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Rúben Amorim: o Gambito de Dama contra o duopólio do costume?

Carlos Torres
Carlos Torres 01 de fevereiro de 2021 às 15:15
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Fazendo analogias com a série do momento, uma vitória do Sporting esta noite, frente ao Benfica, só não significa já um xeque-mate às águias porque no futebol tudo é possível. Mas será um grande passo para os leões tentarem acabar com a hegemonia FC Porto-Benfica, que durá há 18 anos

Gambito de Dama conta a história de Beth, abandonada pelo pai e órfã de mãe, que vai descobrir que é um génio do xadrez ao mesmo tempo que desenvolve uma dependência por calmantes e álcool.

A série do momento, grande sucesso da Netflix, tem vários episódios marcantes. Um deles acontece logo no início, quando Beth, com 9 anos, e depois de aprender a jogar xadrez com o contínuo do orfanato, participa no seu primeiro torneio e vence vários adversários, jogando com eles ao mesmo tempo.

Mas o mais impactante é, já no final, o confronto com o russo Borgov, na disputa pelo título mundial de xadrez, em que ela começa o jogo com a abertura Gambito de Dama – avança com o peão da rainha, sacrificando outro peão para em seguida colocar os peões do rei e da rainha lado a lado, a dominar uma área sem ameaças.

No futebol português, Rúben Amorim (que ainda nem tem o IV nível do curso de treinadores, aquele que permite treinar equipas da I Liga), também é o aprendiz que está a desafiar os mestres (Sérgio Conceição, duas vezes campeão pelo FC Porto nas últimas três épocas, defrontou-o cinco vezes e soma três derrotas, um empate e uma vitória).

Tal como no xadrez, Rúben Amorim não se preocupou de sacrificar a Liga Europa (e, mais tarde, a Taça de Portugal), para concentrar todas as atenções na vitória final: isto é, a conquista do campeonato, que já foge aos leões há mais de 18 anos.

Esta segunda-feira, 1 de fevereiro, se o Sporting vencer o Benfica no dérbi de Alvalade, encare Rúben Amorim o jogo com qual abertura xadrezística quiser, seja o Gambito de Dama, a Defesa Francesa ou a Defesa Siciliana (e sabendo que não poderá ter Palhinha, que mais do que um peão sacrificado, poderá ser antes comparado a um cavalo, tal é a importância do médio no jogo leonino), a verdade é que deixará Jorge Jesus e o Benfica em xeque a uma impensável distância de 9 pontos (só não é ainda xeque-mate porque ficarão a faltar 18 jogos no campeonato e no futebol tudo é possível – até o impossível).

 "Nada fica decidido com este jogo, ainda nem entrámos na segunda volta", comentou Rúben Amorim na conferência de imprensa de antevisão do dérbi. "Se ganharmos, não tira o título ao Benfica, nem dá o título ao Sporting. São três pontos que nos dão mais confiança, mas tudo pode acontecer durante este campeonato", disse, deixando uma espécie de aviso para os seus jogadores sobre os imponderáveis do futebol: basta lembrar que o Benfica de Bruno Laje recuperou sete pontos ao FC Porto e, na época seguinte, os dragões fizeram o mesmo às águias.

Rúben Amorim está a treinar equipas de I Divisão há pouco mais de um ano (foi a 23 de dezembro de 2019 que deixou a equipa B e assumiu o cargo de treinador principal do Sp. Braga, após a saída de Sá Pinto). Logo na estreia, os minhotos foram vencer o Belenenses, em Lisboa, por 7-1, a maior vitória de sempre do clube fora de casa. Em menos de dois meses, o Sp. Braga de Rúben Amorim ganhou no Dragão e no estádio da Luz para o campeonato e também derrotou o Sporting em casa. Pelo meio, conquistou a Taça da Liga pelos minhotos, vencendo o Sporting (2-1) nas meias-finais e o FC Porto na final (com um golo de Ricardo Horta aos 95 minutos).

Cinco semanas depois da conquista desse troféu, e com um balanço de 10 vitórias, um empate e duas derrotas (ambas na Liga Europa, frente ao Glasgow Rangers), Rúben Amorim iria mudar-se para Alvalade - o negócio ficou fechado a 4 de março.

Na altura, quando surgiram as notícias de que o presidente dos leões ia avançar com 12,5 milhões de euros (que ainda não foram pagos na totalidade) por Rúben Amorim, muitos devem ter pensado que Frederico Varandas tinha enlouquecido ao dar todo esse dinheiro por um jovem técnico de 35 anos, com potencial mas praticamente sem currículo (13 jogos no Sp. Braga e uma Taça da Liga).

A questão é que, 11 meses depois, Rúben Amorim poderá revelar-se, afinal, uma pechincha - se qualificar o Sporting diretamente para a Liga dos Campeões, rende logo 40 milhões de euros ao clube. O treinador aproveitou o que faltava da última época (interrompida entre março e junho por causa da pandemia de Covid-19), para lançar jovens jogadores da equipa sub-23 do Sporting, como Tiago Tomás, Eduardo Quaresma, Gonçalo Inácio, Nuno Mendes ou Matheus Nunes, ensaiando o primeiro protótipo de equipa para a próxima época.

No início desta época, com contratações cirúrgicas, juntou-lhe jogadores também ainda jovens mas já com mais experiência, e carregados de talento e ambição (a fazer lembrar o FC Porto da primeira época de José Mourinho), como Nuno Santos, Pedro Gonçalves, Porro, Adán, Feddal ou Tabata (a que se somam os regressos dos leões João Mário e Palhinha), para construir uma verdadeira equipa (como o próprio treinador referiu na célebre tirada "onde vai um, vão todos", após a confusão no final do jogo em Famalicão).

Ao fim de 15 jornadas, o Sporting lidera o campeonato destacado, com mais quatro pontos do que o FC Porto e mais seis do que o Benfica, fruto de 12 vitórias e três empates. Basta lembrar que na época passada, à 15ª jornada, tinha cinco derrotas. Na atual, só perderam pontos nos empates caseiros com FC Porto (2-2) e Rio Ave (1-1) e em Famalicão (2-2).

Os leões têm ainda a melhor defesa (9 golos sofridos, contra os 15 de Benfica e Sp. Braga e os 17 do FC Porto), e o segundo melhor ataque (33 golos marcados, face aos 37 do FC Porto e os 30 do Benfica). No ano passado, os leões tinham 25 marcados e 17 sofridos – e isto depois de terem ficado sem Mathieu, Acuña, Wendell ou Vietto.

Quando Jorge Jesus chegou ao Sporting, avisou que a partir daquele momento não ia haver só dois galos a lutar pelo campeonato em Portugal (Benfica e FC Porto), mas três: "Está na hora de nos assumirmos como candidatos a todos os títulos que o Sporting disputar em Portugal", garantiu na apresentação, a 1 de julho de 2015.

Jesus, que chegou com a bagagem de dez troféus conquistados no Benfica (três deles de campeão), pôs o Sporting a lutar pelo título até à última jornada, mas quem festejou foi Rui Vitória, que Jesus menosprezou, em especial ao dizer que ele não tinha mãos para conduzir o Ferrari (Benfica).

O Sporting não voltaria a estar tão perto de ser campeão, e não deixa de ser curioso se isso agora acontecer com um ex-jogador do Benfica, treinado por Jorge Jesus nas águias. Aliás, no dia em que chegou ao Benfica, a 7 de julho de 2008, após cinco épocas no Belenenses, onde fez praticamente toda a formação, Rúben Amorim fez questão de mostrar o seu cartão de sócio, afirmando ser associado desde 1985, o ano em que nasceu: "Espero ter sorte, porque não basta ser-se bom jogador. Espero ganhar títulos. Quero jogar, e se puder fazer os jogos todos, faço-os", disse.

Ora, a época 2020/21 seria, tudo apontava para isso no início (até pelo arranque a golear, por 5-1, em Famalicão), um passeio para o Benfica, que além de gastar quase 100 milhões em reforços, de Otamendi a Cebolinha e Darwin, ainda contava com o regresso de Jorge Jesus, coroado de glória e santificado como Messias depois do sucesso que teve nos brasileiros do Flamengo, onde ganhou o Brasileirão e a Taça Libertadores. Aliás, ninguém se esquece das palavras de Jesus na apresentação, quando garantiu que o Benfica ia passar a jogar o triplo e ia "arrasar".

Pois bem, se o Benfica perder em Alvalade esta segunda-feira (e, lá está, apesar de no futebol tudo ser possível, até o impossível), é quase certo que com nove pontos de atraso para os leões, o Benfica dificilmente continuará na corrida ao título. Mas, atenção, há aqui um dado estatístico importante: há nove anos que o Sporting não ganha ao Benfica em casa para o campeonato (um fator psicológico que Rúben Amorim irá, de certeza, explorar junto dos seus "meninos" – "precisamos mesmo de ganhar, quero que os meus jogadores estejam pressionados", avisou o técnico).

Se isso acontecer, Rúben Amorim poderá concentrar as atenções no FC Porto (a 4 pontos), que vai receber o Sporting já a 28 de fevereiro. Nessa altura, uma vitória no Dragão poderá significar um passeio triunfal no resto da temporada para os leões. Mas um empate até poderá ser suficiente, afinal os dragões têm já para a semana um desafio complicado em Braga.

Aconteça o que acontecer frente a Benfica e FC Porto, é seguro que Rúben Amorim está no bom caminho para acabar com o duopólio FC Porto-Benfica, que já dura há 18 anos. Desde que o Sporting (com Laszlo Boloni) foi campeão pela última vez, em 2002, o FC Porto ganhou 11 campeonatos e o Benfica sete. E só em sete ocasiões o 2º lugar não foi ocupado por um dos dois (uma das vezes foi o Sp. Braga de Domingos Paciência, as outras seis couberam ao Sporting, quatro delas com Paulo Bento).

Se olharmos para os cinco campeonatos mais importantes a nível europeu, este duopólio é exclusivo de Portugal. Desde 2002, a França teve sete campeões diferentes (apesar do domínio do Paris Saint-Germain, com sete triunfos), a Inglaterra teve seis, a Alemanha (onde o Bayern ganhou 13 vezes), a Holanda, Bélgica e Rússia tiveram cinco campeões diferentes, a Espanha teve quatro e só a Itália se aproxima da monotonia de Portugal, com três vencedores (Juventus, Inter e Milan).

Se o Sporting for campeão esta época, Portugal ficará ao nível de diversidade de Itália. E Rúben Amorim irá garantir desde logo que os leões não vão passar a ter o recorde de maior jejum de campeão entre os três grandes, igualando os 19 anos do FC Porto (o jejum do Benfica foi de 11 anos). Ou seja, mais um fator de motivação para os "meninos" de Rúben Amorim para o dérbi deste noite.