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Susete Estrela: "Não guarde arroz no frigorífico mais do que um dia"

É um dos hábitos mais comuns na cozinha mas não é inofensivo - pode provocar uma intoxicação depois de reaquecido. A engenheira alimentar explica que a alimentação saudável não é necessariamente segura e identifica os erros mais perigosos que estão completamente normalizados.

Comer bem não chega: no que diz respeito à alimentação esta deve ser a mensagem. E é fácil perceber porquê. "Muitas famílias não adoecem por comer mal, mas sim por comerem de forma insegura", diz à SÁBADO a engenheira alimentar Susete Estrela. Nem todos os alimentos que consideramos saudáveis são boas escolhas, assim como há erros que se cometem na cozinha (muitos estão enraizados na nossa cultura) que podem pôr em risco a nossa saúde, alerta a especialista. E dá um exemplo muito simples: provar a comida para perceber se está estragada. 

A beringela e o tomate, por exemplo, não devem ser guardados no frigorífico, diz a especialista
A beringela e o tomate, por exemplo, não devem ser guardados no frigorífico, diz a especialista

Foi com o intuito de ajudar as famílias a fazerem boas escolhas que publicou o livro Mais de 50 coisas que não deve fazer na cozinha, que vai ser publicado amanhã, 6 de outubro. Trata-se de "um guia de consulta rápida que ajuda a proteger famílias, crianças, grávidas e a reduzir desperdício e a transformar a cozinha num lugar de confiança", traduz. Para a engenheira, que é também mentora de nutrição integrativa e educadora de segurança alimentar, "a cozinha deve ser mais do que um lugar para cozinhar, deve ser um santuário de saúde". Em entrevista à SÁBADO identifica quais os hábitos antigos mais perigosos, as doenças silenciosas que se podem instalar e como nos podemos proteger.

A alimentação saudável pode não ser segura?

A alimentação só pode ser considerada saudável se for composta por alimentos seguros. A segurança dos alimentos é o primeiro pilar – e não o contrário, como tantas vezes nos fizeram acreditar. A alimentação saudável foca-se no equilíbrio nutricional, em escolher vegetais, menos sal, menos açúcar, mais antioxidantes, mais fibra, proteína e gorduras saudáveis, etc. Mas esse equilíbrio não serve para nada se os alimentos esconderem bactérias, vírus, parasitas, toxinas ou químicos nocivos. Por isso, a mensagem transversal deste livro é clara: a alimentação só é saudável se for segura.

A alimentação segura permite-nos usufruir do valor nutricional dos alimentos por inteiro. Imagine uma salada fresca, lavada com cuidado, mas que acabou contaminada com salpicos do frango cru ao partilhar a mesma bancada. Ou sobras nutritivas que, guardadas de forma incorreta, se transformam em terreno fértil para bactérias e toxinas. Nesses casos, os alimentos até eram saudáveis, mas deixaram de o ser porque se tornaram inseguros para comer. O mesmo pode acontecer com peixe, carne, sopas, sumos naturais, fruta inteira ou cortada e com centenas de outros alimentos.

Quais os hábitos antigos mais perigosos?

Por exemplo, lavar o frango cru espalha bactérias como a salmonela pela bancada, alimentos vizinhos e restante cozinha. Outro: provar comida para ver se está estragada – são muitas as bactérias que apesar de presentes e produtoras de toxinas não alteram o sabor nem o cheiro. Também deixar a comida arrefecer toda a noite fora do frigorífico favorece o crescimento bacteriano e proporciona o desenvolvimento de compostos prejudiciais, sem que haja alterações de aspeto, textura ou cheiro. Comemos a achar que está bom e acabamos por prejudicar a nossa saúde.

Usar a mesma tábua e faca para carne crua e vegetais é um hábito que proporciona a contaminação cruzada. Ou seja, passagem de bactérias de um alimento que ainda vai ao forno, para outro que vai ser consumido cru. É dos erros mais comuns nas cozinhas domésticas, inclusive em Portugal. E também o de guardar arroz cozido mais de um dia no frigorífico. O arroz pode parecer inofensivo mas quando fica vários dias no frigorífico, esconde um risco que poucos conhecem: o Bacillus cereus. Que pode desencadear uma intoxicação silenciosa mesmo depois de reaquecido.

Quando o arroz não é cozido, nem arrefecido corretamente, esta bactéria produz uma toxina invisível - chamada cereulide - que não tem cheiro, nem sabor e que o calor não destrói. Todos estes hábitos parecem inofensivos, mas podem conduzir a infeções graves.

Porque é que a forma como produzimos, transportamos e conservamos os alimentos tornou perigosos alguns dos nossos hábitos?

Temos cadeias alimentares longas, complexas e globais. Um alimento pode ser produzido na América do Sul, embalado na Ásia e chegar à nossa mesa em Lisboa. Cada etapa – produção, transporte, refrigeração, transformação e embalagem – acrescenta pontos críticos onde a segurança pode falhar. E não há processos perfeitos.

Isto significa que os velhos hábitos da cozinha da avó, que se sustentava da horta atrás de casa, já não são suficientes. A comida de hoje precisa de cuidados diferentes, porque passa por processos diferentes. Mantém apenas o mesmo nome. A boa notícia é que nunca tivemos uma alimentação tão legislada e controlada. Mas é preciso adotarmos novas práticas. Não podemos esperar proteger a saúde da família com os hábitos de 1980.

Uma das mensagens mais transmitidas é a do perigo dos chamados microplásticos, por exemplo, o hábito de guardar os alimentos em tupperwares. Há alimentos que é mais perigoso guardar nestes recipientes do que outros?

Os plásticos antigos, riscados ou usados no micro-ondas são os mais problemáticos. Hoje sabemos que muitos foram produzidos com compostos capazes de interferir no sistema hormonal, entre outros efeitos na saúde humana. E, apesar de a legislação ter evoluído, ninguém nos veio bater à porta a avisar que aqueles tupperwares herdados da década de 80 deviam ter reforma imediata. Esses recipientes libertam substâncias que migram para os alimentos, sobretudo quando são gordurosos (como molhos ou queijos) ou muito ácidos (como o tomate). O vidro, pelo contrário, é um material inerte: não interage com o que guardamos, é mais estável e não transfere riscos invisíveis que se acumulam silenciosamente no nosso corpo ao longo do tempo. Por isso, sempre que possível, o vidro é a escolha mais segura.

Nunca tivemos uma alimentação tão controlada. Mas é preciso adotarmos novas práticas Susete Estrela, engenheira alimentar

Tapar um tabuleiro de comida com papel de alumínio ou guardar vegetais embrulhados em alumínio é perigoso?

Na própria embalagem há uma nota a indicar as situações em que o papel de alumínio não deve ser usado. É mais um exemplo de como a indústria, apesar de criticada, procura proteger o consumidor e alertar que os alimentos, utensílios e embalagens são desenhados para um uso específico. No caso da folha de alumínio, o risco está na migração de partículas para os alimentos, sobretudo se forem ácidos (como tomate, limão ou laranja) ou muito salgados. É um detalhe invisível, mas que faz diferença a longo prazo. A alternativa é simples: usar vidro ou caixas herméticas, que são mais estáveis e seguras.

Quais são as tábuas mais seguras: as de madeira ou as de plástico?

Ambas têm prós e contras. As de madeira, apesar de terem algumas propriedades antibacterianas naturais, não devem ser usadas se estiverem muito fissuradas, pois torna a sua limpeza e secagem mais difícil. Nesse estado, passam de aliadas a foco de contaminação. As de plástico são laváveis na máquina, mas quando estão riscadas também se tornam difíceis de higienizar e promovem o consumo de microplásticos.

O ideal é ter tábuas separadas para diferentes grupos de alimentos e substituí-las quando estão muito gastas. Em casa, prefiro as de madeira, bambu ou até mármore. Recentemente, surgiram tábuas de titânio, que podem vir a ser uma opção interessante. Mais importante do que o material é a forma como cuidamos da tábua: limpa, bem seca e substituída a tempo.

Há frutas e legumes que não devem ser guardados no frio?

Depois de retirados da planta-mãe, as frutas e os vegetais continuam a respirar e a evoluir no seu processo natural de maturação ou envelhecimento. Em casa, para evitar desperdício, precisamos de conhecer melhor a “personalidade” dos que mais usamos. No livro tenho uma tabela prática com exemplos dos que gostam mais e menos de frio.

A beringela e o tomate, por exemplo, não devem ser guardados no frigorífico. Já os frutos vermelhos adoram temperaturas próximas de zero. Alguns toleram bem a humidade fria, mas outros não, como a alface, que em contacto direto com humidade se degrada muito mais rápido. Para alguns, o frio altera o sabor, a textura ou acelera a degradação.

Além disso, há uma interação invisível mas poderosa: guardar laranjas com maçãs, por exemplo, faz com que ambas envelheçam mais rapidamente. Isto acontece porque algumas frutas libertam etileno, um gás que acelera a maturação, enquanto outras são extremamente sensíveis a ele. Por isso costumo dizer que algumas frutas cansam a beleza de outras.

Quais as doenças silenciosas que podem advir de comportamentos errados na manipulação e conservação dos alimentos?

A toxina cereulide, no caso do arroz guardado mais de 24 horas, pode provocar inflamação intestinal e desequilibrar a microbiota, reduzindo as populações de Lactobacillus, uma das bactérias mais abundantes e protetoras do nosso intestino. Uma curiosidade: uma meta-análise mostrou que pessoas com síndrome do intestino irritável apresentam também níveis reduzidos de Lactobacillus.

Outro exemplo, vem do hábito de lavar o frango cru. A água não elimina bactérias como o Campylobacter jejuni, pelo contrário, espalha-as pela bancada, faca, tábua e até pelos vegetais ao lado. Resultado: uma das infeções alimentares mais comuns no mundo, que pode causar diarreia, febre, vómitos e dores abdominais. O perigo silencioso surge quando esta bactéria desencadeia a Síndrome de Guillain-Barré, uma doença autoimune rara que afeta os nervos periféricos e pode provocar fraqueza muscular e até paralisia temporária. A única forma segura de lidar com o frango é simples: cozinhá-lo bem.

Outros exemplos de doenças silenciosas incluem listeriose, que pode causar aborto ou septicemia; doenças renais ou hepáticas associadas à exposição a E. coli, micotoxinas [substâncias tóxicas produzidas por fungos] e metais pesados; cancro colorretal e mais de 200 doenças que podem ter origem nos alimentos e bebidas inseguras. Chamamos-lhes silenciosas porque muitas vezes não se revelam de imediato com febre ou diarreia. Os danos instalam-se em silêncio e podem manifestar-se anos depois, quando já é tarde.

Especialista alerta para erros na cozinha que prejudicam a saúde
Não se deve lavar o frango cru. A água não elimina bactérias, pelo contrário, espalha-as pela bancada, faca, tábua e até pelos vegetais ao lado. Susete Estrela

Há alimentos ditos saudáveis que podem ser perigosos?

Temos muitos. É o caso do peixe cru, que tem risco de parasitas, bactérias e metais pesados; dos alimentos fumados, que podem acumular contaminantes do fumo, alguns deles conhecidos por serem potencialmente cancerígenos; rebentos crus podem transportar salmonella e E. coli; smoothies de frutas cruas e congeladas que estão na base de muitos surtos devido à presença do vírus da hepatite E e aveia, frutos secos ou cereais, que podem conter microtoxinas resistentes à cozedura.

O que gostava que as pessoas aprendessem ou alterassem na sua rotina depois de lerem o livro?

Que a segurança dos alimentos é o primeiro pilar de uma alimentação saudável, o ingrediente primário de qualquer receita. Que não é um luxo nem uma complicação, mas sim o verdadeiro alicerce da saúde. Que devia ser ensinado nas escolas, como matéria essencial de vida. Gostava que olhassem para a cozinha com mais confiança, com vontade de atualizar hábitos, sabendo que pequenas mudanças de atitude têm o enorme poder de evitar doenças, proteger crianças e até salvar vidas. E que compreendessem também que cozinhar de forma segura é cuidar do planeta: reduz o desperdício e poupa recursos.

Por fim, como nos podemos proteger e prevenir, pode deixar algumas dicas?

Primeiro, conhecer o frigorífico por dentro. Não é um bloco uniforme de frio, é um conjunto de microclimas. Cada alimento tem o seu lugar ideal e, acima de tudo, a temperatura deve manter-se entre 2 ºC e 4 ºC, seja verão ou inverno. Depois, evitar a contaminação cruzada: separar crus de cozinhados, cozinhar bem os alimentos e respeitar as boas práticas de arrefecimento antes de os colocar no frigorífico ou no congelador são gestos simples que evitam infeções alimentares.

E também é preciso escolher bem os utensílios e recipientes. Sempre que possível, cozinhar e guardar em materiais inertes, como vidro ou inox, em vez de plásticos ou antiaderentes já gastos. Assim evita-se a migração e acumulação de compostos com potencial de comprometer o bem-estar a médio e longo prazo.

O livro estará disponível nas livrarias a partir de 6 de outubro
O livro estará disponível nas livrarias a partir de 6 de outubro Editora Arena