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“Houve um duplo atentado à bomba contra o Papa Francisco”

Vanda Marques
Vanda Marques 15 de fevereiro de 2025 às 10:00
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O jornalista Carlo Musso, que escreveu com o Papa a sua autobiografia, conta à SÁBADO como foi o processo de trabalho ao longo de seis anos. Reforça que Francisco, nem nos dias da cirurgia, pensou em renunciar.

Durante seis anos, Carlo Musso manteve encontros com o Papa Francisco para escreverEsperança. A autobiografia do Papa revela detalhes da sua infância, mas também os desafios do pontificado.

Com 88 anos, e alguns problemas de saúde, a hipótese da renúncia tem sido debatida várias vezes. Aliás, no livro Esperança, editado em Portugal pela Nascente, confessa que quando começou com problemas na perna sentiu-se até "envergonhado por ter de usar uma cadeira de rodas." Reconhece a velhice mas não pensa em deixar o papado. 

Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires, em 1936, foi eleito Papa da Igreja Católica, em 2013. Sendo o primeiro pontífice não europeu, primeiro papa jesuíta acrescenta mais um facto de pioneiro: publicar a sua autobiografia em vida. 

Como surgiu a oportunidade de escrever o livro com o Papa?

Já tinha tido a honra de trabalhar - nessas ocasiões, do ponto de vista editorial - com importantes publicações do Papa Francisco, a começar por O Nome de Deus é Misericórdia, o seu primeiro livro como pontífice, publicado por ocasião do Jubileu Extraordinário de 2016 e traduzido em todo o mundo.

No decurso de um encontro, com grande simplicidade, surgiu então a ideia de uma autobiografia - ainda não tinha sido feita por nenhum Papa em funções, mas Francisco é o pontífice de muitas estreias... Com igual simplicidade, o Papa disse: " Se me ajuda, façamo-lo". E assim foi feito.

Como decorreu o processo de escrita?

A autobiografia é o resultado de um trabalho que durou um total de seis anos, desde o início de 2019 até ao início de dezembro de 2024, altura em que o Papa nomeou 21 novos cardeais de todo o mundo, mostrando mais uma vez a sua visão de uma Igreja universal.

O processo de redação foi o resultado de muitos encontros, de longas conversas, de trocas de textos e de documentos, até de telefonemas. Depois da escrita, seguiu-se um trabalho de verificação conjunta. E, naturalmente, também de uma integração contínua à medida que o pontificado, as viagens, as resoluções prosseguiram.

Porque é que o Papa decidiu publicar o livro agora? Que mensagem transmite?

Inicialmente, o livro deveria ser publicado após a sua morte, como um legado espiritual, de fé, mas também moral, social e civil. E assim foi durante vários anos. A proclamação do novo Jubileu da Esperança - e também as necessidades do nosso tempo, que precisa urgentemente de esperança - pareceu a ocasião mais oportuna para a publicação. Afinal, o Papa Francisco quis que a autobiografia não falasse de si mesmo, mas que, a partir dos seus acontecimentos pessoais e da memória colectiva, falasse de todos e a todos se dirigisse. E mesmo nas dificuldades, mesmo nas tragédias que são evocadas no livro, a sua mensagem é sempre uma mensagem de esperança universal. De uma esperança concreta e invencível.

Como é que podemos ter esperança num momento como este?

A esperança, diz Francisco, "é sobretudo a virtude do movimento e o motor da mudança: é a tensão que une memória e utopia para construir verdadeiramente os sonhos que nos esperam". Por isso, para mim, a indiferença, a desilusão, o cinismo são inimigos da esperança: e são em si mesmos uma derrota. Humanamente, um suicídio, diria eu.

Qual foi a história mais surpreendente?

Há várias histórias surpreendentes na autobiografia, e não são poucas as que são contadas aqui pela primeira vez. Estou a pensar na notícia de um duplo atentado à bomba contra o Papa Francisco durante a sua perigosíssima viagem ao Iraque em 2021, que terminou com a morte dos atacantes. É algo que, naturalmente, afectou e perturbou muito o Papa: "também este é o fruto envenenado da guerra", comenta o Papa no livro. É algo de que ninguém ouviu falar e que só se tornou conhecido quando se falou do livro em todo o mundo.

São depois reveladas histórias dramáticas da sua juventude, como a do colega de liceu que matou o amigo com a arma do pai (e que, depois da detenção juvenil, se suicidou) ou a do rapaz problemático de quem cuidou na juventude, que um dia matou a mãe com uma faca. Esta seria também a primeira experiência de Jorge Bergoglio com o mundo da prisão, que mais tarde se tornaria um foco constante durante o pontificado do Papa Francisco. Há a história da tia "vagabunda", que levou uma existência errante e solitária durante muito tempo, ou a história da prostituta das Flores que, no fim da vida, se tornou uma "Madalena contemporânea" e se dedicou a cuidar dos idosos que não interessavam a ninguém. Ou muitas histórias coloridas do bairro da infância, por vezes ternas e divertidas. Porque o humor é também um traço importante da autobiografia de Francisco, que se espalha por muitas páginas, e no livro o Papa conta mesmo uma anedota sobre si próprio...

Mas o sentido completo da obra, de todos os acontecimentos pessoais nela narrados, é no fundo o de abordar na narrativa os momentos centrais que caracterizaram todo o pontificado, e que representam também para ele os desafios mais importantes para o futuro: o diálogo, a fraternidade, o repúdio da guerra, a urgência absoluta de cuidar da casa comum que é a Terra, o hoje e o amanhã da Igreja. É por isso que, como ele diz na introdução, "a memória é um presente que não pára de passar. Parece que foi ontem, mas é amanhã". E é por isso que a esperança é o seu legado, um livro que será compreendido e valorizado cada vez mais ao longo dos meses, dos anos.

Parece que o Papa tinha uma vida completamente normal antes do pontificado? 

Não é apenas a autobiografia de um Papa. É a autobiografia de um homem que se tornou Papa, de um homem que conseguiu dar um sentido profundo a todas as suas acções quotidianas, a toda a sua vida, a tudo o que lhe aconteceu ao longo da sua vida: é uma história atribulada de emigração familiar, de momentos difíceis, de um rapaz que foi à escola, que viveu no mundo, juntamente com outros rapazes e raparigas como ele, que jogou futebol, que dançou tango, que se empenhou em mil coisas, que trabalhou e que, a certa altura, sentiu a chamada. É a história de um Papa que conhece profundamente os homens e que andou entre eles toda a sua vida. Como o próprio Papa Francisco disse durante uma entrevista televisiva: "[o livro é] do princípio ao fim as histórias da minha vida, mesmo algumas mais pequenas, mas que dão uma ideia de como eu sou".

Os escândalos sexuais afetaram realmente o Papa?

É certo que os escândalos de abusos, sexuais e de poder, a todos os níveis, o afetaram profundamente. No livro, ele é inequívoco a este respeito.

Está sempre a falar-se da renúncia do Papa por causa da sua idade. O que é que pensa sobre isso?

O Papa aborda esta questão com as seguintes palavras. "Agora estou bem, posso comer de tudo e a realidade é que estou velho. Foi a dor no joelho que constituiu a humilhação física mais pesada para mim. No início, sentia-me envergonhado por ter de usar uma cadeira de rodas, mas a velhice nunca chega por si só e é preciso aceitá-la à medida que vai chegando... Faço fisioterapia duas vezes por semana, apoio-me na minha bengala, dou o máximo de passos que posso e continuo. Apoio-me sobretudo no Senhor: a sua bengala e o seu cajado ‘dão-me segurança’. (Salmo 22,4). E se não posso correr como corria quando era miúdo, sei que Ele vai à minha frente, não me deixa, não me abandona. Sempre que um Papa está doente, sente-se o vento do conclave a soprar, mas a realidade é que nem nos dias da cirurgia pensei alguma vez em renunciar, exceto para dizer que para todos é sempre uma possibilidade, que desde o momento da eleição tinha entregue ao Camerlengo uma carta de renúncia em caso de impedimento por razões médicas, como fez também Paulo VI, e que se isso acontecesse permaneceria em Roma, como bispo emérito. No início do pontificado tive a sensação de que seria curto: pensei em três ou quatro anos, não mais.... A verdade é que o Senhor é o relógio da vida. Entretanto, sigo em frente". Eu diria que ele não poderia ter sido mais claro. E penso que ele saberá exatamente o que fazer, em cada passo do caminho.

Trabalhou de perto com o Papa, qual é a história que nunca esquecerá? 

Todo o trabalho foi uma experiência inesquecível. Houve muitas histórias. O Papa tem uma capacidade extraordinária de se ligar às histórias dos humildes, das pessoas mais simples, que para Francisco são os verdadeiros protagonistas da aventura humana.

Há histórias dramáticas, que tocam e ferem, e que o Papa contou com grande emoção. E outras vezes riu-se à gargalhada, reconstituindo episódios verdadeiramente hilariantes. Se tiver de mencionar dois aspetos que sempre me impressionaram, são, por um lado, uma simplicidade e uma humildade genuínas, capazes também de uma autocrítica natural.

E, por outro lado, a figura de um homem nascido em 1936, que tem agora 88 anos e que, viaja para o passado, apenas para lançar o seu olhar ainda mais longe, mais à frente. Ao longo desta longa obra, a palavra, a exortação que mais recordo, que me parece mais presente é: "Avante! Em frente!"

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