu pai significou uma mudança enorme na minha vida. Até agora, foi a maior mudança de todas. Por diversos motivos, obrigou-me a uma maturidade instantânea. Apesar de já ter superado o luto, o meu pai morreu há quase 28 anos, não sei se alguma vez superarei o tamanho dessa perda.
Numa outra entrevista, contava que o seu pai era "mais próximo ao socialismo de Mário Soares" e que o José, aos 17 anos, apesar de também pender para o socialismo, era um "idealista-anarquista". Com todos estes ingredientes, nunca sentiu o apelo para ser músico?
Efetivamente, na minha adolescência, essa rebeldia política estava muito associada aos meus gostos musicais e de contracultura. Com essa idade, ainda no Alentejo, formei uma banda punk.
Mantém algum traço político desse miúdo de 17 anos?
Sim, claro. Para além de certos valores e princípios, em relação aos quais hoje terei necessariamente uma perspetiva com mais nuances, acho que o que mais se mantém é a incapacidade de aderir sem reservas a uma cor. Faço as minhas escolhas políticas, tenho as minhas convicções, mas mantenho a independência.
Ainda sobre figuras influentes na sua vida, o seu caminho cruzou-se com José Saramago, figura que viria a usar como um dos protagonistas de Autobiografia, de 2019. De que forma absorveu essa convivência com o Nobel?
Foi em 2001 que tive oportunidade de conhecer José Saramago, no dia em que recebi o prémio com o seu nome. A partir daí, tive muita oportunidade de privar com ele, viajei com ele, partilhei alguns momentos importantes, públicos e privados. Aquilo que mais me marcou foi o seu exemplo: a força da convicção, o espírito de missão, o respeito pelo trabalho. Em relação a esses e a outros temas, somos radicalmente diferentes. Ainda assim, impactou-me bastante.
É sabido que partilhavam a escrita e o Alentejo, mas deu-se o choque com as tatuagens e a "música pesada". A idade trouxe-lhe música menos pesada?
Continuo a ouvir música pesada. Na verdade, esses géneros musicais evoluíram bastante e, hoje, há música mais pesada do que no passado. Com a vantagem de ser muito mais acessível agora. Quanto a essas diferenças em relação a Saramago, parecem-me naturais. Afinal, ele nasceu em 1922 e eu nasci em 1974.
Além de José Saramago, há mais autores portugueses que tenha como referência?
Apesar de haver muitos autores estrangeiros com importância para mim, nomeadamente nas literaturas de línguas inglesa, francesa e castelhana, a maioria dos autores marcantes na minha formação são portugueses. Essas referências são inúmeras. De Aquilino Ribeiro a Lobo Antunes, passando pelo inevitável Fernando Pessoa, para dar apenas alguns exemplos dos muitos possíveis.
É filho de uma geração já livre do Estado Novo, mas ao crescer no Alentejo deve certamente ter ouvido relatos do Portugal pré-25 de Abril. Isso moldou-o como pessoa?
Talvez esse impacto tenho existido de forma inconsciente. Nasci em setembro de 1974, no próprio ano da revolução, muito próximo desse tempo. Percebo agora que o mundo não demora assim tanto a mudar em pontos importantes. Eu, no entanto, demorei até chegar a essa conclusão. Durante a juventude, parecia-me que esse tempo me era estranho.
Bruno Colaço
É conhecido o seu interesse por regimes autocratas, razão pela qual visitou a Coreia do Norte em diversas ocasiões. Qual é a parte mais interessante de experimentar o simulacro social que Kim Jong-Un oferece aos turistas?
Na verdade, abomino esses regimes. O meu interesse pela Coreia do Norte permite-me levantar esse tema constantemente e, assim, lançar alguma luz sobre ele. O mais interessante de ir lá é, justamente, avaliar em primeira mão muito que não se consegue aferir à distância. Vivem 25 milhões de pessoas na Coreia do Norte. A partir do ocidente, de um modo geral, há uma ignorância imensa sobre essa realidade. Ainda há poucas semanas, em Seul [capital da Coreia do Sul], tive uma longa conversa com o embaixador do Brasil na Coreia do Norte, participei num debate com altos quadros das Nações Unidas para os Direitos Humanos e com professores da Universidade de Estudos Estrangeiros de Seul. Nada mau para um rapaz das Galveias. Se juntarmos a isso todas as minhas leituras sobre o tema, sinto-me em condições de tratar esse assunto com um pouco mais de elevação do que a habitual superficialidade e clichés. Esse é o meu real fascínio.
Como é que vê a ascensão da extrema-direita na Europa e, particularmente, em Portugal?
Com preocupação. A extrema-direita veicula valores com os quais não me identifico e que, em muitos aspetos, me parecem desumanos. Ainda assim, não acredito no ódio. Acho importante manter diálogo com essas pessoas, principalmente com o seu eleitorado, e considerar a sua insatisfação. As soluções que apresentam são quase sempre populistas e desconsideram o outro mas, muitas vezes, é possível encontrar pertinência na insatisfação que apresentam. Essa é, aliás, a razão principal da sua ascensão.
Para lá da escrita, seguiu também o trilho de uma das suas irmãs e tornou-se professor de inglês e português. Uma coisa levou à outra?
Enquanto estudava, não imaginava que, um dia, pudesse viver da escrita. Por esse motivo, e por influência do exemplo da minha irmã, acreditei que o ensino seria uma boa atividade para conciliar com a escrita. Fui professor durante quatro anos, mas creio que não fui um bom professor. Essa é uma atividade que exige competências muito vastas, a vários níveis. Comecei a dar aulas com 21 anos, faltava-me maturidade, não cheguei a ganhar a necessária experiência.
Lecionou em Portugal e Cabo Verde. Quais as diferenças que mais o impactaram entre os dois países?
Em 1998, quando cheguei a Cabo Verde, o país era muito diferente do que é hoje. Havia carências importantes que me chocavam. A grande escassez de água ou, ainda mais, o difícil nível de vida eram desafios que tocavam a grande maioria da população. Ao mesmo tempo, esse era um tempo em que a internet e as comunicações eram muito pouco acessíveis e, por isso, custou-me estar mais de um ano sem voltar a Portugal.
Viajar é, também, uma forma de alimentar a escrita. Que outros estímulos utiliza para escrever obras?
Uso muito a minha experiência na escrita. Essa é, no entanto, uma referência que nem sempre tem o real peso que se imagina. Há matérias e influências de muitas outras naturezas. Talvez o caso mais evidente sejam as outras artes: a música, o cinema, as artes plásticas, etc. A própria literatura é um alimento permanente da escrita. Mas, efetivamente, o que vivo, tudo o que me toca, dá-me assunto e combustível para a escrita.
José Luís PeixotoBruno Colaço
Qual é, para si, o primeiro passo no processo de construção de um trabalho de não ficção?
Depois de definir o tema, creio que o passo seguinte será iniciar uma investigação, tão exaustiva quanto possível, procurando leituras e fontes.
É habitualmente disciplinado com o processo de escrever?
Sim, preciso de ser muito disciplinado porque escrevo bastante e, além disso, desenvolvo inúmeras atividades. Hoje em dia, tenho essa disciplina plenamente integrada no meu quotidiano. Para funcionar, tenho sempre de manter muito bem organizados o meu tempo e a minha cabeça.
Aos 27 anos foi o mais jovem vencedor do Prémio José Saramago e tem vindo a ser distinguido com mais galardões posteriormente. De que forma é que olha para estes reconhecimentos?
Olho com alegria e orgulho para esses reconhecimentos. Sinto-me grato pela felicidade de terem sido atribuídos ao meu trabalho. Cada um desses prémios acaba por ter algum impacto ao nível da carreira profissional. E isso, claro, tem algum impacto na minha vida. Para muita gente, os próprios livros passam a ser vistos com outros olhos. Eu, no entanto, vi-os nascer. Para mim, os prémios não mudam a impressão que tenho sobre os livros que escrevi. Antes de serem premiados, já eu sabia o que eram. Foi por isso que me dei ao trabalho de escrevê-los, que quis publicá-los e que lutei por eles.
Como é a sua relação com os críticos literários?
A crítica é imprescindível à escrita. Depois de escrito, o texto precisa de ser lido. Todos os leitores são críticos. Eu sou o primeiro crítico dos textos que escrevo. Para além disso, tenho a felicidade de haver pessoas a escreverem sobre o meu trabalho desde sempre. Nunca tive um livro que tivesse sido publicado sem reações e sem inúmeros textos críticos. Há livros meus que foram publicados há mais de duas décadas e que, regularmente, continuam a ter recessões sobre eles. Deste modo, a minha relação com as pessoas que se dedicam a fazer essas leituras do meu trabalho é a melhor. A sua atenção honra as intenções e a dedicação que coloquei nessa escrita. Sinto-me muito grato por isso.
A morte, ou a finitude, são temas omnipresentes nas suas obras. É o ato de morrer, em si, que lhe interessa ou a ideia de transcendência?
Suponho que o que mais me interessa nesse tema seja a própria morte. À luz da vida, é incrível que exista a morte. E, no entanto, apesar de tão antagónica à força vital que nos move constantemente, a morte é absolutamente determinante para as grandes questões da vida, nomeadamente a passagem do tempo. A morte é o grande mistério.
O que é que a escrita lhe traz que não consegue em mais lado nenhum?
A escrita dá-me muito. É impossível fazer uma enumeração exaustiva de tudo o que me traz. Há já bastante tempo que a escrita se mistura com a minha vida. Ainda assim, se tiver de escolher uma única coisa, é muito marcante a oportunidade de viver em constante reflexão. Trata-se de um grande privilégio ter disponibilidade e espaço mental para considerar constantemente as escolhas feitas e por fazer, para observar permanentemente o que me rodeia.
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