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"Tudo o que está na cabeça dos pais tem impacto no desenvolvimento do bebé"

Lucília Galha
Lucília Galha 14 de julho de 2025 às 07:00
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A parentalidade não tem livro de instruções e, mesmo que existisse, permaneceriam dúvidas e inquietações, diz a psicóloga Catarina Perpétuo. A especialista lançou recentemente um livro para ajudar os pais a compreenderem melhor os filhos. Uma dica? Comece por olhar primeiro para si.

Não há mãe ou pai que nunca tenha sido assaltado pelo pensamento: "Era bom que eles (os filhos) viessem com livro de instruções?" Saiba que não está sozinho mas que, se calhar, devia olhar para a questão de outra maneira. "Julgo que é mais importante e útil pensarmos sobre o assunto, remetendo as questões a nós mesmos. Porque é que temos essa necessidade de um livro de instruções? O que será que não queremos, ou não podemos pensar?", sugere a psicóloga clínica, com especialização em Psicologia do Desenvolvimento, Catarina Perpétuo. "Parece-me que muitas vezes temos uma ideia rígida sobre aquilo que é a infância e a adolescência e sobre como a criança se deve comportar de modo a ajustar-se às expectativas, desejos e planos dos adultos", diz àSÁBADO

A especialista acabou de lançar o livro Filhos, Haja Quem os Entenda!, editado pela Contraponto, que tem este mesmo objetivo de descomplicar várias questões relativas aos filhos e compreender o que se passa na cabeça deles - de forma a simplificar a vida familiar. Compila dúvidas que surgem desde o nascimento até à fase da adolescência. Mas, não se iluda: dá trabalho e vai continuar a dar. E a mensagem que a psicóloga deixa é mesmo esta: é preciso ter "capacidade de os aguentar" e nem sempre vai ser fácil.

Costuma dizer-se que a maternidade não tem livro de instruções. O intuito deste livro é justamente provar o contrário?

O crescimento é um processo tão dinâmico, que envolve tantos fatores e significados, que nem um livro de instruções feito à medida para cada mãe-bebé daria conta de todas as dúvidas. Entendo e empatizo profundamente com as angústias dos pais e com o desejo de soluções rápidas que façam com que a criança, magicamente, coma bem, durma bem, tenha um bom comportamento, seja feliz e tenha boas notas, mas isso, na minha perspetiva, não é possível.

Desde as primeiras páginas que o livro transmite a ideia de que a parentalidade não tem livro de instruções: cada criança é única e irrepetível. Além disso, cada pai transporta dentro de si a sua própria história, as suas inquietações, medos, desejos e expectativas. Por tudo isso, "instruções" que resultam para uns, podem não resultar para outros. Isso não significa que não existam direções que podem ser apontadas. Mais importante do que entregar aos pais uma "mala" com ferramentas para lidar com os desafios da parentalidade será ajudá-los a descobrir dentro de si capacidade de refletir sobre as suas dificuldades, construir as suas próprias ferramentas e saber quando procurar ajuda.

Qual é a fase mais desafiante para os pais em termos de comunicação e interação com os filhos?

Talvez seja mais fácil responder à pergunta inversa. Se eu tivesse de definir a fase mais calma, apontaria a idade escolar, ou "período da latência" (6/7 – 10/11 anos). Regra geral, nesta altura, a criança está menos dependente dos pais mas ainda por perto, preocupa-se em ser valorizada pelos adultos e outras crianças, e aceita o seu papel na família. Em relação às restantes idades, aquilo que é mais desafiante depende das características de cada adulto.

Pais mais impacientes no que toca à imaturidade do bebé ou para quem as pistas não-verbais são pouco claras poderão considerar a primeira infância como uma fase mais desafiante. Pais mais receosos e protetores poderão ficar mais angustiados nas idades em que os desejos de autonomia se acentuam mais, como a pré-escolar e a adolescência. Pais com uma maior insegurança em relação às suas qualidades parentais provavelmente sentirão as fases de maior oposição como mais difíceis.

O choro do bebé é encarado como dos maiores desafios na primeira infância. E leva muitos pais à loucura. Que dicas podem ser dadas aos pais?

Normalmente, os pais sabem o significado do choro do seu bebé muito melhor que eu, porque o conhecem. Se o bebé tem todas as necessidades satisfeitas e não existem causas médicas para o choro persistente, a questão para a qual me parece mais importante chamar a atenção é esta: tão importante como decifrar o choro do bebé é aguentar o choro do bebé quando este não é decifrável.

É essa calma que vai permitindo ao bebé ir construindo a capacidade de se acalmar. Quando o choro do bebé é insuportável para os adultos, torna-se útil desvendar o porquê de os quase levar à loucura. Será que o adulto é transportado para o seu próprio desespero através do choro do bebé e isso é enlouquecedor? Será que tem medo de não estar a cuidar bem do bebé? Será que está exausto porque não dorme o suficiente e a falta de descanso é enlouquecedora? Descobrir o porquê pode ajudar.

Explique-me a ideia de que as diferenças nas crenças dos pais têm impacto no sono do bebé.

Tudo aquilo que está na cabeça dos pais tem impacto no desenvolvimento do bebé, incluindo no sono. As crenças influenciam o comportamento dos pais de uma forma quase direta: se acreditam que o bebé precisa de dormir um certo número de horas, tentam criar condições para que isso aconteça e talvez se preocupem muito se o bebé não conseguir dormir esse número de horas. A relação entre as crenças dos pais e o sono do bebé liga-se à forma como estabelecem as rotinas de sono.

Porque é que a criança acorda frequentemente a meio da noite?

Nos primeiros dois anos de vida, muitos bebés acordam por motivos maturacionais: as estruturas cerebrais encarregues da sincronização dos ciclos vigília-sono com os ciclos dia-noite ainda estão a formar-se. Fora isso e despistadas causas médicas associadas aos despertares noturnos, poderemos compreender melhor o seu significado se entendermos que o sono envolve uma separação temporária dos pais e das referências diurnas. A criança fica a sós consigo mesma. Isso abre um espaço para que projete as suas fantasias e medos, contactando com eles "mais de perto", tal como acontece nos adultos.

Assim, crianças para quem separar-se dos pais for mais difícil (ou porque a criança tem uma sensibilidade especial à separação, ou porque precisa de mais atenção, ou por mudanças/transições recentes na sua vida) podem acordar a meio da noite com o objetivo, inconsciente, de recuperar o contacto com os cuidadores. Outro motivo que faz com que algumas crianças acordem é o desejo de descobrir o que os pais estão a fazer quando ela não está por perto.

Analisar a situação, bem como o comportamento da criança (resiste ao deitar? Chama os pais durante a noite? Acorda, mas não chama os pais?), ajuda a esclarecer o significado do despertar. Geralmente, ao longo da infância, a frequência dos despertares noturnos vai diminuindo.

Porque é que os pesadelos são mais comuns nas crianças?

Os pesadelos são sonhos angustiantes. O que acontece quando sonhamos é que o pensamento "ganha vida própria", é mais fluido e não se rege pelas mesmas regras que o pensamento "acordado" – tem uma linguagem própria. Assim, durante o sonho, todos os nossos conteúdos mentais, ligados a preocupações ou medos, adquirem um movimento intenso e aparecem "mascarados". É por isso que os sonhos parecem não fazer sentido.

Os adultos têm, digamos assim, uma maior variedade de "máscaras" para esconder as suas angústias nos sonhos e também de mecanismos defensivos para esquecer o que sonharam. As crianças ainda estão a construir essas máscaras e defesas contra as suas angústias e preocupações. Assim, os pesadelos são mais frequentes e mais "crus" nas crianças, e são mais assustadores, uma vez que a distinção entre a realidade e a fantasia ainda não é completa.

Diz que sentimentos como o ódio ou a destrutividade fazem parte do desenvolvimento, pode explicar porquê?

O ódio e a destrutividade são afetos primários que todos experienciamos desde o início da vida e várias vezes ao dia: quando somos contrariados, quando temos de fazer algo que não queremos e quando as nossas necessidades não são atendidas, por exemplo. Nós, adultos, não nos lembramos disso, porque a vida familiar e social, através de processos de socialização, nos impõe que transformemos esses afetos. Caso contrário, a existência seria impossível.

Ajudar a criança a fabricar mecanismos internos de modo a aceitar que nem tudo pode ser como ela quer – sem ficar demasiado perturbada com isso – envolve um longo trabalho de construção, consolidação e afinação, porque contraria um desejo fundamental da espécie humana: o de satisfazer todas as nossas vontades.

Como lidar com a raiva e a intolerância à frustração numa criança?

Envolve ter alguma capacidade de os aguentar, o que nem sempre é fácil, porque nos ativa fisiologicamente, porque ficamos também irritados, aflitos e frustrados. Talvez seja importante perceber isso. Porque é que ficamos irritados ou aflitos com a raiva da criança? Em que situações isso acontece? Será que os nossos pais se irritavam connosco, quando éramos crianças? Será que pensamos que não estamos a fazer um bom trabalho com a criança? Será que temos medo que ela deixe de nos amar? Analisar as respostas a estas perguntas poderá ajudar a criar um espaço interno de maior compreensão da criança.

Como gerir ou o que fazer numa birra?

Julgo que é importante perceber que a birra é um descontrolo que ocorre quando a criança perde temporariamente a capacidade de se regular afetivamente. Recordemos que o seu aparelho psíquico ainda está em formação e que, de vez em quando, ela precisa que lhe "emprestemos o nosso". Na realidade, se nos colocarmos no lugar da criança, percebemos que deve ser muito chato e confuso ter os adultos a dizer-nos o tempo todo como estamos crescidos e capazes e, ao mesmo tempo, ter os adultos a mandar em nós em quase todos os aspetos da nossa vida.

Tendo isto por base, entendemos que em situações em que a criança está mais cansada, frágil, triste ou zangada, ela descontrola-se mais facilmente. Se for possível, isto é, se a criança for capaz de ouvir o que lhe é dito, colocarmos os seus sentimentos por palavras pode oferecer uma espécie de contenção ou regulação externa, porque estamos a mostrar-lhe que conseguimos entender o que se passa com ela. Se ela estiver muito perturbada, oferecer contenção física (por exemplo, um abraço) pode ajudar, num primeiro momento.

Um castigo adequado é onde existe uma ligação entre o comportamento e a privação, que dá possibilidade à criança de consertar o mal que foi feito.

Catarina Perpétuo, psicóloga clínica especialista em psicologia do desenvolvimento

Diz que é importante os castigos serem adequados para serem úteis. O que é que isto quer dizer?

Um castigo é uma privação temporária de um privilégio, onde há um exercício de poder por parte do adulto em relação à criança, poder ao qual a criança se submete. É bom que tenhamos consciência de que, muitas vezes, o castigo surge como forma de retaliação ("como não fizeste aquilo que eu queria, agora vais ficar privado de fazer uma coisa que tu gostas"), o que compromete o objetivo pedagógico de socializar a criança.

Um castigo adequado é um castigo onde: existe uma ligação de significado entre o comportamento da criança e a privação que se segue; se dá possibilidade à criança de reparar, isto é, consertar o mal que foi feito. Se ela partiu um brinquedo, deverá ajudar a arranjá-lo ou a comprar um novo, em vez de ficar privada de brincar; se sujou o sofá e o chão porque estava a comer enquanto via televisão, deverá ajudar a limpar o que sujou, em vez de ficar privada de ver televisão; se foi repreendida por responder mal a um professor, deverá pedir-lhe desculpas, em vez de ficar privada de ir ao treino de futebol.

Se fez alguma coisa que a fez sentir-se tão culpada que nunca mais vai querer repetir, talvez não seja preciso atribuir um castigo. A culpabilidade já é castigo suficiente. Os castigos que não têm ligação com o comportamento transgressor da criança e que não tentam repará-lo, fazem com que a criança vá entrando numa lógica de evitar o comportamento porque receia a consequência – não porque compreendeu o que fez e assumiu a responsabilidade por isso.

Na transição da infância para a adolescência dá-se uma mudança na forma como os filhos veem os pais: do estatuto de super-heróis a rivais. Porque é que isso acontece?

Vamos por partes. Quando a criança é pequena, frágil e dependente, intui que o mundo pode ser um lugar perigoso e que não conseguiria sobreviver sozinha. Por um lado, a sua fragilidade faz com que precise de transformar os pais em super-heróis, que sabem como a proteger e que lhe dão amor. Por outro lado, o contraste entre essa fragilidade e o poder dos adultos, por outro, alimenta essa fantasia de que os pais são super-heróis. É como se ela pensasse: "Eu sou pequenino, mas eles sabem o que fazer e, por isso, um dia eu também vou saber, quando for crescido e poderoso como os meus pais".

Mas a criança, quando desenvolve essa fantasia, não faz ainda ideia de que um dia vai ser adolescente. Na adolescência, a relação transforma-se de várias maneiras. O jovem começa a ir percebendo que o mundo não é bem como ela imaginou, que os adultos também falham, que afinal não sabem tudo e que, sim, o mundo pode ser um lugar perigoso e hostil. Aliás, é-o muito por causa dos mesmos adultos que sempre ditaram as regras e em quem eles acreditavam cegamente. Descobrir isso é perder os seus super-heróis, e isso é um desapontamento insuportável contra o qual não os podemos proteger.

Terão de passar por isso. Esse desapontamento será responsável pela desvalorização e arrogância em relação aos adultos característica dos adolescentes. Ao mesmo tempo, as transformações corporais e identitárias colocam o adolescente num lugar de grande incerteza e insegurança a partir do qual invejam secretamente os adultos, que já passaram por isso. Desta maneira, desejam medir forças com eles, comparar-se com eles fisicamente, emocionalmente, e sair a ganhar, o que caracteriza a rivalidade.

Nada disto é fácil para os pais, que não entendem ao certo as máscaras que o adolescente usa para esconder a sua angústia. Lidar com isso envolve, da parte dos pais, alguma segurança e capacidade de o suportar, aceitando que perderam o seu estatuto antigo de super-heróis, estabelecendo limites quando necessário e permitindo ao adolescente ter espaço para si mesmo e para construir também outras relações.

Refere que os amigos são essenciais à sobrevivência do adolescente. É literal?

Os amigos não se tornam mais importantes que a família. A família mantém a sua importância. A forma como as relações familiares são vividas e o lugar do adolescente na família é que se altera. Como referi na resposta anterior, entrar na adolescência é, em parte, vivido como um desapontamento com os seus super-heróis e com as certezas anteriores que trazia dentro de si.

Ao mesmo tempo está a tornar-se, também ele, adulto, e a aproximar-se do mundo dos pais. Por isso mesmo, essa proximidade anterior com os adultos da família torna-se insuportável e o adolescente vira-se para fora da família. A sobrevivência de que falo é a sobrevivência psíquica, que se refere à consolidação da sua identidade e ao cumprimento das tarefas psíquicas da adolescência.

Os amigos servem para os adolescentes encontrarem novos modelos quando os modelos parentais (os "super-heróis") falharam; servem para compararem experiências e perceberem que as suas angústias são partilhadas; servem para os ajudar a estabilizar a sua identidade, os seus gostos, os seus valores e os seus projetos. Caso essa viragem para os amigos não ocorra, isso dificulta o luto dos antigos pais super-heróis, o investimento em novas relações e projetos, a mente empobrece, a autonomização é mais difícil e a consolidação da identidade fica comprometida.

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