"Cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou", declarou.
A escritora Lídia Jorge alertou hoje contra a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra "a fúria revisionista que assalta pelos extremos", num discurso em que condenou o racismo, a escravatura e a cultura da mediocridade.
JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA
Lídia Jorge, conselheira de Estado, falava enquanto presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho, em Lagos, num discurso que antecedeu o do chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa.
Na sua intervenção, com cerca de 30 minutos, citou Shakespeare, Camões e Cervantes, "três autores que perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência".
"O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, se sinta como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas", indicou.
Depois, numa crítica ao racismo, a escritora referiu que em pleno século XVII cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana -- "população que os portugueses tinham trazido arrastados".
"O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou", declarou.
Neste contexto, a conselheira de Estado criticou "a fúria revisionista que assalta pelos extremos nos dias de hoje um pouco por toda a parte", um revisionismo que coloca em causa "os fundamentos institucionais científicos, éticos e políticos".
"O princípio da exemplaridade - essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre dignos - está a ser subvertido pela cultura digital. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende", apontou
Numa alusão ao Presidente norte-americano, referiu que "o chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, disse adoro-vos, adoro os pouco instruídos".
"E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto pois qual é o conceito hoje em dia de ser humano, como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais", completou.
No seu discurso, Lídia Jorge realçou a importância das "terras do infante", entre Lagos e Sagres, na História de Portugal, salientou a atualidade de Camões, mas não fugiu à polémica sobre a escravatura como "remorso" da epopeia dos Descobrimentos.
"Sagres passou para a História e para a mitologia como lugar simbólico de uma estratégia que mudaria o mundo. Mas existe uma outra perspetiva - e hoje em dia o discurso público que prevalece é sem dúvida sobre o pecado dos descobrimentos e não sobre a dimensão da sua grandeza transformadora. Lagos oferece às populações atuais, a par do lado mágico dos Descobrimentos, também a imagem do seu lado trágico", considerou.
De acordo com a conselheira de Estado, "Lagos expõe a memória desse remorso" e "mostra esse passado ao mundo para que nunca mais se repita".
"Lagos, a cidade dos sonhos do Infante D. Henrique, de que Sagres é metáfora passados todos estes séculos, promove a consciência sobre o que somos capazes de fazer uns aos outros", acentuou a presidente das Comemorações do 10 de Junho de 2025.
A partir deste ponto relativo à escravatura, Lídia Jorge falou sobre a realidade atual dos migrantes.
"A cena nossa contemporânea passa-se no mar, num navio enorme com armas defensivas, quando um tripulante avista ao longe uma barca frágil, rasa, carregada de imigrantes", disse.
Na parte inicial do seu discurso, Lídia Jorge destacou a atualidade de Camões, considerando "reconfortante saber que os professores deste país o continuam a ler às crianças, o que mostra que os portugueses continuam vivamente enamorados pelo seu poeta maior".
"Ao regressarmos a todos esses versos escritos há quase 500 anos, encontramos coincidências que nos ajudam a compreender os tempos duros que atravessamos. Camões, tal como nós, conheceu uma época de transição, assistiu ao fim de um ciclo", acrescentou.
Lídia Jorge, romancista e contista, nasceu no Algarve, em 18 de junho de 1946, em Boliqueime, no concelho de Loulé. Autora de livros como "A Costa dos Murmúrios" e "O Vento Assobiando nas Gruas", recebeu recentemente vários prémios pelo seu romance "Misericórdia". Marcelo Rebelo de Sousa nomeou-a conselheira de Estado em 2021, no início do seu segundo e último mandato.
Lídia Jorge alerta contra loucos no poder e fúria revisionista
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