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Leia o primeiro capítulo da nova obra do escritor e co-argumentista João Tordo, inédita e em exclusivo para a SÁBADO.
Não te vi, só escutei os teus passos na relva.
A relva molhada, fresca. Torneiras a brotarem do chão, espalhando água fria. Deitara-me de madrugada, imaginando os pingos a escorrerem das rosas. Dormira um daqueles sonhos breves, pesados, enroscada em mim mesma. Os lençóis tão suaves.
Ainda era noite quando abri os olhos. Por vezes, acordava com a sensação de que alguém – uma sombra, uma ausência – me despertava. Psst, dissera-me a sombra, ao ouvido. E foi nesses minutos em que a escuridão na janela, uma mortalha escondendo o dia que já acontecia algures no mundo, foi brevemente rasgada por uma fagulha.
Depois, os passos. Já sabia que eras tu. Merda, pensei; eu disse-te para não vires. Mas, como sempre, só fazes o que queres. Não sabemos o que fazer contigo, Ben. Ninguém sabe. Nunca ninguém soube. Voltaste para dar cabo, de uma vez por todas, da vida que odeias ter de viver. Raios te partam, Ben. É Julho. É tempo de fazer as pazes com a Natureza e com a Morte. Não tinhas nada que aparecer.
Raios te partam.
Os dois grandes cães brancos rodeando-a como estátuas numa ilha grega que se afundou há uma eternidade
Uma vez, um professor da Royal Academy of Music declarou, numa breve conversa sobre Haydn, que a vida era unlivable. E ficou a olhar pela janela, para as árvores mortiças do Regent’s Park, como se tivesse acabado de decretar a sua própria sentença. Não há tradução na nossa língua para essa palavra: unlivable. Talvez o mais próximo – inabitável – não consiga sequer chegar perto do sentido original. Haydn teve um grande problema, disse ele, foi ensombrado pelos génios do seu tempo, Beethoven e Mozart – um era surdo, o outro maluco –, ficámos fascinados com estes dois e esquecemo-nos de Haydn. Abanou a cabeça e repetiu, olhando com a melancolia dos compositores que se tornaram maestros que se tornaram professores: A vida é realmente unlivable, Benedita.
A fagulha era o teu cigarro.
As torneiras sossegaram. Cinco e meia da manhã, a hora da rega. Muitos verões naquela casa, e ganham-se rotinas. Ou isso, ou as gaivotas que fazem ninhos no terraço: uma destas coisas há-de acordar-te, roubar-te ao sono. Raramente, um dos cães.
O T-Rex, por exemplo. Lembro-me daquela madrugada em que começou a ladrar, desenfreado, quando o Gabriel voltou para casa sem sapatos. Encontrámo-lo deitado com o cão junto da piscina, a rebolarem um no outro. Gabriel ria-se, o cão muito excitado, aos pinotes. A Mãe saiu do quarto em roupão, deve ter dito qualquer coisa, na voz rouca dos ensonados, uma reprimenda em surdina, e lembro-me tão bem de estar acordada e, da janela, vê-la a caminhar na direcção das rosas, algumas delas esmagadas, porque o Gabriel trepara o muro para entrar em casa. Os dois grandes cães brancos rodeando-a como estátuas numa ilha grega que se afundou há uma eternidade.
O teu cigarro na noite.
Imagino a conversa. Qualquer coisa como isto:
Oh, por amor da santa.
Mãe.
Um dos cães – o Caf, talvez – passa pela abertura na porta de rede. A esta hora, os mosquitos dão tréguas na busca por sangue. Caf avança pelo relvado, vai directo às flores. A Mãe chama-o. O cão volta a cabeça, língua de fora; arfa, como se tivesse um respiradouro artificial.
Que tal um café?
Estás limpo?
A Mãe olha para o cão, que foi cheirar as rosas.
No outro dia, tirei-lhe um espinho do focinho, continua. Adoram as rosas, mas as rosas não gostam deles. Olha para Ben. Responde-me, insiste.
Ben leva as mãos à cintura, abana a cabeça. Morde o lábio inferior daquela maneira tão sua, tal e qual quando éramos miúdos, e ele queria pedir-me qualquer coisa – que não contasse à Mãe, por exemplo, que lhe roubara uns quantos cigarros de um maço perdido algures numa gaveta.
Três anos, diz Ben.
O quê?
Não me vês há três anos.
Tu não me vês há três anos.
Típica resposta da Mãe, é assim que ela trata quem se atreve. Pimba, diria Gabriel, já almoçaste. Mas o Gabriel não está cá. Somos só eu, a Mãe, e a Estrela de Outra Galáxia, que chega amanhã. E eu não me atrevo a descer. Estou metida dentro da cama de olhos abertos, e imagino a relva molhada e fresca, pisada por Caf.
Então?, insiste ela.
Não, não estou limpo.
Ben passa-lhe pelo lado direito. A Mãe está envelhecida, resignada. Não pode impedir o filho mais novo de entrar na casa da família, nem quer – existem maneiras muito mais cruéis de torturar alguém, de fazer com que a pessoa se sinta indesejada. Cof está sentada à porta da cozinha. Passaram vinte e um anos em tempo de cão da última vez que viu Ben. Imagine-se não vermos uma pessoa durante vinte e um anos, e depois ela entra e faz-nos uma festinha. Caf, diz ele. Cof, corrige a minha mãe, Tanto faz. Tanto faz, não, é um cão e uma cadela, são diferentes, está a usar o quê?
Ele dirige-se à máquina de café. A Mãe acende a luz da cozinha (um bolbo amarelado, que prolonga as sombras). Ben pega numa cápsula que está perdida na mesa, tenta enfiá-la na ranhura, a Mãe tira-lhe a cápsula da mão. Está usada, não vês? Ela abre o armário por cima da cabeça dele; Ben é bastante mais alto do que ela e, contudo, sente-se exponencialmente mais pequeno, quase liliputiano. Pronto, diz ela, e então? A Dita? Está a dormir, responde a Mãe (não estou, estou acordada), nem penses. Ele morde o lábio inferior, a máquina começa a regurgitar café para dentro da chávena. O cheiro invade a cozinha, mais presente àquela hora da madrugada, em que a acidez pungente do café corta a frescura. Metadona, diz Ben, e os olhos melancólicos, de quem nunca esteve verdadeiramente neste planeta, pousam nos pratos e copos sujos da noite anterior – o prato da Mãe, o meu; o copo dela, o meu.
Rúben Sarmento
O que é isso?, pergunta a Mãe, cruzando os braços. Caf regressou do exterior, ela observa-lhe o focinho, à procura de espinhos. Um aroma a rosas penetra a cozinha. Onde é que tu andaste?, sempre a mesma chatice, ai a nossa vida, diz a Mãe, e fecha-lhe a mandíbula com a mão, enquanto Ben, encostado ao balcão, olha para as últimas gotas de café que saem da máquina. Depois, pega na chávena e bebe-a de um só gole. Não é um shot, diz a Mãe. Apeteceu-me, responde Ben. Leva a mão ao bolso das calças e encontra um maço de cigarros amachucado. Não fumes cá dentro, diz ela, baixando-se para analisar o focinho de Caf, quem é que te deu metadona?, pergunta ela, sem olhar para Ben, que, entretanto, tirou um cigarro do maço, e corre-o entre os dedos. A médica da clínica. Qual clínica? Aposto que a Dita está acordada, diz Ben. Qual clínica?, persiste a Mãe, olhando-o.
Ben está ligeiramente suado, talvez de ter conduzido a noite inteira. A Mãe desconhece que ele veio de Cádiz, onde abandonou um amante chamado Diego num hotel qualquer à beira-mar, um daqueles hotéis muito verticais com varandinhas e cadeiras e mesas de plástico que há trinta anos ninguém muda, como se as pessoas ficassem hipnotizadas com a ideia da praia, e se submetessem a tudo. Quando Diego acordou, tudo o que restava de Ben eram as beatas lá fora. A clínica em Sevilha, responde ele, e acende o cigarro ali mesmo, na cozinha. Cof vai ter com Ben e senta-se à frente dele, língua de fora. Não sabia de nenhuma clínica em Sevilha, diz a Mãe, e, passando pelo filho mais novo, pega-lhe no pulso e condu-lo de regresso às portas que dão para o relvado, a piscina de água tranquila, as rosas.
Uma gaivota desce do céu e aterra num crocodilo insuflável que vagueia pelo azul. Malditos bichos, diz a Mãe, enquanto ele sopra o fumo para longe. Estás magríssimo, comenta ela (ainda rouca, aperta o roupão à frente e encosta-se às portadas azuis). Suores nocturnos, responde Ben, efeitos secundários da metadona. Há quanto tempo tomas essa porcaria? Desde que fui para a clínica. Como é que se chama a clínica? Hipócrates, responde ele, atento à gaivota que assentou no crocodilo. Que nome tão estranho, repara a Mãe, nunca ouvi falar. Sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. O quê?, pergunta a Mãe, com aquela expressão de desagrado que todos lhe conhecemos tão bem (sobretudo o Gabriel e o T-Rex; com Ben, a expressão foi sempre ligeiramente diferente, mais uma fronha de melancolia e inevitabilidade, como alguém que suspira perante a destruição do Templo). Qualquer coisa que o Hipócrates disse, responde ele, tenho muita bílis negra, essas merdas.
O cigarro a chegar ao fim. De repente, as torneiras da rega voltaram à superfície, e o som da chuva regressou, quase que consigo cheirar a relva molhada daqui. Não podes ficar, Ben, diz a Mãe. Não me passava pela cabeça ficar. Se tiveres de usar drogas, faz no carro. Ben ri-se, abana a cabeça. São comprimidos, achas que davam uma droga injectável a alguém que passou anos a injectar-se com drogas? A pergunta é inteligente e bem formulada; apesar do teu rosto cavado, os olhos muito claros, líquidos, de alguém que vai morrer cedo ou então já morreu e não sabe, há um cérebro a funcionar aí dentro.
Penso no Mi Bemol, a última nota da peça de Brahms a que os meus barítonos não chegam, e isso deixa-me angustiada. E penso na maneira como a tua voz, por vezes, me surge durante um ensaio, tal qual te tivesses escondido atrás de um naipe, ou como aqueles futebolistas que agora se deitam atrás da barreira na marcação dos livres – vi isto na televisão um dia, ri-me sozinha, parecem peixes –, embora não te veja há três anos.
Caf, chama a Mãe, oh, este bicho é um inferno. E avança pelo relvado, lá está o cão a enfiar o focinho nas roseiras. Ao pressentir a chegada da dona, Caf olha para trás com a sua grande cabeça de labrador — língua de fora, aqueles olhos negros que sempre me pareceram pintados com rímel —, como se perguntasse: que mal é que eu fiz? Cão mau, diz ela, e arrasta-o pela coleira na direcção da casa. Cof vem para junto de Ben. A cadela não sai da casa tantas vezes, é mais velha, está mais cansada. O meu irmão agacha-se para lhe fazer uma festa, e a cadela aproxima-se dele, se há coisa que os cães não sabem fazer é distinguir entre as pessoas, estão-se nas tintas para as diferenças entre uns e outros, e se há coisa de que não querem mesmo saber é o que fizeste ou tencionas fazer da tua vida.
Rúben Sarmento
Olá Caf, diz Ben. Cof, corrige a Mãe. Deste-lhes os nomes ao contrário, Caf é nome de rapariga e Cof é nome de rapaz. Caf-eína, diz a Mãe, sossegando o cão que continua agitado com a chegada de Ben, se pensares que ele bebeu demasiado café e não consegue estar quieto, já não te enganas. Há um momento de silêncio na propriedade; a gaivota continua a vagar pelas águas tépidas da piscina em cima do crocodilo. O dia vai nascer, a luz é já notória sob a escuridão azulada, e eu sinto o peso do sono interrompido. Algures dentro de mim, ouço Brahms; quero mover a mão direita e marcar o tempo, mas fico à espera. Há um tempo da madrugada que é só nosso, algures entre as cinco e as seis e um quarto. Sabemos que o dia há-de chegar, mas sabemos também que, naquela hora sepulcral, ninguém nos incomodará, entrando no quarto de rompante e exigindo coisas; não haverá sinos a tocarem, carros de passagem, portas a baterem. É a minha hora favorita e, muitas vezes, julgo que acordo só para a poder viver. Ou, então, a sombra desperta-me: Psst.
Quem é que te meteu na clínica?, pergunta a Mãe. Ben ri-se. Meteu?, repete ele. Maneira de dizer, acrescenta ela. Ninguém me meteu na clínica, fui sozinho. E quando é que deixas de tomar essa porcaria? Ontem, responde Ben, e torna a pôr-se de pé. O cigarro queimou-o entre os dedos: morreu ali, mas ele nada sentiu. A Mãe orienta Caf num percurso em torno do grande carvalho, galho na mão, o cão segue-a e desenham dois círculos, um ‘8’ imaginado. Sabes que vem aí o Gabriel, diz ela, em tom de advertência, e a miúda, o Edgar também. E a Carmen? Se calhar, ainda não confirmou.
Ouça aqui o primeiro episódio da Canção dos Cães e das Rosas em audiolivro:
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Deves estar a pensar: Deus queira que não, que a Carmen não venha, que fique na cidade, com os seus malditos leques e a menopausa e a arrogância equitativamente distribuída por todos os seres humanos. Mas o que Ben lhe diz é isto: Só vim para ver a Dita. A Dita está a dormir, que camisa é essa? Que camisa o quê? A Mãe leva a mão à gola da camisa de Ben, que está desfeita; o primeiro botão desapareceu, há um entrançado de fios no seu lugar, e uma mancha cor-de-rosa, invisível na penumbra, exibe-se agora do lado esquerdo do peito. Isto é sangue?, pergunta a Mãe. Ben recua, escondendo a gola com a mão direita. Comprei-a em Cádiz, sujou-se de vinho. Cádiz?, repete ela, e é como se tivesse dito ‘Caf’, porque o cão agita a cauda e olha para a dona. Sim, o que tem? Achava que estavas em Sevilha. Não fica longe. Com quem estavas em Cádiz? Sozinho. Claro, Ben, claro, diz ela, e afasta-se na direcção da cozinha, e começa a abrir as portadas, dando início a outro dia de Verão.
Lá fora, os pássaros chilreiam. Cof avança lentamente pela porta entreaberta, daqui a nada está a dormir junto do portão. É vinho, repete Ben, porque é que haveria de ser sangue? A Mãe abre a máquina de lavar loiça: dois pratos (o meu, o dela), dois copos (o meu, o dela), dois garfos, uma faca (a dela). Eu deixei a máquina a lavar ontem, depois do jantar. Tens de fazer isso agora?, pergunta Ben. Ela ergue-se, olha-o de frente. Não acredito em ti, diz a Mãe, não acredito em nada daquilo que me contas. E começa a tirar os copos e os pratos e os talheres da máquina. Caf acompanha-a de um lado para o outro (não é inteligente como a irmã, Caf é burro, segue a dona sem contestar nada, os olhos de rímel dão-lhe o aspecto de um artista de variedades moribundo, ou de um palhaço triste), enquanto Ben se encosta à bancada. A Mãe parece recuar na sua dureza, e pergunta: Fizeste este tratamento até ao fim, ao menos? Não há fim, responde ele, de braços cruzados, cabeça baixa, mexendo na mancha visível de vinho (sangue?) com a ponta dos dedos, como se pudesse fazê-la desaparecer por artes mágicas. Estou em tratamento agora, não estou na clínica, mas é como se estivesse.
Ela atravessa a cozinha para arrumar os pratos no armário. Caf segue-a de cauda a abanar. Bom, o discurso é diferente do da última vez, valha-nos isso. Foi há três anos, as pessoas mudam, diz Ben. Tu nunca mudaste, contesta ela, as pessoas não mudam. Vi muita gente mudar, Mãe. Ela abre a gaveta dos talheres, guarda-os no arrumador de plástico, depois aperta o roupão e, ainda algo rouca, olha para o filho mais novo e diz: Vem aí o Gabriel, se vais ficar – preferia que não ficasses, mas não posso impedir-te –, não quero lutas, nem uma única discussão. Ben não responde, e eu sei que, por dentro, quer agarrá-la pelo pescoço e, lentamente, sufocá-la, obrigando-a a reconhecer a sua gritante cegueira, porque secretamente a responsabiliza pela pessoa em que se tornou e, tal como o professor da Royal Academy of Music, desconfia que a vida é inabitável, unlivable, não se trata de uma teoria ou de um pensamento, está inscrito nos ossos de Ben como uma segunda medula.
O cheiro da máquina de lavar (amónia, limão) deambula pela cozinha. A Mãe ainda olha para Ben, espera qualquer coisa – uma resposta, talvez? Não posso prometer-te isso, diz Ben. Então vai-te embora, por favor. Disseste o mesmo ao Gabriel? Ele sabe, responde ela. E acrescenta: para além disso, não desapareceu durante três anos. Eu não desapareci, riposta ele, toda a gente sabia onde é que eu estava. Toda a gente? A Dita sabia. A Dita não é toda a gente, Ben. Ele encolhe os ombros, enfia as mãos nos bolsos. Antecipa a ressaca, os primeiros sintomas da privação; a Morte perpassa-o com as suas manifestações terrenas – a náusea insuportável, os suores, a boca de um animal selvagem a comer-lhe as entranhas. Se vais usar, repete ela. Lá fora, já sei, interrompe ele. A Mãe não gosta de ser interrompida, faz cara feia, mas, na verdade, há pouco mais a dizer.
Ben olha para o chão, sente a mesma humilhação de sempre. Afinal, nada mudou
Caf, Cof, chama, e a cadela entra imediatamente na cozinha, aos saltinhos, reúnem-se os cães em volta da Mãe e, antes que ela deixe Ben na semi-obscuridade da cozinha naquela hora da manhã em que o sono já não chega, ele acrescenta: Também tenho saudades do Neil. Ela baixa o olhar; impossível suster aquela emoção. Do teu pai, queres tu dizer. Não era meu pai, era teu marido, responde. A Mãe fita-o com remorso. Que ingratidão, Benjamin, lamenta, ele sempre te tratou como um filho, ou melhor do que a grande maioria dos pais trata os seus próprios filhos. Era teu marido, insiste ele, tudo o resto foi consequência disso, é assim que as coisas acontecem neste género de família. Que género de família? Do género disfuncional, responde ele. Sabe, ao dizê-lo, que é um caminho sem regresso. Pfff, ri-se a Mãe, aprendeste isso na clínica Hipócrates? Ben olha para o chão, sente a mesma humilhação de sempre. Ao que parece, afinal, nada mudou, para que serviram aqueles nove meses enfiado no centro de tratamento em Sevilha, e nem sequer lhe ocorre (palavras do terapeuta) que a mudança é lenta como uma árvore a crescer, há alturas em que o tronco parece mirrar, os galhos tornam-se mais finos e quebradiços, as folhas desmaiam com a chegada do Inverno, parece que a árvore vai implodir, e depois chega a Primavera.
Wait for Spring, dissera-lhe Neil, tantas vezes, afagando-lhe a cabeça de garoto. Wait for Spring.
Quase que uma lágrima se atreve. Reunidos os cães, a Mãe lança-lhe um derradeiro olhar. Se quiseres descansar… Não quero, estou bem. OK. E ela afasta-se, e deixa-o sozinho na cozinha.
Lá fora, o som da água que brota das torneiras cessou. A relva fresca, molhada. Não durará no calor de Julho, só as madrugadas são suportáveis. Olhas para a máquina do café, para as janelas que exibem a colina verdejante, do outro lado a estrada por onde vieste, que conduz à pequena praia onde, em tempos… – ah, não vale a pena.
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O Estado português falha. Os sucessivos governos do país, falham (ainda) mais, numa constante abstração e desnorte, alicerçados em estratégias de efeito superficial, improvisando sem planear.
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.