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Irmã e cunhado de Leitão Amaro foram contratados pela Santa Casa

Ministro diz à SÁBADO que não sabia de nada. Adjudicação de €101 mil foi anulada por motivos ainda pouco claros. Processo começou antes de Leitão Amaro tomar posse e decorreu e terminou na altura em que o Governo demitiu a provedora.

No final de abril de 2024, quando o Governo tinha acabado de demitir a provedora da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) e o ministro da Presidência, António Leitão Amaro, erauma das vozes mais contundentesna censura da gestão de Ana Jorge, a irmã e o cunhado do mesmo ministro estavam envolvidos num processo de rescisão de mais de 100 mil euros com a própria Santa Casa através de uma empresa de que eram sócios.

O caso tem alguns aspetos inusitados e ainda pouco claros.

A começar pela publicação no portal Base da adjudicação feita à empresa Hipóteses Épicas, que tem como dois dos seus sócios Inês Leitão Amaro Protásio (30%) e João Protásio (40%). Trata-se da irmã e do cunhado do ministro da Presidência. Este cunhado de António Leitão Amaro é médico ortopedista e iria prestar serviços à instituição nessa área, mas o contrato não foi feito em seu nome, mas através da empresa Hipóteses Épicas.

O contrato foi assinado a 27 de maio e rescindido no dia seguinte, a 28. Inicialmente para uma prestação de serviços de €101.400 e 1.095 dias (três anos), durou apenas um dia e foram pagos €3.300. Como é que um contrato desta envergadura é assinado e rescindido em 24 horas?

A SCML, em resposta enviada à SÁBADO, explicou em primeiro lugar que estas datas que estão no contrato e no Base estão desfasadas face ao que realmente aconteceu: "O contrato em causa reporta à situação de um prestador de serviços médicos [João Protásio] que iniciou a sua atividade na área da saúde da Santa Casa no dia 4 de março de 2024, mas que, devido a atrasos processuais, só foi possível formalizar o contrato a 27 maio, estando previstos os efeitos retroativos, altura em que já se tinha constatado que o perfil da pessoa em causa não era o mais adequado para as funções. Neste sentido, por acordo entre as partes, procedeu-se à cessação do contrato de prestação de serviços, sendo pagos os valores referentes à atividade de ambulatório e cirúrgica entre o dia 4 de março e 27 de maio no montante indicado [€3.300]."

Numa segunda ronda de perguntas, questionámos a SCML o que significou neste caso não estar "adequado para as funções". Resposta: "Verificou-se um desajustamento entre o número de cirurgias realizadas pelo médico em causa no âmbito da sua especialidade (pé), e aquelas que eram efetivamente necessárias e expectáveis."

E quais os fundamentos de escolha deste médico em particular? "Era especialista do pé e vinha colmatar uma necessidade do Hospital", respondeu apenas a SCML.

Se o procedimento era a contração de um médico, por que não foi contratado o próprio diretamente, tendo sido feito através de uma sociedade por quotas, a Hipóteses Épicas? Respondeu a instituição que "é muito comum os médicos especialistas/cirurgiões serem contratados ao regime da prestação de serviços ou através de empresas".

Depois, em que datas a SCML comunicou ao médico a intenção de rescisão do contrato? A instituição respondeu ao lado: "Houve um acordo entre as partes para a cessação do contrato de prestação de serviços."

Contactada novamente para indicar em que data foi decidida a rescisão do contrato – um pormenor importante para construir a fita do tempo e perceber se foi antes ou depois da demissão de Ana Jorge, a 29 de abril –, respondeu a SCML: "Importa clarificar que não houve qualquer comunicação de intenção de rescisão, tendo havido, sim, e como já referido anteriormente, um entendimento de acordo mútuo entre as partes para a cessação do contrato de prestação de serviços que foi formalizado a 28/05/2024."

A SCML diz que "a rescisão do contrato se deveu única e exclusivamente às razões explicadas", negando que a relação familiar dos acionistas da empresa com o ministro da Presidência tenha tido alguma influência.

O ministro, via resposta do seu gabinete, disse à SÁBADO que desconhecia que a empresa da sua irmã e cunhado tinha recebido este contrato e que soube de tudo pela nossa revista.

Horas depois, o gabinete do ministro informou a SÁBADO do que apurou: "A adjudicação, a contratação oral e o início da prestação de serviços ocorreu em fevereiro de 2024". Disse ainda que "o primeiro serviço prestado [por João Protásio na Santa Casa] foi no dia 21 de fevereiro". A Santa Casa, recorde-se (ver resposta acima), disse-nos que foi duas semanas mais tarde, a 4 de março.

O gabinete do ministro, noutra parte da resposta, reforça que a data de 27 de maio "é a data de redução a escrito de um contrato oral, cuja execução de serviços foi anterior". É outro dado novo apurado pelo gabinete do ministro - havia uma intenção de prestação de serviços sem contrato.

"A redução a escrito foi pedida pela SCML para dar suporte ao pagamento dos serviços efetivamente prestados", diz o gabinete do ministro, que em poucas horas terá recolhido este e outros dados junto da Santa Casa, como se pode ver nesta adenda: "Para confirmar que a adjudicação ocorreu em fevereiro, e que a prestação de serviços se iniciou em fevereiro (e se concretizou maioritariamente até março), pode ser exibida ao jornalista uma cópia do registo de presenças/controlo de assiduidade do hospital".

João Protásio respondeu-nos por escrito através do email da referida empresa: "Exerci atividade médica no Hospital de Sant'Ana na sequência de uma manifestação de interesse por parte da equipa clínica de Ortopedia daquele Hospital em contar com os meus serviços, em janeiro de 2024. Desempenhei funções entre fevereiro e maio de 2024 tendo feito cerca de 66 horas de trabalho naquela instituição. Os termos do contrato foram definidos pela SCML."

Contactada pela SÁBADO, Ana Jorge disse-nos que o nome do médico não lhe era estranho, mas que desconhecia os contornos do caso. "Não fazia a mínima ideia". Referiu-nos que normalmente estas contratações "são propostas feitas pelo hospital" da SCML e que também é normal "os médicos não queiram os contratos em nome individual, mas através das suas empresas, por causa dos impostos". 

Em resumo, e apenas com base no que foi respondido, João Protásio e a Santa Casa iniciaram a relação profissional em fevereiro, o médico começou a prestar o serviço a 4 de março (ou em fevereiro, como refere o médico e o gabinete do ministro), a 10 de março houve eleições, a 2 de abril o novo Governo tomou posse, a 29 de abril a provedora da SCML foi despedida, algures por esta altura (antes ou depois, não é claro) a SCML e o médico acordaram o fim da prestação de serviços, o médico continuou a exercer mais umas semanas e no final de maio assinou-se e rescindiu-se o contrato em 24 horas, através da empresa do cunhado e da irmã do ministro.

Recorde-se que uma das medidas iniciais do governo de Luís Montenegro foi a demissão de Ana Jorge da provedoria da SCML, que ocupava há menos de um ano. Na praça pública trocaram-se acusações, com o Governo a falar em "atuações gravemente negligentes". Ana Jorge falou numa ação "rude, sobranceira e caluniosa".

Leitão Amaro, que no Governo não tem a tutela direta da SCML, disse na altura que não houve saneamento político (recorde-se que Ana Jorge é uma antiga ministra do PS) e defendia que os portugueses "não perdoariam" uma inação do Governo face ao que considerava ser uma "degradação" da instituição. Lembrou ainda que a direção exonerada estava em funções há cerca de um ano sem que fosse conhecido um "plano de reestruturação" ou "medidas decisivas para inverter a situação de degradação financeira na Santa Casa".

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