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Sandra Araújo: "Houve um serviço de informações que operou paralelamente à PIDE, na guerra colonial"

Raquel Lito
Raquel Lito 18 de fevereiro de 2025 às 09:07
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Tinha uma jurisdição local, em Moçambique, e uma rede de informadores. Contudo, rivalizava com a polícia política para ter mais recursos: uma de muitas guerras por contar. A investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa faz revelações surpreendentes no seu novo livro, a ser lançado no próximo dia 27.

Os regimes apoiam-se nos serviços de inteligência, que operam na obscuridade. E foi precisamente a descoberta de um organismo deste tipo, e de relevo nas antigas colónias, em paralelo à PIDE, que motivou o estudo de Sandra Araújo.

A investigadora do Instituto de Ciências Sociais, da Universidade de Lisboa (ICS-ULisboa), prepara-se para lançar Spying On Muslims In Colonial Mozambique, 1964-74 (Espiando Muçulmanos no Moçambique Colonial) – livro de 177 páginas, editado pela chancela britânica Bloomsbery Academic e adaptado a partir da sua tese de doutoramento em Antropologia na Universidade Nova. 

O lançamento acontece a 27 de fevereiro no ICS-ULisboa, às 17h, com direito a debate académico. A autora, filha de angolanos e atenta à história da guerra colonial revela à SÁBADO as principais conclusões sobre um tema que a apaixona há 15 anos e parece-lhe não ter fim.

Uma das revelações do seu livro é que houve espionagem à comunidade muçulmana de Moçambique, na fase da guerra colonial (de 1964 a 1974). Como descobriu?

Estudei os Serviços de Centralização e Coordenação de Informações de Moçambique (SCCIM). Mais concretamente, a forma como fizeram a gestão das comunidades islâmicas de Moçambique. Acabei por utilizar a estratégia de que os muçulmanos foram alvo como um estudo de caso, para iluminar o funcionamento deste serviço, que é pouco conhecido. Mas que, neste contexto, teve um papel bastante importante. Basicamente, houve um serviço de informações que operou paralelamente à PIDE, na guerra colonial. 

Há mais estudos sobre estes serviços secretos (SCCI)?

Sobre este serviço há pouca literatura. Sobre a PIDE há mais trabalhos, em virtude da forte pegada cultural que deixou. Os SCCI foram criados no final de junho de 1961, em Angola e Moçambique. Mais tarde, foram estabelecidos em Macau, onde operaram durante algum tempo e, ainda mais tarde, na Guiné. Os serviços funcionaram de uma forma continuada e consistente, quer em Angola, quer em Moçambique. Tinham um âmbito de jurisdição local, tutelados pelos governadores-gerais. Posteriormente, tiveram uma dupla tutela, reportando também aos comandantes-chefes das regiões militares de Angola e Moçambique, respetivamente.

Há quanto tempo estuda o tema?

Este livro é o resultado de uma pesquisa que começou há cerca de 15 anos. Deparei-me com estes serviços, pela primeira vez, em 2009, quando participei no projeto de investigação Muçulmanos Sob Pressão, em que tive a oportunidade de trabalhar numa equipa multidisciplinar. Comecei a explorar os arquivos nessa altura: primeiro, no âmbito desse projeto; e depois no meu doutoramento. Desconhecia por completo os SCCI, comecei a ver a documentação e a achá-la muito interessante. Apercebi-me que não era um mero gabinete de estudos – inicialmente julgava que era – mas antes um serviço de informações, propriamente dito.

Desenvolveram alguma atividade coberta e tiveram um conflito de jurisdição com a PIDE

Sandra Araújo, investigadora

Os SCCI tinham informadores?

Foi com surpresa que me apercebi que sim. Também desenvolveram alguma atividade coberta e tiveram um conflito de jurisdição com a PIDE, que resultou na perda de competências dos SCCI. Desde que os arquivos dos SCCI de Angola e de Moçambique estão abertos ao público, muitos investigadores acedem à sua documentação, à guarda da Torre do Tombo, para estudar os mais variados assuntos. Isto porque os SCCI produziram documentação sobre as populações coloniais, com destaque para os vários grupos etnolinguísticos e confissões religiosas em Angola e Moçambique.

Encontrou muita documentação na Torre do Tombo?

Sim. É um filão inesgotável. No decurso da pesquisa, explorei o arquivo dos SCCI de Moçambique, mas fui explorando outros. Houve alguns documentos que chegaram aos serviços centrais, em Lisboa. E, portanto, a questão do conflito de competências com os SCCI pode ser vista a partir da perspetiva da PIDE. Além disso, os SCCI, que recebiam dados de várias entidades, remeteram muitos documentos para o ministério do Ultramar. Vi, por isso, muita documentação do Gabinete dos Negócios Políticos. Fui encontrando materiais não só produzidos pelos SCCI, mas também sobre os SCCI. Fui a outros arquivos, como o Histórico-Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros.

No norte de Moçambique, os muçulmanos foram muito fustigados pela violência, estavam no epicentro do conflito e muito distantes da capital

Sandra Araújo, investigadora

Que análise faz da comunidade islâmica em Moçambique?

A comunidade islâmica em Moçambique era fraturada, diversa, em termos teológicos, étnicos, linguísticos e socioeconómicos. No norte de Moçambique, os muçulmanos foram muito fustigados pela violência, estavam no epicentro do conflito e muito distantes da capital.

Que semelhanças e diferenças havia entre os SCCI e a PIDE? 

A primeira coisa que me surpreendeu foi aperceber-me que os SCCI eram um serviço de informações. Não eram uma polícia política. Foram criados sem funções policiais, desde a sua génese, para evitar um conflito de competências com a PIDE. Foi uma tentativa vã, porque depois houve conflito de competências. A rivalidade com a PIDE também me surpreendeu. Porque, no fundo, estavam a lutar por recursos que eram escassos, numa guerra em três frentes: Angola, Moçambique e Guiné. Procurei perceber estas dinâmicas, estas outras guerras. Por outro lado, o início da guerra em Moçambique, no Norte, em Cabo Delgado não foi surpreendente para as forças portuguesas. Fazia-se anunciar por sinais internos e envolvente externa.

Como reagiram as forças portuguesas?

A resposta conjunta das forças portuguesas foi dura, tal como foi em Angola e na Guiné, com prisões em massa e execuções sumárias de pessoas ligadas à FRELIMO [Frente de Libertação de Moçambique]. Mas cerca de um ano depois do início do conflito, verificou-se ser necessário desenhar estratégias para levar as pessoas a ficar do lado português. A manobra psicológica dirigida aos muçulmanos tinha o objetivo de cooptar o seu apoio para conter a expansão da FRELIMO e evitar a erosão do poder colonial, mas demorou muito tempo a ser operacionalizada.

D.R.

De que forma era feita a manobra psicológica?

No caso específico dos muçulmanos, para efeitos de cooptação, a micropolítica andou a par da aplicação de medidas de promoção identitária. A partir do final do ano de 1968, as cartas abertas dos governadores-gerais aos muçulmanos de Moçambique, o patrocínio estatal para a construção e restauro de mesquitas, assim como o patrocínio de peregrinações a Meca são alguns exemplos. E depois, houve um projeto que nunca chegou a materializar-se, que foi o da criação de um Conselho de Notáveis para agregar as lideranças islâmicas de Moçambique e mostrar publicamente que estavam ao lado de Portugal no conflito.

Quer dizer que os SCCI arranjavam táticas para que os muçulmanos ficassem do lado português?

Exatamente. A recolha de informações sobre os muçulmanos servia também para isso. Quando começou a guerra, sabia-se pouquíssimo sobre as comunidades islâmicas de Moçambique. Foi preciso recolher dados para informar a ação subsequente. Esta é uma história com muitas nuances e intervenientes. Às vezes podemos ficar com a ideia de que o Estado colonial era um bloco homogéneo, mas eram várias as forças em jogo, económicas, religiosas, militares e políticas. No campo político, eram várias as sensibilidades sobre qual seria o futuro do Império ou como é que se deviam gerir as populações. Havia um conjunto de dinâmicas, nem sempre convergentes.

Como funcionavam internamente os SCCI?

No caso de Moçambique, à exceção do primeiro diretor que era civil, os restantes diretores dos SCCI foram militares. No entanto, a maioria dos funcionários dos SCCI eram civis, vindos do quadro administrativo colonial. Até meados da década de 1960, apesar de sempre se debaterem com falta de pessoal, os SCCI realizaram pesquisa aberta e também coberta; recrutaram e geriram redes de informadores, na colónia e além fronteiras; mantiveram relações e troca de informações com representações diplomáticas portuguesas nos países vizinhos, bem como com consulados e embaixadas estrangeiros estabelecidos em Moçambique; estabeleceram ainda relações de colaboração com serviços de informações estrangeiros, nomeadamente da Rodésia (atual Zimbabwe) e África do Sul.

Os SCCI criaram uma rede, no norte de Moçambique, que tinha ramificações na Tanzânia e em Zanzibar

Sandra Araújo, investigadora

Como é que pesquisavam?

Depois as coisas alteraram-se. A partir de setembro de 1965, os SCCI foram proibidos pelo ministro do Ultramar de realizar pesquisa direta. A PIDE fez pressão para limitar o campo de atuação dos SCCI. Enquanto os SCCI pretendiam ter mais autonomia, meios e competências, incluindo competências similares às da PIDE. No entanto, os SCCI foram remetidos a um papel mais modesto, passando a competir-lhes o seguinte: compilar e analisar informações remetidas pelos vários serviços de informações, bem como por organizações civis, militares e paramilitares; realizar estudos de base sobre política, administração, economia e defesa das colónias; e também estudos de base sobre as características socioculturais e religiosas das populações de Angola e de Moçambique. Os vários estudos e questionários que realizaram eram uma maneira de contornarem as restrições em termos de pesquisa direta. 

Chegaram a fazer detenções?

Em Angola encontrei evidência de que isso aconteceu. Em setembro de 1963, há um inspetor da PIDE em Angola, que dá conta de que, em colaboração com um administrador local, os SCCI tinham determinado a prisão, durante cerca de um ano, de três indivíduos suspeitos de atividades politicamente subversivas. Isto sem informar a PIDE. Por outro lado, em janeiro de 1964, os SCCI de Moçambique tentaram, sem sucesso, promover a alterações na lei, de modo a garantir prerrogativas análogas às da PIDE, no campo da investigação e instrução de processos relativos a crimes políticos.

Como operava a rede de informadores?

A documentação dos SCCI sobre informadores é muito fragmentária, uma vez que houve queima de arquivo depois do 25 de Abril de 1974. Consegui perceber que os SCCI criaram uma rede, no norte de Moçambique, que tinha ramificações na Tanzânia e em Zanzibar. E tentaram fazer o mesmo nas Delegações do Instituto do Trabalho, Previdência e Ação Social, na África do Sul Rodésia. Os SCCI tinham também informadores próprios, que enviavam em missões. Mas também estimularam os administradores coloniais a criarem redes de informadores, que depois passavam a informação. No livro desenvolvo mais este assunto.

Estes serviços agiam violentamente?

É difícil responder a essa questão, com base num estudo de caso. Não há evidência de que isso tenha acontecido. O ex-adjunto dos SCCI, Fernando Amaro Monteiro, responsável pelo desenho da manobra psicológica dirigidas aos muçulmanos, em várias entrevistas e em trabalhos já publicados, reitera que nunca recorreu à violência física.

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