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DAC 6: somos todos denunciantes?

Miguel Matias , João Luz Soaress 11 de fevereiro de 2021 às 07:10
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Advogados questionam aplicação de uma nova diretiva europeia, que os transforma como denunciantes dos seus clientes

No transacto 21 de julho de 2020, foi publicada a Lei n.º 26/2020, que transpõe a Diretiva da União Europeia 2018/822 ("DAC 6") e que prevê um reforço da obrigação de comunicação à Autoridade Tributária e Aduaneira ("AT") dos mecanismos internos ou transfronteiriços que tenham relevância fiscal, e que agora vê surgir vários desenvolvimentos que parecem ter um único escopo: para lá dos limites legais e dos direitos dos contribuintes, e para lá do resguardo secular do sigilo profissional dos intervenientes jurídicos, a AT pretende apertar fortemente o cerco à fraude e evasão fiscal. Resta saber: os fins justificam os meios?

Este conjunto de obrigações já não é novidade, sendo que já existia um largo lastro legal, nomeadamente, através do Decreto-Lei 29/2008, de 25 de fevereiro, em que se estabelecia uma larga panóplia de deveres de comunicação, informação e esclarecimento à AT com o escopo claro de combate a possíveis esquemas de evasão ou fraude fiscal. No entanto faltava o elemento essencial: um certo vector de operacionalização daquele dever de comunicação que nunca conseguiu, no quadro legislativo nacional, obter o desejado patamar de utilização e eficácia.

Mas aquele novo Decreto-Lei vem tentar sedimentar uma revolução que passou por três vectores diferenciados e que têm um impacto concreto nos contribuintes mas, também, para os próprios responsáveis pelo acompanhamento jurídico das operações fiscais. Esses desenvolvimentos passam: pelo alargamento e aplicação do âmbito de obrigatoriedade da comunicação também a mecanismos internos (em contravenção com o escopo da própria Directiva que identificava essa obrigação apenas para mecanismos externos); ii) aqui muito importante, pela revogação da exclusão dos advogados e sociedades de advogados da obrigatoriedade de comunicação; iii) pela obrigatoriedade de comunicação de mecanismos transfronteiriços ocorridos desde 25 de junho de 2018.

Ora temos aqui três ingerências claras naquilo que são as esferas de direitos dos contribuintes e, num outro espectro, dos próprios advogados. Em primeiro lugar, a Directiva previa apenas a obrigatoriedade de comunicação relativamente a mecanismos externos, sendo que esta aposição e previsão para os mecanismos internos, parece antever uma estratégica tentativa de contornar aquilo que seria o espectro de privacidade e reserva dos contribuintes e alguma dificuldade probatória com que a AT se debate tradicionalmente neste tipo de processos. Ainda assim, relembre-se que alguns destes mecanismos/operações são já fiscalizados de acordo com outra legislação fiscal em vigor, pelo que poderemos estar perante um problema claro de sobreposição de legislação e, mais grave, de sobreposição (e confusão) de competências na tramitação deste tipo de processo com uma clara vítima: o contribuinte que se vê emaranhado em círculos concêntricos de aparelhos de supervisão fiscal, com uma correlacta diminuição dos seus direitos e garantias. Mas, mesmo aqui, recorde-se que essa transposição também poderá permitir à AT alcançar zonas cinzentas de possível  punibilidade, como é o caso das estruturas de planeamento fiscal que poderão ser também aqui colocadas sobre apertada vigilância, para lá do âmbito tradicional de aplicabilidade das normas anti-abuso.

Em segundo lugar, veja-se que o novo decreto-lei, acabando com a anterior prerrogativa de excepção, exige que os vários intervenientes jurídicos, com os advogados a terem uma previsão de destaque, sejam também obrigados a reportar à AT, com base num "juízo de ponderação", sempre que encontrem indícios de qualquer prática que consubstancie um qualquer procedimento e evasão ou fraude fiscal no contexto da avaliação da situação jurídica do cliente, no âmbito da consulta jurídica, no exercício da sua missão de defesa ou representação do cliente num processo judicial, ou no que diz respeito de um processo judicial. Isto é, a previsão abrange aquilo que é o core tradicional de competências de um advogado, parecendo querer estipular uma previsão transversal e sempre presente, sem a necessária diferenciação qualitativa do tipo de operações fiscais e da sua eventual perigosidade (numa teia de evasão e fraude fiscal)  para efeitos de activação daquele dever de comunicação.  Por outro lado, embora o dever de comunicação dos intermediários seja sempre subsidiário em relação ao dever principal do contribuinte, a verdade é que, uma vez mais, e à semelhança do que acontecerá já a propósito de outras legislações, parece haver aqui um ataque sistemático ao segredo profissional dos Advogados (e das outras profissões jurídicas) que permitirá à AT, agora, ter acesso a todo um acervo de informação que antes só obteria com um controlo judicial prévio e nos limites estabelecidos pela rede legal, e que, agora, simplesmente desaparece.

Em terceiro lugar, não é despiciendo que esta obrigação tem também um efeito retroactivo: exige a comunicação de mecanismos transfronteiriços desde 25 de junho de 2018, com a violação dos princípios da certeza e segurança jurídica, exigindo um esforço de conservação de informação da documentação, por parte dos contribuintes e intermediários, relativos a operações concretizadas antes da entrada em vigor do referido decreto-lei, naquilo que é, também, uma previsão concretamente desproporcional e questionável.

Entre estas fragilidades, a operacionalização é ainda feita através de conceitos subjectivos ("características-chave", "teste do benefício principal")  que, para lá daquilo que seria uma listagem minimamente taxativa dos mecanismos sujeitos ao dever de comunicação, consagram apenas situações meramente indicativas e enunciativas abertas a interpretação e que consolidam, apenas, a incerteza no momento de aplicabilidade.

Este DL foi, assim, além da Directiva para justificar aquilo que passa a ser a consagração de um esforço quase persecutório da AT, esforço esse que não está sujeito a qualquer válvula escape de cariz de controlo judicial prévio. Esforço esse que tem efeitos retroactivos e que se empenha na descoberta dos esqueletos fiscais dos contribuintes , e que consagra, também, aquilo que é mais um ataque claro à esfera inviolável do sigilo profissional dos advogados, pedra de toque da profissão. Mas , aqui, a consequência mais perniciosa será, talvez, uma certa ideia de clara inversão do ónus investigatório em que é o próprio contribuinte que tem de revelar e comunicar o seu modelo de negócio e, não o fazendo, espera-se que o Advogado possa suprir essa falta de comunicação (violando, no processo, a sua obrigação de sigilo profissional, elemento essencial de realização de justiça num estado de direito!).

O contribuinte (e o seu Advogado) torna-se, assim, agente de investigação da sua própria culpabilidade, com uma violação profunda daquilo que seria o seu direito à não autoincriminação. No fundo transformando-se todo e qualquer interveniente num denunciante qualificado, sem regra nem peso.

*Os autores são advogados da sociedade de advogados RSA-LP

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