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Ventura perdeu todos os debates e PNS foi o vencedor. As televisões vivem numa bolha?

Resultados eleitorais mostram dissonância com avaliações dadas pelos comentadores nas televisões. Especialistas em comunicação (e um comentador) explicam o que se passou.

Se as notas dadas pelos comentadores da SIC Notícias/Expresso e CNN Portugal estivessem em linha com aquilo que os eleitores pensam e votam, Pedro Nuno Santos era hoje o primeiro-ministro eleito. E André Ventura tinha ficado em último.

O agora líder demissionário do PS esteve em sete debates nas televisões, de que resultaram 100 avaliações feitas pelos jornalistas e comentadores da SIC Notícias/Expresso e CNN Portugal. Em média, Pedro Nuno Santos teve uma nota de 69 valores (numa escala de 0 a 100), sendo que ficou em primeiro lugar no ranking na SIC/Expresso (com 67 valores) e sobretudo no da CNN Portugal (72).

Em último lugar ficou André Ventura, que esteve em todos os debates (7), obteve 84 notas dos comentadores e um saldo final médio de apenas 50 valores. Aqui, as diferenças entre os dois blocos foram mais evidentes. O painel da SIC N/Expresso deu-lhe em média apenas 43 valores, o da CNN Portugal chegou aos 57.

O debate entre os dois políticos foi aliás o que motivou notas globais mais díspares. Realizado a 15 de abril, Pedro Nuno Santos teve 77 valores (a nota mais alta de todos os candidatos num debate) e André Ventura apenas 46 valores. O líder do Chega, aliás, perdeu todos os debates, segundo as notas globais. Nas urnas, a votação foi outra.

Luís Paixão Martins, especialista em comunicação e um dos comentadores do período eleitoral no canal Now com o programa Factos e Perceções, avança uma explicação para esta dissonância: "Há um fator evidente: a idade. A generalidade dos comentadores TV estão nas idades médias dos votantes AD e PS e têm 10 a 20 anos a mais que a média dos votantes Chega. O Chega é um partido antissistema; aliás, hoje em dia detém o monopólio da oferta eleitoral antissistema. Os comentadores TV fazem parte do sistema, em muitos casos são os rostos mais visíveis do sistema. É natural que o Chega esteja aí mal representado".

No caso de Pedro Nuno Santos, "as notas referem-se aos debates, que mobilizam eleitores à procura do voto racional, e a quebra nas intenções de voto no PS foi posterior, aquando das decisões daqueles que decidem em função do candidato a primeiro-ministro, e aí Montenegro ganhava de goleada ao líder do PS".

Em segundo lugar entre as notas dos comentadores ficou Luís Montenegro, com uma média global de 68 valores. O líder da AD, que viria a ganhar as eleições, participou em apenas quatro debates, uma vez que deixou os restantes para Nuno Melo, do CDS, parceiro de coligação. O centrista ficou em 7º lugar, com apenas três debates e uma média de 57 valores nas notas dos comentadores.

Joana Mortágua esteve em apenas um debate, precisamente com Nuno Melo, e teve uma média de 67 valores em 11 avaliações, o que lhe deu o terceiro lugar nas notas dos comentadores das televisões. Seguem-se no ranking dois candidatos do Livre: Rui Tavares (seis debates e média global de 63 valores) e Isabel Mendes Lopes (um debate, 62 valores de média).

Rui Rocha, da Iniciativa Liberal, esteve em sete debates e ficou positivo à tangente: apenas uma média de 58 valores. Mariana Mortágua ficou em 8º lugar no ranking das notas das televisões, com 55 valores, seguiu-se Paulo Raimundo com a mesma média e Inês Sousa Real com 52 valores.

Ruben Sarmento

Como se sabe, nas urnas os eleitores tiveram outra opinião. Pedro Nuno Santos foi relegado para um terceiro lugar (após contagem dos votos da emigração), uma derrota histórica. O Chega de André Ventura atingiu o segundo lugar, rompendo pela primeira vez o arco de governação entre o PS e o PSD. O Bloco de Esquerda ficou em 7.º lugar e perdeu 80% do grupo parlamentar, passando de 5 para 1 deputado.

Outro especialista em comunicação, que preferiu não ser nomeado porque eventualmente poderá estar a tecer considerações sobre trabalho de colegas, lembra à SÁBADO que "os debates são apenas peças processuais de uma campanha que é um filme, não é uma foto. Ganhar um debate não significa nada, pode ser um tónico, mas um debate quase nunca decide nada e foram vários na história que ganharam debates e perderam eleições. As pessoas ligam demasiado às notas, que são irrelevantes; deviam olhar mais para os programas dos partidos, que habitualmente desconhecem".

Acrescenta que "muitas vezes a opinião pública não coincide com a opinião publicada, e os espectadores e a audiência têm todo o direito de contestar e chamar os nomes que bem entenderem a quem entrou nesses painéis: chama-se liberdade, que é o oxigénio de uma democracia".

Henrique Raposo foi um dos que deram notas nos debates televisivos, no caso para o grupo SIC N/Expresso. Começou por nos remeter o artigo que escreveu para o Expresso sobre os "factos que os média desvalorizam ou diabolizam". À SÁBADO diz que "o facto de o povo votar no Ventura não lhe dá razão em nada".

Discorda sobre a aplicação do termo "bolha mediática" às notas dos debates. "Não somos uma democracia direta, a bolha não se vê nos debates e nas eleições. Vê-se no dia a dia, quando não se fala de assuntos quentes e tabu. A bolha está em não haver ninguém a desenvolver uma reportagem/peça que explique por que é que os algarvios do emprego sazonal odeiam imigrantes. Não são 'racistas', têm é um modo de ganhar a vida em fanicos. Odeiam os imigrantes como os alentejanos odiavam os 'ratinhos' (os beirões que, durante a ceifa, desciam até ao Alentejo para trabalhar; baixavam a jorna dos alentejanos). Eu não critico o ecossistema mediático (sobretudo comentários) por darem notas negativas ao Ventura nos debates. Critico por não fazerem um debate alargado e sem tabus sem nojo do povo. A bolha não é nos debates. É no dia a dia. O Chega fica sozinho numa série enorme de temas".

Henrique Raposo diz que "a democracia não lava mais branco e o voto não é água benta". "A empresa de Montenegro não deixa de ser uma questão só porque ele ganhou as eleições. O Ventura não deixa de ser um demagogo impróprio para governar só porque teve 20%. Outra coisa diferente é perceber e falar para as pessoas que se sentem atraídas pela banha da cobra. E esse é o pecado da bolha".

E dá outro exemplo: "Os media só falam dos subúrbios de Lisboa quando há confrontos entre polícia e negros. Porque a narrativa vigente é (era?) racismo vs anti-racismo. Mas então e o resto das pessoas dos subúrbios? Não existem? Os problemas gerais dos subúrbios desaparecem e as pessoas sentem-se, com razão, abandonadas pelos partidos e pelos media".

Manuel Soares de Oliveira, publicitário, que costuma trabalhar na comunicação política da Iniciativa Liberal, diz à SÁBADO que há um pequeno abismo entre o que chama o país real e a bolha mediática. "Há o país real que vê a CMTV e a Cristina e que é diferente do país da bolha que só vê a CNN e a SIC Notícias. Há o país real de Torres Novas e de Oliveira do Hospital e há o país bolha que liga o GPS quando passa o Saldanha. A grande maioria dos comentadores não percebe o que o país real valoriza. O país real valoriza as bocas que os políticos mandam e os comentadores valorizam o conteúdo das respostas. O país real não quer saber de "conteúdos" só gostam de "bocas". Vivemos nos tempos do TikTok, os debates só interessam para criar pequenos filmes para as redes sociais onde o protagonista manda umas bocas e é declarado vencedor."

Acresce a isso que "a grande maioria dos 'comentadores' mais não são do que adeptos disfarçados dos partidos políticos; os diretores das estações não querem comentadores isentos, querem peixeirada com cada um a defender as suas cores."

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