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João Carlos Barradas
João Carlos Barradas
18 de outubro de 2025 às 10:00

O anticomunismo dos outros

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Edição de 15 a 21 de outubro

Cenas de mau-gosto como equiparar fascismo e comunismo, sistemas ditatoriais aspirando a dominação totalitária, «não se faziam em jantares de esquerda»

A notícia de outra cimeira na tentativa de Trump e Putin chegarem a entendimento sobre a partilha de esferas de influência na Europa percebe-se melhor tendo em conta que os aliados europeus de Kiiv são incapazes de prover às necessidades militares da Ucrânia.

O programa de compra de armamento norte-americano por estados da NATO para fornecimento à Ucrânia, anunciado em Julho, ficou aquém do esperado por escassez de equipamentos, munições e financiamento.

As entregas globais de material militar a Kiiv diminuíram 43% em Julho e Agosto, em comparação com o primeiro semestre de 2025, segundo dados apurados pelo Kiel Institut für Weltwirtschaft.

A ajuda financeira e humanitária da União Europeia em Julho e Agosto manteve, todavia, montantes idênticos ao primeiro semestre, ascendendo a 7,5 mil milhões de euros, mas os 27 não reúnem condições para sustentar por si sós o esforço de guerra ucraniano.

Quando Trump suspendeu, em Março, os fornecimentos militares dos Estados Unidos à Ucrânia, soou a hora da verdade para aliados europeus de Kiiv que, apesar de puderem contar com o Canadá, têm de descartar a Turquia e remeter-se a parcerias entre a Grã-Bretanha e a União Europeia.

A demarcação

Às carências de capacidade industrial militar europeia somam-se divisões políticas patentes numa linha de demarcação entre estados da linha da frente – temerosos do perigo iminente que a ambição putinista de restauração da esfera imperial de influência de Moscovo representa – e países mais a Ocidente e a Sul em que vingam níveis diversos de acomodação com Moscovo.

Nos estritos limites da União Europeia existem, ainda, clivagens ideológicas abissais em que os legados de nacionalismos xenófobos, fascismo, comunismo e nazismo, das chacinas da Grande Guerra e décadas seguintes, condicionam a própria ideia de estado nacional soberano e de direito à nacionalidade.

Nas actuais circunstâncias, em estados notoriamente marcados pelas sequelas da Guerra Fria, como a Hungria, a Eslováquia ou a República Checa, a conveniência política pode levar à conivência com o regime de Putin como baluarte de conservadorismo autoritário.

Já a direita radical italiana, por sua vez, rejeita maioritariamente o expansionismo revanchista de Putin, enquanto, pelo contrário, a extrema-direita em França cultiva a velha estratégia de entente com Moscovo.

A Croácia lança âncora a ocidente, valendo-se de um lastro de catolicismo político de má memória, mas essencial ao entendimento com a Baviera alemã no conflito com a Sérvia ortodoxa, candidata à integração na União Europeia e alinhada com um putativo eslavismo ortodoxo do Kremlin.

Fascismo e comunismo 

A Alemanha é um caso singular de estado nacional, formado na segunda metade do século XIX num clima de expansionismo virulento, que se debate, por seu turno, com equilíbrios internos ambíguos.

Os legados do nazismo e do sovietismo comunista estão sempre presentes nas opções e limitações da Alemanha reunificada como estado de direito.

O confronto entre comunismo e nazismo, o que ficou dessas guerras, é uma das fracturas que definem a Europa.

A condenação inequívoca dos ideários nazis e comunistas predomina em países que passaram pelas duas ditaduras.

Lenin, Stalin, Hitler representam violência muitíssimo superior ao fascismo de Benito Mussolini – a pioneira alternativa ao liberalismo, socialismo e comunismo no início da década de 1920 –, mesmo considerando os massacres italianos em África que assumiram um cunho racista e de extermínio equiparável à prática de outras potências coloniais, ainda que ideologicamente distintas do genocídio judaico hitleriano.

É de regra evocar que o comunismo teve nos seus primórdios uma «atmosfera de autenticidade ideológica», evocando ideais de fraternidade humanista, conforme sublinhou o filósofo polaco Lezek Kolakowski, o que não obstou à violência de sectarismo exclusivista de uma autoproclamada vanguarda universalista tirânica.

Por cá

Temor e repúdio pelo bolchevismo foram as reacções imediatas, em Portugal, ao triunfo bolchevique na Rússia no final de 1917, numa altura em que o anarco-sindicalismo predominava no movimento operário.

Só depois do fracasso da revolta dos operários vidreiros da Marinha Grande, em 1934, soçobrou o anarco-sindicalismo, abrindo caminho ao sovietismo comunista.

A vaga anticomunista foi esteio vital do nacionalismo autoritário na consolidação do Estado Novo, afirmando-se, sem rebuço, durante a guerra civil espanhola de 1936-1939.

Na frente antifascista o Partido Comunista começa a partir do final dos anos de 1930 a impor-se como força hegemónica.

Desde então cenas de mau-gosto como equiparar fascismo e comunismo, sistemas ditatoriais aspirando a dominação totalitária, «não se faziam em jantares de esquerda», como registou, em memória, João Bénard da Costa, lembrando um encontro em meados dos anos 1960 no Grémio Literário com o poeta Pierre Emamnuel.

Viera o francês a Lisboa esclarecer que o o Congrès pour la Liberté de la Culture, criado em 1950, cujo financiamento pela CIA fora publicamente denunciado em 1966, passaria a dar lugar à Association Internationale pour la Liberté de la Culture, com dinheiro da Ford Foundation.

A clivagem de dois mundos andava por ali, mesmo que comunistas como o músico Fernando Lopes-Graça ou o economista Armando de Castro, fossem subsidiados, e o caso português é curioso por se tratar de uma aposta secundária na frente cultural da Guerra Fria em que sobraram rancores.

Na Polónia, pelo contrário, a aposta foi alta e o ganho imenso.

«O Clube de Leitura da CIA», (Edição Casa das Letras, Lisboa, 2025) de Charlie English, narra o programa de contrabando dos serviços secretos norte-americanos de livros para a Polónia.

Tratou-se de uma operação barata, entre 2 a 4 milhões de dólares ano, que financiando a partir de 1950 o contrabando de livros – mais de 10 milhões de exemplares – e material para sustentar tipografias clandestinas acabaria por dar um contributo vital para a divulgação da cultura polaca de oposição ao comunismo.

A cultura polaca oposicionista, católica e laica, era só por si irremediavelmente irredutível a pretensões russas, tzaristas ou soviéticas.

Jerzy Giedroyc, refugiado em Paris, e a sua revista Kultura, saldariam, desde 1947, as contas pelo lado da liberdade.

Escritores no exílio, Czeslaw Milosz e Witold Gombrowicz, cineastas presentes nos piores tempos, Andrzej Wajda, compositores como Krzysztof Pendereck, eram alheios ao comunismo.

A cultura da Polónia do exílio e da resistência interna era esmagadoramente dominante ainda antes do Solidarnosc afrontar o regime a partir de 1980.

São as histórias destes distintos mundos que ainda hoje traçam os destinos da Europa.

PS

Em Portugal, sempre esteve presente gente digna, equivocada numa longa e penosa militância comunista, que, para sua boa memória e integridade, nunca assomou às tentações do poder.

O historiador António Borges Coelho, falecido esta sexta-feira aos 97 anos, foi um desses homens e, como ensinou, é nas contingências e crenças que uma pessoa vive, se equivoca, esquece, magoa, reinventa, aprende, falha e recomeça.

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