O principal suspeito do homicídio do CEO da UnitedHeathcare tornou-se símbolo do descontentamento popular com um dos piores sistemas de saúde em países desenvolvidos. A eleição de Donald Trump pode complicar ainda mais a saúde dos americanos.
Quando os meios de comunicação social reportam uma notícia de homicídio, a repercussão no espaço público é geralmente de tristeza, condenação e consternação. Nos Estados Unidos em particular, o país desenvolvido com a segunda maior taxa de homicídios do mundo (a seguir à Rússia), a morte pode ser o ponto de partida para discussões mais abrangentes sobre brutalidade policial, a prevalência de crimes de ódio ou a necessidade de maior controlo de posse de armas - sempre com compaixão pelas vítimas e o ónus nos perpetradores.
Pennsylvania State Police/Handout via REUTERS
Não foi este o caso de Brian Thompson, CEO da UnitedHealthcare, cuja morte reacendeu o debate sobre a validade e a justiça do sistema nacional de saúde com os piores resultados entre os países desenvolvidos, numa altura em que a eleição de Donald Trump promete mudanças estruturais na política de saúde americana.
Na sequência do homicídio, que ocorreu no início da manhã do dia 4 de dezembro, quando Thompson foi baleado pelas costas à saída do hotel onde estava hospedado, em Nova Iorque, algumas figuras proeminentes da política expressaram as suas condolências, incluindo o governador do Minnesota e ex-candidato a vice-presidente democrata, Tim Walz. No espaço digital, no entanto, o sentimento predominante foi de celebração, bem como de condenação de uma empresa acusada de levar os seus clientes à bancarrota ou à morte por recusar cuidados médicos.
"Peço desculpa, mas o meu seguro não cobre condolências", lê-se numa de centenas de publicações semelhantes em reação à morte de Thompson nas redes sociais, enquanto outras relatavam histórias pessoais ou de familiares de recusas por parte da UnitedHealthcare em cobrir as despesas médicas. Em comentários numa página do Reddit para profissionais de Medicina, numa publicação entretanto apagada, lamentava-se os "anos de vida retirados a pacientes e às suas famílias pelas recusas" da empresa.
Revelada a identidade e aspeto do suspeito, Luigi Mangione, a internet aclamou-o como espécie de justiceiro fora-da-lei, com a proliferação de memes e publicações de humor negro a celebrar o homicídio e a comparar Mangione à figura mitológica de Robin dos Bosques. Itens de merchandise com o seu nome, entretanto descontinuados, foram colocados à venda em plataformas como o e-Bay e a Amazon, com mensagens como "Libertem o Luigi" e "Cuidados de saúde universais são um direito humano".
Uma iniciativa na GiveSendGo, plataforma de angariação de fundos, acumulou mais de €120 mil para pagar as suas despesas legais (uma angariação semelhante, na GoFundMe, foi apagada pela plataforma); músicas foram escritas em sua homenagem, e a sua aparência gerou um fenómeno de culto, com comparações feitas a atores como Timothée Chalamet e Dave Franco. As palavras inscritas nas balas encontradas no local do crime, "Deny, Defend, Depose" ("negar, defender, depor", referência a uma expressão conhecida na indústria das seguradoras de saúde, "negar, defender, adiar", para minimizar pagamentos aos clientes), foram tornadas grito de guerra da multidão descontente com a indústria americana da saúde.
O CEO e o descontentamento popular
Pouco se falou sobre Brian Thompson, o gestor de 50 anos que deixou para trás a mulher, Paulette Reveiz, e dois filhos. Nascido em 1974 em Ames, Iowa, completou em 1997 o curso de gestão com distinção e trabalhou até 2004 na PricewaterhouseCoopers (PwC) antes de transitar para a UnitedHealthcare, onde se especializou em programas governamentais de seguros de saúde, como o Medicaid. Em 2021, foi nomeado CEO da empresa, iniciando um mandato que ficaria conhecido pelo aumento exponencial tanto de lucros quanto de recusas em cobrir tratamentos.
Sob a sua liderança, a United implementou um plano de recusas de pagamentos daquelas que considerava serem "visitas não-críticas" a unidades de emergência, medida que foi alvo de duras críticas numa carta pública da Associação Americana de Hospitais. Iniciou ainda um sistema de autorização prévia para pagamentos através de inteligência artificial que fez mirrar o número de pagamentos autorizados e pacientes tratados, e culminou numa investigação à empresa por parte do Senado norte-americano.
Em três anos, Thompson tornou a UnitedHealthcare na maior seguradora privada de saúde dos Estados Unidos, mas também na que maior percentual dos pedidos de pagamento de serviços de saúde recusa: 32%, o dobro da média nacional de 16%. Os seus resultados, entretanto, dispararam: aumentou os rendimentos da empresa de €273 mil milhões para €353 mil milhões, e os seus lucros líquidos de €11 mil milhões para cerca de €15 mil milhões. A compensação pessoal do CEO ascendeu, em 2023, a quase €10 milhões por ano.
Para Carlos Poiares, professor de Criminologia e Psicologia Criminal na Universidade Lusófona, é este descontentamento que está na base do apoio popular que Mangione tem recebido, não obstante a natureza do crime. "Há o problema de as pessoas se sentirem traídas e enganadas nas competências das instituições, e as questões de saúde são muito sensíveis", afirma. Acrescenta que, "quando se fazem apelos a seguros de saúde privados que substituem os cuidados do Estado, as pessoas podem estar perante uma falência dolosa", o que "pode não ser assimilado pacificamente pelos afetados".
O próprio comportamento do suspeito, defende, pode ser explicado por esta questão - "uma reação não controlada e impulsiva relativamente a um sistema que defraudou as expectativas do indivíduo", opina. É um crime "que resulta de uma situação em que o sujeito sofreu prejuízo e não pode resolvê-lo de outra maneira", embora reconheça que também possa "estar relacionado com problemas de saúde mental do autor" do homicídio.
Mangione, de 26 anos, que está preso no estado da Pensilvânia, onde foi capturado, e luta contra a extradição para o estado de Nova Iorque, sofria de problemas de costas, e as autoridades suspeitam que o crime tenha sido motivado pela frustração com o seu tratamento. O suspeito foi detido na posse de uma arma de fogo consistente com a balística do local do crime, e um manifesto de três páginas que condenava a indústria das seguradoras de saúde, descrevendo o homicídio como um "derrube simbólico".
No rescaldo do crime, cartazes com fotografias de CEOs de seguradoras de saúde e a inscrição "Procurado" têm proliferado nas ruas de Nova Iorque e na internet, com listas de alvos a serem espalhadas e avisos de que os líderes da indústria deveriam "ter cuidado". As seguradoras responderam com um aperto nas medidas de segurança, ocultando informação sobre os seus executivos, cancelando reuniões presenciais e instituindo o teletrabalho, e houve repercussões mesmo fora da indústria: empresas de segurança privada registaram um boom de negócio na sequência do homicídio, em setores como o financeiro e a manufatura.
Uma indústria em transformação
O sistema de saúde americano é amplamente reconhecido no mundo como problemático: de acordo com um relatório de 2023 do Fundo da Commonwealth, os Estados Unidos têm "os piores resultados de saúde de todas as nações com elevado rendimento". Neste grupo de países, revela o relatório, os EUA registam os maiores gastos com saúde, a mais baixa esperança média de vida, e as mais elevadas taxas de mortalidade por doenças tratáveis, de mortalidade materna e infantil, de suicídio e obesidade. Permanece o único país desenvolvido a não oferecer um serviço de saúde universal aos seus cidadãos.
A indústria foi particularmente abalada pela reeleição de Donald Trump e o anúncio de que nomearia para chefiar a Secretaria de Saúde e Serviços Humanos o ex-candidato presidencial Robert F. Kennedy, Jr., um advogado sem formação médica, proponente de teorias da conspiração anti-vacinas e negacionista do COVID-19. A decisão colocou em queda livre as ações de algumas das maiores farmacêuticas do mundo, como a Pfizer e a Moderna, e motivou um grupo de 77 laureados com o prémio Nobel de Medicina, Química, Física e Economia a dirigir uma carta ao Congresso americano, exortando-o a não confirmar a nomeação.
Gage Skidmore
Colocar Kennedy no comando da Secretaria "colocaria a saúde pública em risco e vai prejudicar a liderança global da América nas ciências da saúde", lê-se na carta, que condena a sua "falta de credenciais e experiência relevante", "oposição a muitas vacinas que protegem a saúde e salvam vidas", "promoção de teorias da conspiração sobre tratamentos bem-sucedidos à SIDA e outras doenças" e "crítica beligerante de agências respeitadas".
Caso a nomeação de Kennedy seja confirmada, "o problema vai ser monumental", disse ao jornal Público Tiago Correia, especialista em saúde pública internacional do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa - um problema que não se cinge ao país, visto que estas agências "financiam programas dentro dos Estados Unidos, mas também internacionais". Explica que "os EUA são um importante financiador internacional em acordos bilaterais e multilaterais" e que, "mesmo que não desapareçam, o investimento e as prioridades para a saúde global claramente vão ser diminuídas".
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