A provável saída de Mário Centeno da liderança do Banco de Portugal marca o fim de dez anos consecutivos em que um quase desconhecido economista, que esteve perto de cair pouco depois de assumir o cargo de ministro das Finanças, se tornou numa "marca" de sucesso do PS Costista - e um dos protagonistas da vida política portuguesa.
O "Ronaldo das Finanças", o "meu Centeno é melhor", "todos somos Centeno", o "patinho feio" que virou "cisne resplandecente". A ascensão de Mário Centeno na política portuguesa começou aos tropeções - um deles quase fatal -, mas foi meteórica. Da política e do Governo passou diretamente para o topo da instituição de onde saíra, o Banco de Portugal, para um cargo no qual a independência e a imagem de independência são cruciais - e no qual a sua ambição e gosto pela política lhe trouxeram escrutínio e atritos fora e dentro do banco. No PS continua a ter uma "marca", mas à direita tem muitos críticos, incluindo o atual ministro das Finanças, Miranda Sarmento, que Rui Rio em tempos chamou "o meu Centeno". O Governo da AD tem guardado a decisão sobre quem será o próximo governador do Banco de Portugal, mas dificilmente será Centeno, que assim fará apenas um mandato - e abandonará, por tempo indeterminado, a ribalta que ocupa há exatamente uma década. Recordamos aqui o percurso nestes dez anos. 1. Da prateleira do Banco de Portugal para as listas do PS
Mário Centeno
Em meados de 2015, o PS liderado por António Costa tinha uma necessidade: afastar-se da imagem da "bancarrota", ainda colada ao partido após a queda de José Sócrates. Para credibilizar os socialistas, a direção de Costa formou uma equipa técnica para elaborar o programa macroeconómico que serviria de base às promessas eleitorais – e convidou Mário Centeno para dar a cara por ela. Formado no ISEG, doutorado em Harvard e investigador do Banco de Portugal (especializado na área laboral e diretor adjunto do seu departamento), era um quadro técnico sólido e largamente desconhecido do público. Estava na prateleira dourada do Banco de Portugal – como "consultor" – depois de o governador Carlos Costa ter travado à última hora o concurso para diretor do Departamento de Estudos Económicos. Centeno entrou num lugar elegível, por Lisboa, para as listas de deputados do PS, e cedo ficou com o rótulo de "ministro sombra" das Finanças. Esteve diretamente envolvido nas negociações pós-eleitorais da "geringonça", a aliança do PS com o BE e o PCP, que permitiu aos socialistas afastar a coligação PSD/CDS do poder. E tornou-se ministro das Finanças no ainda delicado período do pós-troika.
2. O "patinho feio" que ia caindo com a Caixa.
Centeno vinha dos bastidores alcatifados do Banco de Portugal e teve um início difícil na política. O Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa falaria sobre Mário Centeno dessa altura como um "patinho feio, para muitos muito feio". Era visível a falta de à-vontade nas refregas no Parlamento – o ministro, apesar de tudo, assumiu um tom de confronto político com o governo anterior – e mesmo dentro do PS havia preocupação com a sua performance. O novo ministro herdou do PSD/CDS (e da troika) contas públicas a caminho da correção, mas, também, vários problemas graves na banca. Um deles, o da Caixa Geral de Depósitos – que o Governo do PS conseguiria manter sob controlo público – levou-o em fevereiro de 2017 a pôr o lugar à disposição (após a polémica sobre um acordo feito com a administração do banco público, liderada então por António Domingues, para não entregar as declarações de património e rendimento exigidas). Aguentou no cargo, após uma penosa conferência de imprensa em que falou de um "erro de percepção mútuo". Marcelo fez saber que só aceitou a sua continuidade no cargo por causa do "estrito interesse nacional".
3. O "Ronaldo das Finanças" ou o "cisne resplandecente"
Uma das dificuldades com que Mário Centeno e a sua equipa lidaram foi a preocupação externa com os parceiros de governo do PS, o PCP e o BE. As expectativas iniciais sobre a "Geringonça" – internas e externas – eram baixas. Em maio de 2017, pouco depois do episódio da Caixa, o estatuto de Centeno subia muito com o resultado orçamental melhor do que o esperado, a Comissão Europeia a recomendar a saída de Portugal do Procedimento por Défices Excessivos – e um alegado elogio do duro ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schauble (que morreu em 2023). O elogio, citado no jornal digital Politico: Centeno era o "Ronaldo do Ecofin", uma referência a Cristiano Ronaldo e ao organismo que reúne os responsáveis das finanças e das economias da zona euro. Daí a "Ronaldo das Finanças" nos media portugueses foi um salto pequeno – até Marcelo foi um dos que saltou para o comboio dos elogios. Começava a nascer, sem que ninguém o previsse, uma estrela política. Em dezembro do mesmo ano em que esteve à beira da demissão, Centeno foi eleito presidente do Eurogrupo. Marcelo, rápido a ler a situação, falou aqui do "patinho feio" que dava lugar a um "cisne resplandecente".
4. "Somos todos Centeno" – e o primeiro excedente
À medida que os resultados orçamentais se consolidam – com o apoio de uma economia pós-troika favorável e uma política monetária do Banco Central Europeu sem precedentes – cresce a influência e o estatuto do ministro das Finanças. Pelo meio vai sendo notada a estratégia dura de cativações – convencionais e não convencionais (as pré-autorizações das Finanças para contratações e outros gastos das tutelas) – de controlo da despesa. Em abril de 2018, o ministro da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, solta o famoso "Somos todos Centeno" para dizer que, apesar das dificuldades evidentes na sua tutela, não estava contra a disciplina orçamental. Centeno acabou por ir à Comissão de Saúde (em vez de Adalberto) responder aos deputados. Um ano depois, desapareceria o défice orçamental – foi já em março de 2020 que o INE, a autoridade estatística nacional, confirmou um excedente de 0,2% do PIB, o primeiro em democracia (o último fora em 1973).
5. Rio: "Eu também tenho o meu Mário Centeno"
Na campanha das legislativas de 2019, já com o primeiro excedente orçamental pré-anunciado, Mário Centeno foi o maior ativo eleitoral do PS de António Costa. A sua imagem e nome eram uma marca que o próprio líder da oposição, Rui Rio, acabou por usar no debate com Costa: "Eu também tenho o meu Mário Centeno". "Eu não troco o meu pelo seu! Pode gostar muito do seu Centeno, mas os portugueses preferem o meu Centeno, que é de contas certas", respondeu Costa, a caminho da sua primeira vitória eleitoral. O Centeno de Rui Rio era Joaquim Miranda Sarmento, que hoje é ministro das Finanças do governo da AD e um dos principais responsáveis pela muito provável não recondução de Centeno no Banco de Portugal. Mas já nos estamos a adiantar. No último trimestre de 2019, o fim do mandato de Carlos Costa no Banco de Portugal – um governador criticado de forma constante pelo PS e por Centeno – já abria a possibilidade e o rumor de que o ministro passaria para o banco central. E passou.
6. A entrada esperada para o Banco de Portugal
Centeno foi aprendendo à sua custa como funciona a política e o dossiê do Novo Banco – outros dos temas duros da banca com que lidou como ministro das Finanças – foi outra lição. O primeiro-ministro Costa, que apresentara ao lado de Centeno as virtudes da venda do Novo Banco ao Lone Star, foi-se distanciando cada vez mais da mesma, até entrar em contradição com o seu ministro sobre a transferência das verbas avultadas do Estado para o Fundo de Resolução. Centeno, a estrela, aguentou e seguiu em frente. Em junho de 2020 abandonou o Governo do PS para 37 dias depois assumir a liderança do Banco de Portugal. A passagem direta de um cargo para o outro levou a críticas sobre falta de independência política no papel de governador e de conflitos de interesses quando tivesse de tocar nos temas que decidiu ou acompanhou como ministro (a resolução do Banif, a venda do Novo Banco e as consequentes transferências públicas para o Fundo de Resolução, a recapitalização da Caixa). Na audição prévia no Parlamento, Centeno negou a existência desses problemas.
7. Um governador na política: o substituto de Costa…
Como supervisor, Centeno não teve os problemas de Carlos Costa com a banca, já largamente estabilizada. A partir do final de 2021, como membro do conselho de governadores do Banco Central Europeu – o organismo mais importante e mais influente na economia da zona euro e na economia portuguesa –, Mário Centeno lidou com o ciclo inflacionista, posicionando-se no campo das "pombas" (que favorecem uma política monetária menos agressiva, com menos subidas de juros). O BCE subiu os juros de forma abrupta a partir de setembro de 2022, mas não seria daqui que viria a polémica sobre Centeno – seria, como antes, da política. Em novembro de 2023, após a queda do governo do PS por causa do caso judicial "Influencer", António Costa ligou a Centeno para perguntar se estaria disposto a suceder-lhe como primeiro-ministro – o governador, pensando que Costa estava articulado com Marcelo, pediu tempo para pensar. Mas Costa (que sabia que Marcelo tinha reservas quanto a essa via) acabou por divulgar o convite feito, sem esperar pela resposta. Centeno ainda referiu ao Financial Times que o convite partira de Costa e de Marcelo mas, depois do desmentido oficial do Presidente da República, fez saber que tinha sido Costa a contactá-lo. Acabou a ser avaliado pelo Conselho de Ética do BdP (e ilibado). Miranda Sarmento, a caminho de se tornar ministro das Finanças, notou no jornal Eco: "Isto é apenas mais uma demonstração, mas bastante mais grave, da falta de independência que o governador do Banco de Portugal tem".
8. … e o governador protocandidato às presidenciais
A possibilidade de Mário Centeno ser candidato presidencial foi sendo alimentada ao longo de 2024 – o nome do governador do Banco de Portugal surgiu em várias sondagens, sem que o próprio desmentisse de forma categórica, e oficial, que estava a ponderar essa candidatura que era abertamente desejada pelo PS. Centeno acabou por fazê-lo já em janeiro deste ano numa entrevista à RTP 3, afirmando que a "decisão pessoal" estava "mais amadurecida": "não vou ser candidato a Presidente da República".
9. Choques nos bastidores da Torre de Marfim
Na liderança do Banco de Portugal, Mário Centeno e a instituição que lidera – nos boletins económicos periódicos que publica – fez os alertas naturais que o banco faz sobre a política orçamental (mais relaxada na despesa, embora mantendo o excedente orçamental) e económica do Governo. Foi, contudo, mais longe na sua intervenção institucional. No Departamento de Estudos Económicos, que produz as mais influentes análises sobre a conjuntura e outros temas da economia, há um desconforto sobre a forma como o governador tem apresentado com uma narrativa própria e pessoalizada – nos tempos mais recentes, oposta à do governo da AD – as conclusões dos boletins económicos da instituição, como noticiou a SÁBADO em fevereiro deste ano. Há, também, conflitos profissionais com um ex-economista da casa (e hoje secretário de Estado da AD, João Valle e Azevedo) e uma antecâmara de inquérito interno aberta ao diretor do Departamento de Estudos Económicos. O ambiente, pelo menos neste departamento, está muito degradado, referem as fontes ouvidas pela SÁBADO.
10. A saída esperada: o governador sem o governo
Após a desistência da candidatura presidencial, Mário Centeno disse estar focado na sua recondução como governador – quer Carlos Costa, quer Vítor Constâncio, os seus dois antecessores mais próximos, serviram dois mandatos. Os sinais, contudo, têm sido adversos à pretensão do governador, incluindo a demora do Governo da AD em comunicar a sua escolha – marcada para o dia em que Centeno está na reunião do Banco Central Europeu, em Frankfurt –, as notícias sobre convites a outras figuras (Vítor Gaspar e Ricardo Reis) e a decisão recente de Miranda Sarmento de enviar pedir à Inspeção-Geral de Finanças uma auditoria sobre o projeto milionário da nova sede do BdP. Tudo indica que Mário Centeno está de saída, mas o seu percurso, estatuto no PS e ambição sugerem que este não será o fim da linha para o homem que, há uma década, era um perito nos bastidores, que pouco sabia sobre política.
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