"Os palestinianos ganham com as fotos. Nós estamos a tentar contrariar as fotos com lógica"
No dia Internacional da Memória do Holocausto, o MNE israelita levou uma sobrevivente de Auschwitz a falar a diplomatas acreditados em Jerusalém. Mas trava outra batalha de memória, para manter a do 7 de Outubro, contra a barragem de emotividade nas imagens de destruição que vêm de Gaza.
"Tenho as fotos todas em mim", diz Halina Birenbaum, num documentário que vai sendo projetado na cerimónia no Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita para assinalar o dia Internacional da Memória do Holocausto, o mesmo da libertação de Auschwitz, onde Halina esteve aos 13 anos. Halina debita as memórias sem hesitação, como quem descreve um filme a passar, a morte da mãe na câmara de gás no campo de Majdanek, os catres onde dormia e tinha de evitar que as da fila de cima lhe mordessem os dedos quanto tentava subir, o sítio onde saía o Ziklon b, enquanto o filho, Yaakov Gilad, que a acompanha e documentou há cinco anos a viagem a dois à Polónia que evitara durante anos, tentar conter as lágrimas. Ela não chora - só chorou uma vez na vida. Os dois espelham duas formas para olhar para a memória com que Israel ainda hoje - e cada vez mais - se debate: o filho diz no filme que adiou acompanhar a mãe por ter medo de como sairia ele mesmo da viagem, e também porque "não queria ser um saco de memórias". Numa efeméride que, depois do 7 de Outubro de 2023 é, ainda menos, um dia internacional qualquer, Israel tenta mostrar um novo pogrom, o do 7 de Outubro, e tenta que os sobreviventes deste se tornem nas novas Halinas, testemunhos vivos e incontornáveis de uma catástrofe desumana. Jornalistas, chefes de estado, ativistas pró-Israel, têm acesso facilitado a alguns sobreviventes, que contam em 2025 como é ver a barbárie a acontecer de novo. Do ponto vista da ação externa, esse tornou-se um ponto fulcral para o estado de Israel.
"Os judeus foram alvo depogromspor mais de 2 mil anos. Nenhum deles teve o impacto como o de Quixineve [em 1903, na atual Moldávia]. Teve um impacto enorme, começou o movimento sionista de Herzl, por exemplo, fez os judeus passar de apenas ansiar pela terra do leite e do mel, mas a atuarem politicamente para chegar à terra do leite e do mel. Porque é que este pogrom foi tão especial? Porque foi documentado. Porque houve uma fotografia mostrada no mais famoso jornal de Nova Iorque": o argumento é de Hamutal Rogel Fuchs, que lidera o departamento para a Europa do Sul no Foreign Office israelita. E que transpõe a reação para o momento atual: "O que aconteceu a 7 de outubro foi documentado pelo Hamas, e foi um evento bíblico, no terceiro milénio, levado online e às redes sociais, com netos a verem os avós a serem mortos em livestream." Amutal di-lo numa sala no mesmo ministério onde minutos antes Halina testemunhou a história da sua vida. "Quando os judeus e israelitas são fracos, muito bem, nós apoiamo-los. Quando a equação muda, nós assegurar-nos-emos que temos os meios de nos protegermos - essa é a lição que tirámos de há 80 anos. Agora, se precisarmos de nos proteger contra uma organização terrorista, ou o Hamas, que ocupou Gaza, ou do Irão, a milhares de quilómetros - o que é que eles têm connosco, porque hão de bombardear cidades e aldeias israelitas, e o meu filho na estrada nº1? Nós aceitamos a crítica, não aceitamos a possibilidade de que a nossa segurança dos nossos cidadãos seja quebrada de novo da forma que o foi a 7 de outubro", aponta a diplomata.
E, por isso, o 7 de Outubro tem de se manter vivo, mesmo que pareça hoje, um ano e três meses depois, desfocado pela guerra em Gaza.
A luta pela narrativa nem sempre é fácil. Nem a de Halina o foi. No final do filme, a sala percebe que ela e o filho estão na sala. Frágil, com 95 anos, levanta-se, pega num microfone, e responde às questões da assistência - o que tem feito ao longo da vida em sessões em escolas, universidades, e até para o exército. Quando chegou a Israel, refugiada e ilegal, em 1946, não se sentiu bem recebida. Tinha um nome polaco e uma história de vítima, enquanto o país prestes a nascer apostava numa narrativa de sucesso e autoconfiança, os judeus que sabiam cuidar de si. No documentário, o filho mostra à mãe uma velha carta de um funcionário do Yad Vashem, a organização judaica que guarda a memória do holocausto, em 1967, quando esta publicou o seu primeiro livro, A esperança é a última a morrer. As memórias duras de Halina contemplavam o gueto de Varsóvia, e ver outros judeus, guardas, alinhados com os nazis, a selecionar outros judeus para a deportação. Identifica-os em velhas fotos. A carta, que a chocou e ao filho, era afinal dura, crítica: porque a sobrevivente não criticava os polacos, e a narrativa oficial condenava-os; porque os mostrava como vítimas, mas também cúmplices, num momento de vitória histórica da guerra dos seis dias e da conquista de Jerusalém. Só anos mais tarde o Yad Vashem tomaria a iniciativa de dizer a Halina que afinal era ela a ter razão, por apenas contar a verdade.
O aparato oficial israelita mostra-se otimista com as perspectivas para 2025, mas também tem consciência de que não terá ganhado a guerra das perceções na opinião pública ocidental. Hamutal aponta: "A guerra com organizações terroristas é uma guerra desigual, não é exército contra exército. Os palestinianos ganham com as fotos. Nós estamos a tentar contrariar as fotos com lógica. Somos um pequeno estado, vivendo numa vizinhança muito perigosa. E tentamos explicar isso ao mundo. Os palestinianos mostram fotos. Nunca ganharemos a guerra das fotos, porque iremos sempre proteger-nos. Nós lutamos com os nossos bebés atrás de nós, queremos mantê-los vivos. Eles estão a pôr crianças até na apresentação dos reféns, em locais como escolas e hospitais, que usam militarmente. Não encontrarão uma escola israelita com armas na cave. Em Gaza encontrarão muitas." Ainda assim, a responsável está convencida de que argumentos ganham: "Quem sabe e lê percebe a narrativa israelita. Podem criticar-nos pelo número de pessoas que estão a morrer - a guerra é uma coisa terrível e percebemos essa crítica. É legítima. Também nos criticamos a nós próprios, se lerem os media israelitas."
Do 7 de Outubro, há fotos, vídeos, e há testemunhos. Já não é preciso dizer, como a frágil sobrevivente, "tenho as fotos todas em mim". O papel que lhe cabe é o de trazer emoção para uma tragédia cada vez mais distante - e é esse que começa a caber também aos sobreviventes do 7 de Outubro. A certa altura, a dor da memória pessoal passa a missão e, nessa, Halina já não verte lágrimas. O filho nunca a viu chorar enquanto, ao longo dos anos, descrevia os horrores, à família ou em público. Ela conta à assistência a última vez em que não foi assim: "Voltei a Majdanek quarenta anos depois, e vi lá um monte de cinzas. Chorei, oh, chorei, chorei muito, chorei tão alto. Um guarda esperou por mim. E no fim perguntou-me: "Quem mataram seu neste sítio?"
A SÁBADO viajou a convite da embaixada de Israel em Portugal
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