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Gisèle Pelicot, de vítima a símbolo da luta contra a violência sexual

Sónia Bento
Sónia Bento 19 de dezembro de 2024 às 07:00
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Os mais de 50 homens que terão violado Gisèle Pelicot, depois de drogada pelo próprio marido, conhecem a sentença esta quinta-feira. O caso horrorizou a França e o mundo e ela tem sido elogiada pela coragem.

"Ele empenhava-se muito na preparação das refeições. Um dia, fez puré de batata em recipientes distintos, um para ele e outro para mim, mas nunca estranhei porque a minha comida era diferente. Também me levava o meu gelado favorito à cama e eu pensava: ‘Que sorte tenho. Este homem é um amor’", respondeu Gisèle Pelicot ao presidente do tribunal de Avignon, no sul de França, onde decorre o julgamento de múltipla violação que desde setembro tem chocado o mundo.

REUTERS/Manon Cruz

A vítima é Gisèle Pelicot, uma mulher de 72 anos, que durante uma década foi drogada pelo marido, Dominique, para ser violada por dezenas de homens que ele contactava através de uma sala de chat online, que denominou "Sem que ela saiba". Bombeiros, militares, pedreiros, jardineiros, camionistas ou guardas prisionais, com idades entre os 26 e os 74 anos, agrediram sexualmente uma mulher inconsciente e inerte na sua própria cama, perante o olhar do homem com quem estava casada há mais de quatro décadas e pai dos seus três filhos – Caroline, David e Florian – e avô dos seus sete netos. Gisèle garantiu que "nunca" sentiu nada: "Adormecia muito rapidamente e acordava com o pijama vestido. De manhã, sentia-me mais cansada do que o normal, mas como fazia caminhadas associei a isso".

Nascida na Alemanha sonhava ser cabeleireira

Dominique começou a sedar Gisèle em 2011. Ela andava sonolenta sem imaginar que o responsável era o seu atencioso marido, que guardava os tranquilizantes numa caixa de sapatos, na garagem. Inicialmente, era apenas ele que a violava. Com ela inconsciente, podia vestir-lhe uma lingerie ousada, submetê-la a práticas sexuais que ela não aceitava e filmá-la em cenas que nunca permitiria. Em 2014, expandiu a sua operação, abrindo a porta de casa a outros homens. Foram mais de 80 violações. O efeito das drogas provocaram em Gisèle perda de peso e de memória, problemas ginecológicos e desmaios frequentes. Com receio de sofrer de Alzheimer ou de um tumor cerebral, foi submetida a exames neurológicos, cujos resultados não justificavam o seu estado. O marido acompanhava-a diligentemente a todas as consultas.

Filha de um militar, Gisèle nasceu em Villingen, no sudoeste da Alemanha, a 7 de dezembro de 1952. Mudou-se para França com 5 anos e aos 9, perdeu a mãe que morreu vítima de cancro. Ainda sem ter completado os 20, conheceu Dominique Pelicot, com quem viria a casar-se. Ambos tinham histórias familiares complicadas, marcadas por perdas e traumas. Sonhava ser cabeleireira, mas fez um curso de datilografia. Teve vários trabalhos temporários até ser contratada pela empresa nacional de energia EDF, onde se reformou como responsável de um departamento de logística para centrais nucleares. Nesta última fase da sua vida, dedicava-se às caminhadas com Lancôme, o seu buldogue francês, e cantava num coro.

20 mil vídeos e fotografias das violações

Em setembro de 2020, Dominique, de 71 anos, eletricista, foi detido ao ser apanhado a filmar debaixo das saias das mulheres num supermercado. A polícia confiscou-lhe o telemóvel, a máquina fotográfica e o computador, antes de o libertar sob fiança. Dois meses depois, Dominique e Gisèle tomaram juntos o pequeno-almoço antes de ele ir à esquadra que o convocou por causa do caso do supermercado.

Ela também foi chamada e o agente disse que lhe ia mostrar uma coisa que não ia gostar. Tinham encontrado mais de 20 mil vídeos e fotografias onde ela aparecia, inconsciente, a ser violada por vários homens. Os vídeos eram acompanhados por descrições com linguagem obscena, além dos nomes dos "convidados". Ela ficou em estado de choque, voltou para casa e contou aos filhos, que passaram a tratá-lo por "progenitor". Depois do divórcio, Gisèle mudou-se para uma aldeia longe de Mazan, é seguida em psiquiatria, mas não toma medicação porque se recusa a ingerir qualquer tipo de substância. Continua a fazer longas caminhadas e já não se cansa.  

Sem anonimato e julgamento público

Dominique assume todos os crimes: "Sou um violador, como todos os que comparecem perante este tribunal". Os 50 réus são provenientes de cidades e freguesias num raio de 50 quilómetros de Mazan, onde aconteceu grande parte das violações. Os outros 20 suspeitos continuam em liberdade porque a investigação não conseguiu identificá-los. Gisèle renunciou ao direito ao anonimato, que têm em França as vítimas de crimes sexuais.

Quis igualmente que o julgamento fosse público, o que significa que os jornalistas estão no tribunal, tomando nota de cada detalhe. "A vergonha deve mudar de lado", declarou a advogada de Gisèle, numa frase que as feministas em França repetem há anos e que resume a relevância histórica deste julgamento. Na última audiência foi aplaudida por dezenas de mulheres, na chegada ao tribunal. "Dizem-me que sou valente. Não é valentia, é vontade e determinação para fazer evoluir a sociedade." Gisèle tornou-se assim um símbolo da luta contra a violência sexual em França.

O Ministério Público francês pede para Dominique uma pena máxima de 20 anos de cadeia. Os outros 49 acusados de agressão sexual e violação agravada podem ser condenados a uma pena de prisão de entre 10 a 18 anos e um outro arguido a uma pena de quatro por "tocar" em Gisèle. A leitura da sentença do caso – conhecido em França como "Violação de Mazan" – está marcada para esta quinta-feira.

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