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Melhor aluno, "brilhante" e a gerar revolta: o médico que faturou 51 mil euros num sábado

Seguiu Medicina depois de uma doença por diagnosticar na adolescência. Em 2016 foi o melhor do seu ano a sair da Faculdade de Medicina de Lisboa. Escolheu dermatologia porque queria uma boa vida. Quem trabalhou com ele descreve-o como "um Dr. House", com uma memória visual ímpar. Os 400 mil euros que recebeu por dez sábados no hospital de Santa Maria não o arrastaram só para um escândalo - puseram no radar o descontrolo financeiro das cirurgias no SNS fora do horário regular.

Miguel Alpalhão nunca tinha sentido "particular fascínio pela Medicina", até lhe ser diagnosticada "na adolescência uma doença que até hoje permanece sem nome". Foi essa doença – que desapareceu como tinha aparecido, sem explicação – que o levou a interessar-se pela área "onde todos os doentes são, de alguma forma, um mistério para o qual a Medicina procura respostas". Assim falou em meados de 2016 o jovem então com 24 anos, num depoimento escrito ao Expresso, quando ganhou o prémio Professor Manuel Machado Macedo por se ter formado com a melhor nota do seu ano na Faculdade de Medicina de Lisboa. Alpalhão, hoje com 33 anos, é apelidado de "brilhante" por quem trabalhou com ele – o facto de ter faturado 400 mil euros por dez sábados de trabalho no hospital de Santa Maria, em Lisboa, pô-lo no centro de um escândalo que ilustra a falta de controlo financeiro da produção médica no SNS fora das horas normais de trabalho.

Alpalhão escolheu a especialidade de Dermatologia por estar entre as que lhe proporcionaria uma vida melhor, conta à SÁBADO um médico que trabalhou com ele – uma vida melhor em termos financeiros e de tempo. O mesmo profissional descreve o dermatologista, que conheceu quando passou como interno (titular de um estágio pago) no seu serviço no Santa Maria, como "um Dr. House", numa referência ao personagem da série fictícia, que tem um trato por vezes menos comum e um talento inato para diagnósticos. 

"Tem uma memória visual sem igual, fez diagnósticos que mais ninguém fez no estágio", conta. Havia médicos mais velhos a colocarem-lhe dúvidas sobre casos mais bicudos, algo invulgar no meio. "Tem uma cabeça brilhante", afirma. Outro médico, ouvido pela SÁBADO, fala de alguém "com muita capacidade", que deu explicações de Física – área que referiu ao Expresso como sendo a sua primeira paixão – enquanto estudava Medicina.

Estava, como tantos outros médicos - cuja formação pós-universitária é patrocinada em grande medida pela indústria farmacêutica - no radar de alguns laboratórios (ao todo recebeu 23.422 euros em seis anos, segundo Portal da Transparência, quase tudo em pago em espécie - viagens a congressos e afins). É professor assistente na faculdade onde se formou, segundo o seu perfil no site da CUF (onde também está listado como clínico no hospital das Descobertas, em Lisboa, e noutro em Torres Vedras). 

Este dermatologista é o mesmo que uma investigação da CNN destacou como tendo recebido cerca de 400 mil euros por procedimentos simples – como a remoção de quistos e sinais benignos na pele – ao longo de dez sábados em regime de produção adicional, ou seja, fora do trabalho regular e pago com valores mais altos. As intervenções foram feitas ao abrigo do Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia, ou SIGIC, um instrumento para a realização de cirurgias fora do horário regular, criado para diminuir as listas de espera – e, de caminho, para pagar mais aos médicos de algumas especialidades no SNS, retendo-os no sistema. 

Cada serviço dos hospitais tem um codificador, ou seja, um médico que introduz os códigos no sistema sobre o tipo de procedimento a realizar, assim como a caracterização clínica do doente – em Dermatologia no Santa Maria o codificador era Miguel Alpalhão. O pagamento de cada ato clínico varia consoante o "nível de severidade" (ou complexidade) do mesmo. Há quatro níveis de severidade e a diferença entre o valor pago pela Administração Central de Saúde ao hospital (que depois distribui uma parte substancial ao médico) por uma intervenção de "nível 1" e uma de "nível 4" chega aos milhares de euros. Um doente com comorbilidades, por exemplo, leva à marcação de um nível de severidade tendencialmente mais alto.

"Tem uma memória visual sem igual, no estágio fez diagnósticos que mais ninguém conseguiu fazer", conta um médico que trabalhou com ele.

Os cinco médicos e profissionais ouvidos pela SÁBADO coincidem ao dizer que há um limite na codificação, tipicamente no "nível 2" – acima disso, é necessária uma autorização superior (à semelhança do que acontece num privado com um pedido a uma seguradora). Não é claro quem teria de autorizar, nem como é que o dermatologista em causa conseguiu faturar 51 mil euros por um só dia de trabalho. A SÁBADO sabe que o médico tinha uma relação próxima com o diretor do serviço, Paulo Filipe. Após a divulgação da reportagem, a administração do Santa Maria e a Inspeção Geral das Atividades em Saúde anunciaram que vão fazer auditorias. Há a suspeita de fraude.

O pagamento de valores muito altos por procedimentos médicos simples – não só por este dermatologista – já tinha sido identificado há mais de nove meses por médicos de cirurgia geral, que fizeram queixa ao diretor de serviço, apurou a SÁBADO. A revelação do caso de Miguel Alpalhão, mais grave do que os detetados antes pelos colegas, está a gerar desconforto e insatisfação aberta de vários médicos que fazem cirurgias mais complexas – incluindo transplantes e remoção de carcinomas – por valores radicalmente mais baixos.

"Não é possível que uma cirurgia de cinco horas pague cerca de 900 euros e haja depois médicos a ganharem mais de três mil euros por tirarem um sinal", desabafa um profissional do Santa Maria.

"Não é possível que uma cirurgia de cinco horas, com risco e complexidade altos, pague cerca de 900 euros e haja depois médicos a ganharem mais de três mil euros por tirarem um sinal", desabafa um profissional do Santa Maria. A assimetria de valores pagos entre médicos de especialidades diferentes no mesmo hospital – e, até, dentro da mesma especialidade – é um veneno que dificulta a gestão laboral do Santa Maria e de outros hospitais do SNS com este problema.

Dermatologia não é caso único

O caso de Miguel Alpalhão pode ser particular na magnitude dos valores envolvidos, mas as pessoas ouvidas pela SÁBADO referem que há outros hospitais públicos – e mais especialidades médicas, além da dermatologia – em que os incentivos financeiros ao abrigo do SIGIC, para operar fora do horário regular de trabalho, não têm controlo. 

"Há oftalmologistas a fazerem dezenas de intervenções simples às cataratas aos sábados e aos domingos, que ganham dezenas de milhares de euros", conta um gestor com conhecimento dos problemas do sistema. Ortopedia, outra especialidade cirúrgica bem paga e com saída para o setor privado, é também um exemplo. O problema base com o SIGIC, explica este gestor, está desde logo na falta de controlo sobre "o que é a produção no horário normal de trabalho". "Há médicos a criarem listas de espera artificiais para poderem operar em SIGIC", critica. O ex-ministro da Saúde Adalberto Campos Fernandes, num comentário na CNN, falou de "um bar aberto" nesta vertente no SNS. 

Alexandre Lourenço, que administra a ULS de Coimbra, defende que o modelo SIGIC tem vantagens e que a chave está no controlo. "É um regime positivo que tem permitido a redução dos tempos de espera, melhorado o acesso à cirurgia", afirma à SÁBADO.

A sua perspetiva é de que o sistema como um todo acaba por ganhar pagando mais fora do horário normal de trabalho do que entregando um vale ao doente para ser operado num hospital privado. O controlo do que é produção adicional em SIGIC é crucial. "Somos os que fazemos mais cirurgias em Coimbra e aqui cerca de 20% da produção é adicional", explica. "Temos a noção de que controlamos bem a adicional", junta.

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