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Livros banidos por Trump? Lemos dois a uma criança de 6 anos

Ana Taborda
Ana Taborda 23 de fevereiro de 2025 às 10:00
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As obras infantis de Julianne Moore - sobre uma rapariga de sardas que se sente diferente; e a sua amizade com um rapaz que sente o mesmo - não chocaram o pequeno Francisco. “Somos todos diferentes, qual é o mal?”

Primeiro spoiler alert. Este artigo fala de um livro acabado de retirar de algumas escolas americanas por Donald Trump. Para perceber porque é que Freckleface Strawberry (Morango Sardento, em tradução livre) podia ser considerado polémico, decidi ler dois livros da coleção ao seu público alvo: as crianças. Neste caso a uma criança em concreto, o meu filho de 6 anos. Se quiser ser totalmente surpreendido, avance diretamente para um ebook em inglês, a forma mais rápida de ter acesso às obras que a atriz Julianne Moore publicou, duas delas (as que lemos) em 2007, há quase 20 anos.

Jamie McCarthy

Segundo spoiler alert: o Francisco não encontrou nada de estranho no primeiro Freckleface Strawberry, em que uma rapariga tenta de todas as formas tirar as suas sardas e chega a usar uma máscara para as esconder - até perceber que pode viver muito bem com elas: "qual é o problema de ter milhões de sardas quando tenho milhões de amigos?"; nem em Freckleface Strawberry Melhores amigos para sempre, que retrata a sua amizade com um rapaz muito alto e com uma alcunha pouco simpática: windy pants. "Toda a gente é diferente, qual é o mal?"

Mas antes da leitura, os factos: esta semana, a administração Trump decidiu banir o livro infantil Freckleface Strawberry das escolas administradas pelo Departamento de Defesa norte-americano, onde estudam os filhos de militares. De acordo com o novo presidente, todos os livros "potencialmente relacionados com a ideologia de gênero ou com temas discriminatórios da ideologia da equidade" serão examinados.

Freckleface Strawberry, escrito quando ainda não se falava em ideologia de género, foi um deles. E qual dos livros (a coleção tem vários) foi retirado? As notícias não especificavam. E se no primeiro Freckleface Strawberry não encontrámos nada que pudesse referir-se à ideologia de género, no segundo temos uma suspeita do que possa ter motivado a decisão de Trump. Mas já lá iremos.

A primeira dificuldade ao ler Freckleface Strawberry Melhores amigos para sempre não teve nada a ver com a ideologia de género. Foi aliás bem mais simples: o Francisco não sabia bem o que eram sardas, ou "sardinhas", como lhe chamou. "Assim sardas como tu tens?" perguntou apontando para alguns sinais na cara da mãe. "Não filho, isso não são sardas, são sinais", expliquei-lhe. "Ah, já percebi, são essas bolinhas", corrigiu quando lhe mostrei a capa do livro, onde uma menina com dois totós ruivos e dezenas de sardas espalhadas por todo o corpo tem atrás dela um rapaz muito mais alto.

"Eram os melhores amigos", escreve a obra de Julianne Moore. "Eram muito parecidos (...) tinham os dois tamanhos fora do comum. Ele era demasiado alto, ela demasiado baixa; tinham os dois alcunhas; e tinham os dois família." E foi na descrição da família que encontrámos a única referência possível aquilo que Trump apelida de "ideologia de género". Enquanto Helen, o Morango Sardento, diz ter "uma mãe, um pai, uma irmã e um irmão", o seu melhor amigo segura a fotografia de uma família diferente: "Eu tenho duas mães, um irmão mais novo e um cão."

"Há famílias de várias composições. Pode haver só uma mãe, só um pai. Porque é que não haverá uma família com duas mães? O livro apresenta dois tipos de arranjos familiares, podiam ser outros. Além disso, estas são situações cada vez mais comuns e colocá-las num livro infantil não tem nada de errado, muito pelo contrário, é uma boa oportunidade de os pais falarem com os filhos sobre o tema", defende Clementina Almeida, psicóloga clínica especializada em bebés e crianças. 

"O que é que achaste da amizade deles?", perguntei ao pequeno Francisco. "Achei que eles eram tão amigos que eram quase família." E o que é a família para ti? "Para mim a família é tudo. Não há nada mais importante do que a família. "E achaste estranho ele ter duas mães?" "Achei", começou por dizer o Francisco - para logo depois corrigir. "Quer dizer, não é estranho, porque há meninos que namoram com meninos e meninas que namoram com meninas."

Para ele, a polémica não podia ser essa, percebi rapidamente. "Porque é que achas que o presidente dos Estados Unidos não gostou do livro - assumindo que terá sido este - e mandou retirá-lo de algumas escolas?", perguntei. "Se calhar foi porque eles pararam de brincar". Não foi, expliquei sobre o momento em que a pressão dos amigos fez com que passassem a brincar cada um com grupos que lhes diziam serem mais semelhantes: ele com rapazes, ela com raparigas. "Então se calhar ele tem algum problema com a amizade. Se calhar não tem amigos", atirou como nova hipótese.

À medida que a história continuava, as dúvidas do Francisco eram outras: "o que é um falafel?" perguntou-me enquanto os miúdos descreviam o que gostavam mais de almoçar (de preferência longe do refeitório da escola) - cachorros quentes e o petisco típico de Israel, Palestina e outros países do Médio Oriente. Quando me preparava para explicar tudo sobre o falafel, mandou-me continuar a ler. E só descansou quando os dois amigos decidiram que gostarem um do outro era mais importante do que as diferenças que os outros viam neles - e voltaram a ser melhores amigos.

"Há vários estudos em que colocam uma criança branca e uma criança negra ao lado uma da outra e perguntam porque é que acham que são diferentes. E elas pensam, pensam e depois dizem coisas como: 'eu gosto de alface e tu não'. Até certa idade podemos aparecer de cabelo azul que as crianças acham normal", explica Clementina Almeida. "Se pensarmos bem, durante a Guerra Colonial muitas crianças portuguesas foram educadas por duas mulheres, podia ser a mãe, a avó, uma tia… Era muito comum", acrescenta.

De acordo com a notícia do jornal britânico The Guardian, alguns destes livros foram suspensos por uma semana, outros foram retirados por tempo indeterminado e aguardam "análise futura" - que não se sabe quando acontecerá. Como também não se sabe qual destas interdições foi aplocada ao livro de Julianne Moore, que já afirmou ter sentido um "grande choque" com a decisão. "Estou verdadeiramente triste e nunca pensei ver uma coisa assim num país onde a liberdade de expressão é um direito constitucional", acrescentou a atriz.

Julianne Moore, que em 2015 venceu o Óscar de Melhor Atriz (pelo papel em O meu nome é Alice) disse ter ficado "particularmente surpreendida" com a notícia porque é uma "orgulhosa antiga aluna" de uma escola secundária americana de Frankfurt - agora encerrada - gerida pelo Departamento de Defesa. O seu pai fez carreira no exército e foi um dos americanos que combateu na guerra do Vietname.

"Não podia estar mais orgulhosa do meu pai e do seu serviço ao País. É revoltante para mim perceber que crianças como eu, que cresceram com um dos pais militar e frequentaram uma escola [do Departamento de Defesa] não terão acesso a um livro escrito por alguém com uma experiência de vida tão parecida com a delas. E não posso deixar de questionar o que há de tão controverso neste livro infantil para que tenha sido banido pelo governo dos EUA." Pelo menos o pequeno Francisco concorda com ela. 

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