"Se dependesse apenas da direção do Bloco, a narrativa sobre os despedimentos continuaria a ser a de que eles nunca aconteceram", conta esta mulher, que revela que o contrato fictício a prejudicou financeiramente. Revela que o seu silêncio "não pode continuar a ser cúmplice da propagação de mentiras".
Uma das despedidas do Bloco de Esquerda em 2022, precisamente a que tinha sido mãe há menos tempo (o seu filho tinham dois meses), enviou uma carta à direção e aos militantes do Bloco de Esquerda onde expôs tudo o que se passou no seu caso.
Paulo Novais/Lusa
A carta, a que SÁBADO teve também acesso, reforça a veracidade da notícia que originou este caso. É assinada apenas com uma letra 't'. A SÁBADO, embora saiba o nome verdadeiro da autora, opta, como tem feito até aqui, por manter o seu anonimato. Até porque a própria, como diz no final do texto, confessa que o processo tem sido repleto de "muita ansiedade". "Lamento não ter a coragem de as expor [estas palavras] publicamente. Não o faço por consideração a mim mesma e à minha saúde mental."
Esta ex-trabalhadora do partido questiona o real feminismo do partido, expõe como considera ter sido prejudicada financeiramete (desmentindo Mariana Mortágua, que alega que a passagem de um contrato nos quadros para a prazo foi benéfica) e relata a pressão que teve dos dirigentes para assinar o acordo. Questiona ainda os critérios que levaram o partido a escolhê-la para despedimento em detrimento de outros funcionários, homens e sem filhos.
Este é o teor da carta:
Durante os últimos dias, pouco me pronunciei publicamente sobre o meu despedimento, mas o meu silêncio não pode continuar a ser cúmplice da propagação de mentiras ou da omissão de factos que marcaram a minha vida há três anos e que voltei a reviver nos últimos dias.
Se dependesse apenas da direção do Bloco, a narrativa sobre os despedimentos das duas recém-mães no rescaldo das eleições de 2022 continuaria a ser a de que eles nunca aconteceram, segundo o primeiro comunicado enviado a todos os militantes e publicado em todas as redes sociais. Foi graças à coragem da minha colega em tornar público o seu testemunho que houve uma tentativa de reparação de danos, materializada num comunicado assinado por Mariana Mortágua, que ficou muito aquém do expectável para um partido de esquerda trabalhadora e feminista.
1. Sobre o meu despedimento
Quando o meu filho tinha dois meses, o coordenador da equipa de redes comunicou-me, por telefone, que eu não regressaria ao meu posto de trabalho. Não se tratou apenas de um contacto, mas sim da comunicação de um despedimento como facto consumado, ao qual se seguiu um processo de negociação.
Uma semana depois desse telefonema, fui convocada para uma reunião por Zoom com mais dois dirigentes do partido, onde me foi proposto um acordo, dada a impossibilidade legal do despedimento sem o parecer da CITE.
Deram-me dois dias para dar uma resposta. Relembro: o meu filho tinha dois meses. Eu era uma puérpera. Aceitei a proposta porque não tinha qualquer tipo de energia, física ou mental, para enfrentar um aparelho partidário. O meu contrato de comissão de serviço – que é, por si só, juridicamente questionável – não estava associado a nenhum mandato parlamentar e, portanto, não terminava com o fim do mandato.
Mais do que uma questão legal, o meu despedimento levanta questões morais e políticas. É de uma profunda desonestidade usar malabarismos jurídicos para negar o que realmente aconteceu. O acordo que assinei contornou a impossibilidade legal do meu despedimento, mas não invalida ilegitimidade do mesmo, nem o facto de ter sido despedida por telefone quando o meu filho tinha dois meses.
2. Sobre o acordo que me propuseram
O meu contrato de trabalho com o bloco, embora fosse uma comissão de serviço, não estava associado a nenhum mandato e, portanto, era sem termo. O acordo proposto consistiu na troca do meu contrato de trabalho sem termo por um falso contrato de trabalho a termo, datado entre maio e dezembro de 2022. Esse contrato fictício nunca deveria ter sido proposto. A sua existência é, por si só, moral e politicamente questionável, independentemente do seu teor.
Propaga-se interna e publicamente que esta opção, citando o comunicado de Mariana Mortágua, "não prejudicou ninguém e foi vantajosa para as trabalhadoras". Façamos contas. De maio a dezembro são oito meses, aos quais se somam os subsídios de férias e natal.
Se eu fosse despedida legalmente – o que duvido que fosse autorizado pela CITE –, isto seria o que eu receberia:
? 60 dias de aviso prévio (2 meses);
? férias por gozar do ano anterior (duas semanas);
? férias do presente ano (1 mês);
? décimo terceiro e décimo quarto meses do presente ano (2 meses);
? décimo terceiro e décimo quarto meses do ano seguinte (2 meses);
? indemnização correspondente ao tempo que trabalhei no partido, dois anos e meio.
Além disso, este acordo impediu-me de usufruir, por exemplo, da licença de parentalidade alargada, que se poderia estender até julho. Eu amamentei até outubro de 2023 – só a partir desse período seria legal, política e moralmente aceitável ser despedida. A minha colega amamentou até junho de 2024. A "caridade" que a direção do partido alega ter tido para comigo ignora a obrigatoriedade de pagamento dos meus direitos no quadro legal de
despedimento.
3. Sobre os critérios da equipa
Da equipa de redes foram despedidas eu e outra trabalhadora, ambas recém-mães. Ficou uma designer, essencial para a equipa, e outros dois funcionários. Um dos funcionários que ficou tinha sido chamado como reforço aquando a campanha autárquica. A outra funcionária trabalhava no parlamento, ela sim associada a um mandato.
O partido alega que houve uma extinção do meu posto de trabalho, mas aquilo que aconteceu, de facto, foi uma
supressão de várias funções. Quer eu, quer a outra trabalhadora mãe despedida, seríamos totalmente capazes de desempenhar qualquer uma das funções necessárias para a continuidade da equipa.
Consciente ou inconscientemente, foi avaliada a disponibilidade das pessoas para darem continuidade a um trabalho que não seria inferior mas que teria metade dos recursos humanos. É um facto que uma recém-mãe não pode trabalhar 50-60 horas por semana, nem estar 100% disponível a qualquer dia e hora da semana. Por isso é que existem leis que protegem as recém-mães e lactantes, garantindo que o período em que têm de dar mais atenção aos seus bebés não é um obstáculo para que continuem a exercer as funções que sempre fizeram com competência. O bloco sempre defendeu essas leis e é uma profunda desilusão que não as tenha posto em prática connosco. Pode ser lido aqui um artigo que o polígrafo escreveu sobre as várias propostas que o bloco fez para combater o despedimento de mulheres grávidas, puérperas e lactantes.
Seria hipócrita da minha parte não assumir que, na minha opinião, houve critérios menos profissionais que determinaram a escolha dos funcionários que ficaram (questiono se não terão eles assinado novos contratos de trabalho após o nosso despedimento?). Essa é uma reflexão que convido o partido a fazer, não apenas em relação a esta equipa.
4. O que tudo isto é
Seria demasiado simplista analisar o meu despedimento apenas à luz de leis e de contratos. Durante estes dias ouvi e li demasiadas vezes "ninguém gosta de ser despedida".
Eu, contrariamente às pessoas que me despediram, já trabalhei em muitos sítios, já me despediram algumas vezes, já me despedi outras tantas, já tive muitos contratos de trabalho. Nunca quis trabalhar no bloco para sempre e nunca tive como sonho ter uma carreira política.
O bloco faz parte da minha vida desde que tenho 14 anos. Fez parte do meu crescimento enquanto adolescente, jovem e adulta. Todas as pessoas que fizeram parte do processo do meu despedimento são pessoas que conheço há muitos anos, algumas delas que eu considerava amiga e camarada. Nunca recebi uma mensagem pessoal a pedir desculpa ou a saber se estava bem – nem há três anos, nem estes dias de tormenta.
Também seria demasiado simplista pensar no meu despedimento enquanto problema e não enquanto sintoma, desprezando todos os fatores que fizeram com que fosse possível este processo ter sido o que foi e estar a ser o que é.
Pergunto:
1. O bloco é, de facto, um partido feminista? Quantas mães de crianças pequenas há nos lugares de decisão? Quantos homens há por trás de cada decisão comunicada por mulheres? Onde estavam as feministas do bloco há três anos? Onde estão elas agora?
2. O bloco é, de facto, um partido de trabalhadores e trabalhadoras? Onde estão eles e elas nos lugares de decisão política, dentro do partido e nos seus lugares de representatividade?
3. Estará disposto o partido a responsabilizar as pessoas incompetentes que me violentaram, a mim e à minha colega, no processo de despedimento e, consequentemente, nas comunicações que fizeram à imprensa e aos seus militantes
nos últimos dias?
Não acho que seja justo, nem para mim, nem para o bloco, eu continuar a silenciar-me. A esquerda também precisa de autocrítica e de uma reflexão profunda sobre o seu feminismo e a sua relação com os trabalhadores, com as trabalhadoras e com as pessoas que cuidam.
Eu sou uma trabalhadora e uma pessoa que cuida. O que vivi há três anos foi de uma profunda violência emocional. Voltar a revivê-lo agora tem sido ainda pior.
É com muita ansiedade que escrevo estas palavras e lamento não ter a coragem de as expor publicamente. Não o faço por consideração a mim mesma e à minha saúde mental.
Não é por respeito a um partido que não teve e não tem qualquer respeito por mim enquanto trabalhadora, enquanto cuidadora e enquanto camarada.
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"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família".