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Liliana Sousa: "Em Portugal, o desperdício decorre da tradição da mesa farta"

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Compra-se por impulso, cozinha-se em excesso e não se planificam refeições. No Dia Mundial da Alimentação, a bastonária dos Nutricionistas recomenda que sejamos mais criativos na cozinha e que reaproveitemos os alimentos.

A intenção é positiva, mas o resultado nem por isso. Basta olhar para os números: segundo dados do Programa Nacional de Combate ao Desperdício Alimentar, estima-se que sejam desperdiçadas cerca de 1,93 milhões de toneladas de alimentos por ano, o que equivale a cerca de 172,7kg por pessoa. "Parte desse desperdício decorre da tradição de mesa farta, enraizada na nossa cultura de hospitalidade", diz Liliana Sousa. "Há uma vertente cultural no desperdício", enquadra a bastonária da Ordem dos Nutricionistas.

'Reduzir o desperdício é parte integrante de um padrão alimentar saudável', diz a bastonária dos Nutricionistas
"Reduzir o desperdício é parte integrante de um padrão alimentar saudável", diz a bastonária dos Nutricionistas Marisa Cardoso

Contudo, nem tudo são más notícias: já há mudanças a acontecer. "Cresce o número de famílias e de estabelecimentos que adotam práticas de reaproveitamento, doação e gestão mais eficiente dos alimentos", indica a especialista. Em entrevista à SÁBADO para assinalar o Dia Mundial da Alimentação, que se celebra esta quinta-feira, 16 de outubro, Liliana Sousa considera que esta é uma ótima oportunidade para refletir sobre a forma como comemos e nos relacionamos com os alimentos. 

Porque é que faz sentido falar de desperdício alimentar?

A alimentação saudável não se resume ao que pomos no prato, mas diz respeito também à forma como planeamos, compramos, preparamos e aproveitamos os alimentos. Reduzir o desperdício é parte integrante de um padrão alimentar saudável, que respeita o ambiente, valoriza os recursos e contribui para um sistema alimentar mais justo e eficiente.

Qual a relação que existe entre o desperdício alimentar e a nossa saúde?

O desperdício alimentar tem impacto na saúde a vários níveis. Por um lado, representa uma perda de nutrientes e de oportunidades de acesso a uma alimentação equilibrada, especialmente quando alimentos frescos e de elevado valor nutricional – como frutas, hortícolas ou pescado – são desperdiçados.

Por outro, contribui para problemas ambientais como as emissões de gases com efeito de estufa e a degradação dos solos, que acabam por afetar a qualidade e a disponibilidade dos alimentos que consumimos. Desta forma, combater o desperdício alimentar é também promover saúde pública, garantindo uma utilização mais justa e sustentável dos recursos alimentares, melhorando a segurança alimentar de todos.

Porque é que as pessoas desperdiçam tanta comida?

As principais causas são comportamentais e culturais. Muitas pessoas compram por impulso, cozinham em excesso ou não planificam as refeições. Há também desconhecimento sobre a conservação adequada dos alimentos e confusão entre os termos “consumir até” e “consumir de preferência antes de”, que não significam a mesma coisa.

Em Portugal, pesa ainda uma dimensão cultural: o valor simbólico da fartura à mesa, associado à hospitalidade. Isto faz com que muitas famílias preparem mais comida do que o necessário, o que facilmente leva ao desperdício.

Quais são os alimentos mais desperdiçados e porquê?

De acordo com dados nacionais e europeus, os alimentos mais desperdiçados em Portugal são as frutas e hortícolas, devido à rápida deterioração e à rejeição por questões estéticas; o pão e produtos de padaria, pela compra excessiva e de curta validade; restos de refeições cozinhadas, devido à confeção de porções grandes e armazenamento incorreto; e os laticínios e carnes, pelo mau controlo das datas de validade. Estes alimentos têm, em comum, elevada perecibilidade e manuseamento inadequado, o que aumenta a probabilidade de se estragarem antes de serem consumidos.

Como se pode evitar o desperdício logo à partida, nas compras do supermercado?

O combate ao desperdício começa antes das compras. À partida, o planear as refeições da semana e fazer uma lista de compras orientada para essas necessidades e também verificar o que já existe em casa antes de comprar.

Depois, já no supermercado devem evitar-se promoções de produtos perecíveis que não se consigam consumir a tempo; comprar quantidades ajustadas ao número de pessoas e ao ritmo de consumo; dar preferência a produtos locais e da época, com melhor qualidade nutricional e maior durabilidade. São passos que ajudam a otimizar recursos e a reduzir perdas desde a origem.

Por que razão o armazenamento inadequado pode dar origem a desperdício alimentar?

O armazenamento incorreto altera a qualidade e segurança dos alimentos, diminuindo o seu tempo útil de consumo. Por exemplo, os frigoríficos com temperatura acima de 5 graus favorecem o crescimento microbiano; ou alimentos abertos sem proteção adequada quando armazenados facilita a oxidação e o aparecimento de bolores. Já a descongelação inadequada pode comprometer a textura e a segurança alimentar.

Liliana Sousa aborda desperdício alimentar em Portugal
O desperdício alimentar tem impacto na saúde. Representa uma perda de nutrientes e de acesso a uma alimentação equilibrada, especialmente quando alimentos frescos e de elevado valor nutricional – como frutas ou hortícolas – são desperdiçados. Liliana Sousa

Dê alguns exemplos e dicas de bons hábitos de reaproveitamento.

Transformar sobras em novas refeições, há várias opções: arroz em bolinhos, legumes em sopas ou quiches, pão em açordas, pudins ou tostas. Depois, aproveitar partes habitualmente descartadas, como talos, folhas e cascas, em caldos ou batidos. Também congelar porções individuais para evitar o desperdício de refeições completas; e reutilizar fruta madura em compotas, batidos ou sobremesas.

O reaproveitamento não reduz só o desperdício, estimula a criatividade culinária e valoriza o alimento em toda a sua dimensão.

De que forma se podem envolver as crianças nestes bons hábitos?

A melhor forma é educar pelo exemplo e incluir o tema no quotidiano familiar. Ao participar no planeamento das compras e na preparação das refeições, as crianças aprendem de forma prática a valorizar os alimentos e a compreender o esforço envolvido na sua produção. Pequenos desafios, como “hoje não desperdiçamos nada” ou “vamos cozinhar com o que há no frigorífico”, tornam o processo divertido e educativo. Quando crescem com esta consciência, é mais provável que se tornem adultos atentos, responsáveis e com hábitos alimentares sustentáveis.

Porque é tão difícil mudar mentalidades e conseguir que as pessoas diminuam o desperdício?

Mudar mentalidades é sempre um processo gradual, especialmente quando envolve hábitos culturais e rotinas enraizadas. Em Portugal, o desperdício alimentar está associado a tradições positivas, como a ideia de que uma mesa farta é sinal de hospitalidade e cuidado. Além disso, muitas pessoas continuam desligadas do percurso que o alimento faz até chegar ao prato – desconhecem o esforço, os recursos e o impacto ambiental envolvidos.

A isto soma-se a falta de tempo e planeamento nas rotinas atuais, que favorece escolhas menos conscientes. Por isso, reduzir o desperdício exige educação alimentar, sensibilização contínua e exemplos práticos, para que as pessoas percebam que cada gesto conta e que aproveitar bem os alimentos é uma forma concreta de promover saúde, respeito e sustentabilidade.

Reduzir o desperdício é um sinal de evolução e de consciência ambiental, e não de escassez.

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