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Gisèle Pelicot afirmou ser "uma mulher totalmente destruída" e pediu justiça

Diogo Barreto
Diogo Barreto 23 de outubro de 2024 às 22:36
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A francesa disse que esperava que o seu caso inspirasse outras vítimas de violação a não terem vergonha e denunciarem os crimes de que foram alvo.

Gisèle Pelicot, a mulher francesa de 71 anos que foi violada por dezenas de homens a convite do próprio marido, declarou ser "uma mulher totalmente destruída". Durante a sessão de julgamento desta quarta-feira, Pelicot defendeu que não são as mulheres violadas que se devem sentir envergonhadas: "Eles é que têm de se envergonhar", denunciou. 

REUTERS/Manon Cruz

Pelicot afirmou que decidiu que queria que o julgamento decorresse à porta aberta para tentar incentivar uma "mudança na socedade" e que mulheres que tenham sido violadas não tivessem medo de expor as suas histórias e os seus agressores. Disse, durante a sessão que as mulheres violadas pudessem dizer a si mesmas: "Se a senhora Pelicot conseguiu, nós também conseguimos". Acrescentou ainda que a primeira reação que uma mulher tem depois de ser violada é sentir vergonha. "Mas não somos nós que temos de nos sentir envergonhadas, são eles que têm de ter vergonha", atirou.

Durante o julgamento dos mais de 50 homens que abusaram sexualmente de Gisèle ao longo de uma década que está a decorrer em Avignon, no sul de França, um advogado de defesa declarou que "há violações e há violações", insinuando que estas violações não seriam tão graves como aquelas que implicavam força para submeter uma mulher desperta ao ato. A defesa tentou ainda argumentar que muitos dos homens que foram gravados a violar a mulher achavam que estavam a participar numa fantasia de casal. Em resposta, Gisèle afirmou: "Não, não há diferentes tipos de violação. Violação é violação". O advogado da defesa pediu-lhe desculpa, explicando que pretendia distinguir a definição legal da mediática, lamentando que as suas "observações a tenham magoado e chocado", escreve o jornal Le Parisien.

Numa fase inicial do julgamento, o ex-marido da francesa reconheceu ter drogado a mulher e de ter convidado estranhos a irem até sua casa para a violar enquanto esta estava inconsciente. E negou as alegações de que os arguidos não sabiam que as relações sexuais não eram consensuais. Durante a sessão desta quarta-feira, Gisèle Pelicot disse que considerou o seu ex-marido, Dominique, o "homem perfeito" durante os mais de 50 anos que passaram juntos, mas que neste momento nem o consegue encarar. 

O julgamento começou a 2 de setembro e deve prolongar-se até dezembro.

A polícia francesa começou a investigar Dominique Pelicot em setembro de 2020, quando este foi apanhado por um segurança a filmar por baixo de saias de três mulheres num centro comercial. Durante a investigação foram encontradas centenas de fotografias e vídeos da mulher no seu computador, deitada, inconsciente, em posição fetal. As imagens mostram ainda dezenas de casos de violação na casa do casal em Mazan, uma aldeia de apenas seis mil habitantes a cerca de 33 quilómetros de Avignon, na Provença. No total foram encontrados mais de 20 mil ficheiros numa pasta chamada "abuso". 

Às autoridades, Dominique Pelicot admitiu que dava tranquilizantes à mulher - especialmente Temesta, um medicamento para redução da ansiedade. O nível de concentração do fármaco deixava-a inconsciente. 

Em 2011 começaram os abusos gravados. O casal morava então nos arredores de Paris, tendo-se depois mudado para Mazan, no sudeste francês, perto de Avignon, onde continuaram os abusos. 

Entre as regras estabelecidas, era proibida a utilização de aftershave e fumar antes de estar com a mulher. Por outro lado, era obrigatório aquecer as mãos antes de lhe tocar e tirar a roupa na cozinha, para nada ser deixado acidentalmente no quarto. Nenhum dinheiro foi trocado.

A polícia francesa encontrou mais de cinquenta suspeitos de terem participado neste esquema criminoso. Entre os suspeitos existem jornalistas, bombeiros, motoristas, soldados, um guarda prisional, um enfermeiro, homens solteiros e homens com mulher e filhos. A maioria dos suspeitos participou nesta situação apenas uma vez, mas houve quem tivesse participado seis vezes.

O julgamento tornou-se um símbolo do uso de drogas para cometer agressões sexuais, uma prática conhecida como submissão química, e relançou na França o debate sobre o tema do consentimento.

Desde o início do processo, ativistas e associações feministas voltaram a pedir aos homens que "assumam, por fim, a sua responsabilidade" na luta contra a violência de género e "parem de ficar em silêncio". A filha de Pelicot, Caroline Darian, editou em 2022 um livro sobre o caso (Et j'ai cessé de t'appeler papa, traduzido para "E deixei de te chamar papá") e abriu uma associação de apoio a vítimas de violações à base de drogas.

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