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Ricardo Marques: Referendo popular ao Alojamento Local? "Estamos a fazer história na nossa democracia"

O presidente da Comissão que avalia os trâmites desta mobilização popular, inédita, espera que tenha efeitos práticos. Ou seja, que duas perguntas sobre a limitação ao alojamento local em Lisboa sejam referendadas. Poderão ir a votos entre fevereiro e maio, caso passem no Tribunal Constitucional, adianta à SÁBADO.

Duas perguntas sobre o Alojamento Local (AL) estão a provocar alarido em Lisboa. E podem entrar para a história da cidade, caso sejam aprovadas pelo Tribunal Constitucional para referendo. São elas: "Concorda em alterar o Regulamento Municipal do AL no sentido de a Câmara Municipal, no prazo de 180 dias, ordenar o cancelamento dos alojamentos locais registados em imóveis destinados a habitação?"; e "Concorda em alterar o Regulamento Municipal do Alojamento Local para que deixem de ser permitidos alojamentos locais em imóveis destinados a habitação?".  

Os autores da iniciativa (Movimento Referendo pela Habitação) passaram dois anos a recolher mais de 11 mil assinaturas. Não excluíram ninguém, destas cerca de 6.500 foram válidas por serem, efetivamente, de lisboetas. As restantes eram de simpatizantes da causa. Ricardo Marques, deputado socialista, presidente da Junta de Benfica e a presidir a Comissão que avalia os procedimentos deste movimento, gaba-lhes a perseverança. Nesta terça-feira à tarde (3 de dezembro) haverá mais um plenário na Assembleia Municipal de Lisboa (AML), o decisivo. Se der luz verde, as duas perguntas sobem ao Tribunal Constitucional, que avalia a possibilidade de serem referendadas. Em caso afirmativo, vão a votos antes das autárquicas.   

Qual a importância do referendo sobre o AL? 

Acho o ato do referendo por iniciativa popular fabuloso. É uma ferramenta constitucional que nunca foi utilizada. É a primeira vez, em 50 anos de democracia, que há uma mobilização para tal. Só por isto merece a nossa atenção e também alguma tolerância, por ser a primeira vez. São uncharted waters [águas desconhecidas] para toda a gente. Assumi o cargo de presidente da comissão eventual para o referendo local, que esteve a trabalhar intensamente durante uma semana, com os seus deputados. Validámos, por considerarmos que existe vontade e foram cumpridos os preceitos. 

Como foi o processo?

O enquadramento legal determina que seja criada uma comissão executiva para ver se o Movimento Referendo pela Habitação cumpre os preceitos. Este movimento entregou mais de 6.500 assinaturas na AML. Durante dois anos, recolheu cerca de 11 mil assinaturas, mas os moradores de Lisboa signatários foram aqueles 6.500 e tal. A Presidente da AML [Rosário Farmhouse] e os serviços municipais instaram um pequeno levantamento sobre as condições materiais necessárias e enviaram a documentação [do pedido de referendo] para o ministério da Administração Interna e para o Instituto dos Registos e do Notariado [para verificarem a autenticidade das assinaturas].

O que aconteceu nessa semana de trabalho da comissão? 

Foi uma semana interessante, pouco partidarizada. Debateram-se pouco as opiniões pessoais, ou até partidárias sobre o AL, e muito mais sobre a questão de ser uma iniciativa popular. Fizeram-se as audições, duas vezes aos representantes do movimento. Os representantes decidiram não mexer nas perguntas, pareceu-nos que não poderíamos forçar uma alteração ad hoc. São as que foram assinadas e vão a plenário nesta terça-feira [3 de dezembro]. Espero que sejam aprovadas e subam para o Tribunal Constitucional, porque acho que estamos todos a fazer história na nossa democracia. 

Se o [Tribunal] Constitucional mandar as perguntas para trás, esta comissão que eu presido tem de reunir com urgência e em oito dias reenviar as perguntas alteradas

Se houver referendo, e só para lisboetas, será antes das autárquicas (em setembro de 2025)? 

Sim, será. Se o Constitucional mandar as perguntas para trás, dizendo que têm de ser afinadas, esta comissão a que presido tem de reunir com urgência, e em oito dias reenviar para o Constitucional as perguntas alteradas. O Constitucional passa a ter 25 dias para o mesmo processo. Se vier tudo ok, a presidente da AML recebe a notificação e encaminha-a para o presidente [da Câmara de Lisboa] Carlos Moedas. O órgão executivo tem cinco dias para agendar o ato eleitoral, numa janela de 40 a 60 dias. Se for tudo aprovado à primeira, a eleição acontecerá em fevereiro. Se derrapar um bocadinho, é capaz de ir para abril, maio. Se o Constitucional disser que não cumpre nenhum preceito, ou que há algum impedimento legal e não há forma corrigi-lo pode chumbar e dar por terminada esta iniciativa popular. Espero que isso não aconteça pelo esforço destes jovens e pela cidade. 

Nas audições da comissão, que disseram os representantes do movimento?

Eles estão muito convictos que as perguntas passam no processo constitucional. Eu e outros deputados dissemos que tínhamos algumas dúvidas e se haveria possibilidade de ajustar as perguntas, tendo em conta que o decreto-lei sobre o AL foi alterado ao longo do processo de recolha das assinaturas. Ou seja, as perguntas quando foram feitas, há dois anos, tinham um enquadramento legal que hoje não têm. As alterações foram muito mais profundas nesta alteração do Governo, que retirou um conjunto de ferramentas que existiam [de limitação ao AL].

Quem integra o movimento pelo referendo?

Os que se apresentaram às audições eram jovens de vinte e tais e 30 anos. Ninguém é contra a iniciativa privada. O Partido Socialista assume que nos últimos dez anos foi fundamental uma parte do investimento privado na reabilitação da Baixa Pombalina, mas a determinada altura deveríamos ter posto um travão. Faltou-nos capacidade para colocar limites. A freguesia de Santa Maria Maior tem 70% do parque habitacional transformado em AL.

Benfica tem 92 AL's inscritos. Há muitos mais, ilegais

Como é que está a freguesia que preside, Benfica?

Benfica tem 92 AL's  inscritos. Nós sabemos que há muitos mais, ilegais. Temos vindo a pedir à Câmara atuação, mas ainda não é das zonas mais preocupantes. Mas há aqui um problema de fundo: uma cidade sem lisboetas e sem moradores é uma cidade sem serviços. Lisboa perdeu 70 mil moradores na última década. Foram para as periferias: Seixal, Almada, linha de Sintra, Massamá, Monte Abraão, Algueirão. Lisboa tem de arranjar o seu ponto de equilíbrio para ter turismo de qualidade e continuar a ter moradores. 

O que sugere?

Sou alguém que acha que tem de haver uma maior regulação e controlo nas áreas de intervenção do AL. A linha que estes jovens escolheram de limitar o AL em prédios ou frações para habitação pode ser um caminho. O modelo de Nova Iorque também é interessante: alguém que queira fazer um AL na sua casa, pode. Desde que a casa seja a sua habitação prioritária. Aquilo que aconteceu em Lisboa e noutros sítios foi uma exploração comercial brutal. Um estudo da Câmara indica que mais de 56% dos AL’s em Lisboa estão na mão de alguém que tem dois, três ou quatro AL’s. Na prática é um negócio. Ter uma habitação que não está inscrita com um intuito comercial e depois, num passo de mágica, haver grupos empresariais a explorar como um negócio não é justo para os moradores, nem para a cidade.

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