Aura Miguel esteve em todos os encontros de jovens, menos no primeiro. Acompanhou três Papas diferentes, pelos cinco continentes, ao longo de 30 anos. Esteve com João Paulo II no faroeste americano, viu Bento XVI junto de uma cobra piton e de um coala na Austrália e temeu por Francisco perdido numa favela brasileira num veículo que não era à prova de bala. A SÁBADO recolheu as maiores peripécias da história do evento que Lisboa está prestes a receber.
Aquela era a primeira viagem de Francisco para fora de Itália desde que fora eleito, em março de 2013. Voava num avião com destino ao Rio de Janeiro, no Brasil, para as suas primeiras Jornadas Mundiais da Juventude enquanto Papa – que decorreram entre 23 e 28 de julho de 2013. Entre os jornalistas que o acompanhavam na viagem estava a vaticanista portuguesa Aura Miguel. Francisco foi cumprimentá-los um a um. Quando chegou a sua vez, ela contou-lhe que tinha acompanhado todas as jornadas à exceção da primeira, na Argentina. O Papa deu uma gargalhada e respondeu-lhe: "Foi? Pois eu não fui a nenhuma, só fui à da Argentina!"
Bruno Colaço
O episódio acabou por dar o mote para o seu último livro, chamado Um Longo Caminho até Lisboa, da Bertrand – onde a jornalista conta episódios de bastidores de cada uma das 13 jornadas a que assistiu de perto. No período entre 1989 e 2019, com três Papas diferentes: primeiro João Paulo II, depois Bento XVI e, por fim, Francisco. "Há quem brinque comigo e diga que parece um dos livro do Tintim, por causa das aventuras nos cinco continentes", conta à SÁBADO, divertida, numa conversa nas instalações da Rádio Renascença, onde trabalha desde 1985, tendo-se especializado em assuntos religiosos, com acreditação na sala de imprensa da Santa Sé.
"A minha ideia foi ajudar a perceber o que foi até agora a Jornada Mundial da Juventude, dando a conhecer às novas gerações que nem conheceram João Paulo II e penso que os mais velhos, que o conheceram, também ficam curiosos", enquadra. Aura Miguel conheceu os três Papas e admite que são homens "radicalmente diferentes". Foi com João Paulo II que as Jornadas Mundiais da Juventude (JMJ) nasceram. "Porque ele transportou para o universo tudo aquilo que já fazia em Cracóvia", diz. Explica: "João Paulo II era um estilo de Papa a que as pessoas não estavam habituadas. O anterior, João XXIII ainda aparecia sentado numa cadeira aos ombros dos homens nobres de Itália. João Paulo II não: era de cajado na mão e botas de montanha e às vezes até se disfarçava com kispo e gorro para não o conhecerem", recorda.
Foi esse estilo mais próximo que atraiu os jovens. "Ele tinha muito o hábito de organizar passeios e acampamentos com os mais novos e tem fotografias muito giras no meio das montanhas com eles", diz a jornalista. Já Bento XVI era o oposto de João Paulo II. "Não gostava de caminhar nas montanhas, dava-se mal a andar de avião, a maneira de ele descansar era tocar piano, ler e escrever", descreve. Mas foi ele que "teve a coragem de enfrentar a questão dos abusos", destaca. Por fim, Francisco é descrito pela vaticanista como "um homem todo-o-terreno", que precisa de estar perto das pessoas.
Conta um episódio que o ilustra bem: "Quando tinha acabado de ser eleito, ainda com os cardeais todos reunidos, deu uma escapadela a Santa Maria Maior para levar um ramo de flores a Nossa Senhora num carro muito discreto do Vaticano. E no regresso ainda quis pagar a conta à casa de hóspedes onde ficou alojado antes de ser eleito pelo conclave. Apareceu por ali adentro, já com as vestes de Papa, para pagar a conta. Ele é assim", conta. É, aliás, o próprio Papa Francisco quem assina o prefácio do livro de Aura Miguel. A jornalista nunca antecipou que fosse tão "acessível".
Pediu-lhe diretamente numa das viagens papais – já fez ao todo 106 – no final do mês de janeiro, quando o Papa foi à República Democrática do Congo e Sudão do Sul. Ele disse logo que sim. "Recebi um texto maravilhoso de quatro páginas no sábado, nem sequer uma semana depois de termos chegado dessas viagens", recorda.
Como antecipação das JMJ que se avizinham, e que se realizam pela primeira vez em Portugal, em Lisboa, a SÁBADO desafiou Aura Miguel a revisitar as memórias das 13 jornadas em que esteve e a contar os episódios mais marcantes de bastidores de cada uma delas. Mesmo em Lisboa haverá uma estreia. "Não tenho de dar a volta ao mundo para fazer a cobertura, porque vem o Papa a minha casa. E mesmo assim vou a Roma buscá-lo", diz, na brincadeira.
Bruno Colaço
Santiago de Compostela, Espanha (15 a 20 de agosto de 1989)
Um esquema pirata
Foi a primeira vez que Aura Miguel esteve numa JMJ e uma das coisas que mais a impressionou foi a multidão de jovens. "Eu nunca tinha visto uma coisa assim, é uma espécie de capital mundial da juventude, por todo o lado gente nova e divertida", recorda. João Paulo II era na altura ainda muito novo e entrou na cidade vestido de peregrino – como os dos Caminhos de Santiago. De cajado na mão e capa de burel pelos ombros, enfeitada com duas conchas de vieira.
Nestas jornadas, o local escolhido para o encontro dos jovens com o Papa foi o Monte do Gozo, que fica próximo da cidade. Só que, apesar de ser agosto, tinha chovido bastante e o terreno estava todo ensopado. As casas de banho instaladas resvalavam na lama e não havia água para todos os banhos. "Eu estava hospedada num hotel no centro de Santiago e acabei por montar uma espécie de esquema pirata para os meus amigos portugueses que lá estavam. Sentava-me lá fora num café, dava-lhes a chave e eles entravam e saíam como se fossem hóspedes. Houve filas de gente a ir tomar duche ao meu quarto", conta, divertida.
Czestochowa, Polónia (10 a 15 agosto de 1991)
Até jovens soldados apareceram
O muro de Berlim só foi derrubado a 9 de novembro de 1989 e estas foram as primeiras JMJ com uma Europa reunida – sem barreiras físicas. Acorreram jovens de todos os lados, até "soldados do Exército Vermelho e militares de leste", escreve Aura Miguel no livro Um Longo Caminho até Lisboa. A jornalista conheceu vários portugueses que passaram por verdadeiras peripécias até lá chegarem. Como um grupo que atravessou a Europa de camioneta e o motorista se perdeu no caminho. Explicação: os polacos não falavam inglês nem francês, e também era impossível perceber as indicações das tabuletas. Também passaram fome porque não havia bares, cafés ou restaurantes. "Só lhes restavam autênticas rações militares", relata. Como pão e latas de conserva. "Era uma fase em que a Polónia se estava a voltar a levantar", enquadra.
Denver, Estados Unidos (10 a 15 de agosto de 1993)
Uma ovação que quase derrubou o helicóptero
A receção do Papa não podia ser mais típica do sítio em questão: aconteceu num estádio de futebol americano (no Mile High Stadium, sede da equipa NFL Denver Broncos) e João Paulo II entrou de helicóptero. Estava cheio. "Era tanta gente e gritaram de tal maneira pelo nome dele – John Paul two, we love you – que o piloto que era bastante experiente, tinha servido na Guerra do Vietname, queixou-se da vibração e teve dificuldade em aterrar", conta Aura Miguel. Toda a experiência acabou por ser diferente e a jornalista teve um vislumbre disso logo à chegada. "Quando entrei no hotel, que não era no centro de Denver, já de noite, o rececionista estava com jeans, botas de salto cortado, chapéu na cabeça e os pés em cima da secretária. Fiquei com a sensação de que tinha chegado mesmo ao Faroeste", diz, divertida.
Manila, Filipinas (10 a 15 de janeiro de 1995)
Um mar de cabeças
Quatro milhões e meio de pessoas saíram à rua para ver João Paulo II. A comitiva de jornalistas que viaja com o Papa normalmente tem sempre garantido transporte com batedores, porque as estradas podem estar cortadas e a ideia é chegarem antes. Mas naquela manhã nem isso valeu. "Quando entrámos para os nossos autocarros, que estavam parados no hotel, eu olhei para a estrada e só vi cabeças. A estrada tinha desaparecido", conta Aura Miguel. Era impossível arrancar dali porque os acessos estavam inundados de gente para ver o Papa passar. "Deram-nos duas alternativas: ou ficar no hotel ou uma modalidade improvisada. Eu arrisquei e foi genial. Ia à frente um polícia de mota muito devagarinho para as pessoas se irem afastando e logo atrás um outro a pé e nós fizemos uma fila rigorosamente indiana atrás dele, tipo miúdos dos infantários, todos agarrados às camisolas uns dos outros, para podermos seguir e chegarmos ao sítio", recorda.
Paris, França (19 a 24 de agosto 1997)
Chique a valer
Apesar das contestações – as mesmas que se ouviram recentemente em Portugal, de que um estado laico estava a financiar um evento da igreja – o então arcebispo de Paris, chamado Jean-Marie Lustiger, levou por diante a sua intenção de acolher o Papa em grande. "À imagem da capital da moda e chique a valer", descreve Aura Miguel. Contratou arquitetos de renome, entre os quais um Nobel da arquitetura, para fazer os palanques; encomendou as alfaias litúrgicas (como o cálice e etc.) à casa Christofle; quem fez os paramentos foi o conhecido costureiro Jean Charles de Castelbajac, que agora está na casa Benetton. Outra polémica foram os paramentos criados para o evento, desenhados com as cores do arco-íris. "Vários lobbies homossexuais saíram à rua para protestar e o arcebispo teve de enquadrar e explicar que o arco-íris vem citado na Bíblia desde o Genesis. E conseguiram levar por diante o projeto", diz.
Roma, Itália (15 a 20 de agosto de 2000)
"Giovani Paulo"
João Paulo II já estava bastante debilitado e cresciam as vozes dentro da Igreja a defender que ele se devia retirar. "Mas os jovens não se chateavam nada com isso, identificavam nele uma certa juventude, apesar da sua fragilidade física", conta Aura Miguel. As JMJ foram um sucesso tão grande, estiveram presentes dois milhões e meio de jovens, que foi preciso organizar duas festas separadas na cidade de Roma: uma para os de língua italiana e outra para os do resto do mundo. "Impressionou-me muito a força de um Papa frágil. Eles todos a gritar: ‘Giovani Paulo’!", recorda.
Toronto, Canadá (23 a 28 de julho de 2002)
A sombra das Torres Gémeas
Foram as últimas JMJ de João Paulo II e as expetativas estavam em baixo porque ainda não tinha passado um ano dos atentados às Torres Gémeas – que aconteceram a 11 de setembro de 2001. Além do medo de viajar de avião, o Papa estava cada vez frágil. João Paulo II já só se deslocava de cadeira de rodas. Contudo, e mesmo naquele estado, surpreendeu. "À chegada, quis descer da escada do avião pelo seu próprio pé. Desceu lentamente os degraus e não caiu e assim que pisou o chão choveram aplausos", recorda a vaticanista. "Aquilo foi espetacular."
Colónia, Alemanha (16 a 21 de agosto de 2005)
A jornada dos dois Papas
É sempre o Papa que convida os jovens para a JMJ. Quem decide o tema e o primeiro a inscrever-se. João Paulo II ainda enviou uma carta com o tema das jornadas de Colónia e foi também o primeiro a inscrever-se. Mas morreu antes de elas acontecerem – a 2 de abril de 2005. Por isso, esta ficou conhecida como a "jornada dos dois Papas", conta Aura Miguel. "Isto era uma coisa que João Paulo II inventou, ele tinha imenso gosto em estar com as multidões, era quase um superstar", compara. Já Bento XVI era bastante tímido e retraído. Esta foi a primeira viagem que fez como Papa e, por coincidência, logo ao seu país – a Alemanha. Apesar do perfil ser completamente diferente, não houve diferença no acolhimento, recorda a jornalista. "Viram-se os próprios jovens a incentivá-lo. Havia um cartaz no rio Reno, onde foi o acolhimento, que dizia: ‘Obrigada João Paulo II, estamos contigo Bento XVI’", diz.
Nos bastidores de 13 Jornadas Mundiais da Juventude
Bento XVI dava-se mal com o jet lag. Por isso, e porque já octogenário com 81 anos teve de enfrentar um voo de 18 horas até Darwin, onde o avião reabasteceu, e mais quatro horas até Sidney, chegou ao país quatro dias antes de as jornadas começarem para poder repousar. No sítio onde ficou, recebeu a visita de tratadores do zoológico de Taronga, que lhe levaram alguns animais exóticos. Entre eles: uma cobra piton com dois metros, um canguru, um papagaio vermelho e azul e um coala bebé chamado Darwin. "Ele adorou o coala, eu guardei alguns recortes de jornal e tem uma fotografia dele a fazer-lhe uma festa no pelo", recorda Aura Miguel. A jornalista recorda, divertida, os trocadilhos usados nas paragonas dos jornais locais. "Sobre essa visita dos animais, um deles era: ‘The Pope took a walk on the wild side’", conta.
Madrid, Espanha (16 a 21 de agosto de 2011)
"Que ideia, nunca chove em agosto"
Mas naquele dia choveu e não foi só a chuva, mas um autêntico temporal. O recinto escolhido para a vigília de sábado e missa de domingo foi o antigo aeroporto civil Cuatro Vientos. Ao fim da tarde, quando os jornalistas chegaram ao sítio (equivalente a 48 campos de futebol) começou a levantar-se vento e o horizonte a ficar escuro. "Perguntei a um colega espanhol e ele respondeu-me: ‘Que ideia, nunca chove em agosto em Madrid’", lembra. Mas o tempo foi sempre piorando e quando começou a vigília, também começou uma chuvada forte. "Abateu-se ali uma terrível tempestade, o Papa estava no enorme palco de 21 metros e eu pensei que ele ia voar dali. Mas não quis arredar pé", diz Aura Miguel. Quando a tempestade finalmente acalmou, disse: "Vivemos uma grande aventura juntos e Jesus esteve sempre connosco." Nesse momento ainda não se adivinhava, mas acabariam por ser as suas últimas JMJ.
Rio de Janeiro, Brasil (22 a 29 julho de 2013)
Perdido na "Faixa de Gaza"
Aconteceu com Francisco o que já tinha acontecido com Bento XVI: herdou uma viagem do seu antecessor. E, por coincidência, ao seu continente: a América Latina. "Como a resignação foi inesperada [Bento XVI renunciou a 28 de fevereiro de 2013] tiveram de mudar todo o design das JMJ", diz. Mas houve outras alterações marcantes, inclusive no meio de transporte do Papa. "Estava previsto enviarem para o Rio um papamóvel à prova de bala, já que o Palácio Presidencial era perto de uma favela chamada Faixa de Gaza, mas Francisco (que o terá ido ver antes) não quis. Terá dito: ‘Eu não quero ir naquele caixote’", conta. Portanto, acabou por se deslocar na cidade num veículo que não era à prova de bala e ainda viveu uma peripécia: perdeu-se no caminho. "A polícia que escoltava o Papa enganou-se na rua, estava imensa gente das favelas para o ver e ele ficou ali empancado. Francisco encantado, ainda quis sair do carro para falar às pessoas, os seguranças aflitos. Felizmente convenceram-no a não o fazer", lembra Aura Miguel.
Cracóvia, Polónia (27 a 31 de julho de 2016)
O elétrico do Papa
Francisco cumpriu a tradição: ficou instalado na residência do arcebispo de Cracóvia e apareceu à varanda principal do edifício para falar aos jovens – tal como João Paulo II fazia nas suas visitas. Uma novidade foi a forma como o Papa se deslocou desta residência até ao sítio da festa de acolhimento, o Parque Blonia, no centro histórico da cidade: foi de elétrico. O veículo estava "especialmente pintado de amarelo e branco e por cima no letreiro luminoso, onde habitualmente se indica o destino e o número da linha, lia-se TRAM DEL PAPA (Elétrico do Papa)", escreve Aura Miguel no livro Um Longo Caminho até Lisboa.
Cidade do Panamá, Panamá (22 a 27 de janeiro de 2019)
Um anúncio atribulado
É sempre no final de cada JMJ que o Papa anuncia o destino da próxima edição. No fim da missa de encerramento, as expetativas eram altas – Lisboa tinha-se candidatado para acolher as jornadas. Que inicialmente seriam em 2022 mas foram adiadas por causa da Covid19. Mas, quando chegou o tão esperado momento, o Papa nada disse. "O Papa achou que o cardeal Kevin Farrell, prefeito do dicastério do Vaticano que coordena as JMJ no mundo, já tinha anunciado, mas não tinha", conta Aura Miguel. Quando deram conta da gafe, acontece mais uma. "O cardeal aproxima-se do microfone para anunciar a cidade escolhida e engana-se. (…) Em vez do nome da cidade, como sempre acontece, anuncia o nome do país: ‘A próxima Jornada Mundial da Juventude será em Portugal’", escreve Aura Miguel no seu livro. Mas o engano não impediu a explosão de alegria que se seguiu.
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O humor deve ser provocador, desafiar convenções e questionar poderes. É um pilar saudável da liberdade de expressão. Mas quando deixa de ser crítica legítima e se transforma num ataque reiterado e desproporcional, com efeitos concretos e duradouros na vida das pessoas, deixa de ser humor.
O poder não se mede em tanques ou mísseis: mede-se em espírito. A reflexão, com a assinatura do general Zaluzhny, tem uma conclusão tremenda: se a paz falhar, apenas aqueles que aprendem rápido sobreviverão. Nós, europeus aliados da Ucrânia, temos de nos apressar: só com um novo plano de mobilidade militar conseguiríamos responder em tempo eficaz a um cenário de uma confrontação direta com a Rússia.
Até porque os primeiros impulsos enganam. Que o diga o New York Times, obrigado a fazer uma correcção à foto de uma criança subnutrida nos braços da sua mãe. O nome é Mohammed Zakaria al-Mutawaq e, segundo a errata do jornal, nasceu com problemas neurológicos e musculares.