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O risco maior de conflito de interesse na empresa dos Montenegro? Não é o imobiliário

Bruno Faria Lopes 19 de fevereiro de 2025 às 07:00

A possibilidade de atuar na compra e venda de casas e terrenos é só uma pequena parte do objeto empresarial de uma consultora cuja atuação é praticamente ilimitada – e que abre uma porta financeira, de escrutínio impossível, para potencial acesso ao primeiro-ministro, notam três analistas. Encerrar a empresa sanaria esta vulnerabilidade institucional.

A atenção política à volta da empresa Spinumviva, fundada por Luís Montenegro em 2021 e passada para a sua mulher e filhos, tem-se focado na eventual relação com negócios imobiliários e a Lei dos Solos. O maior problema de potencial conflito de interesses, contudo, não incide sobre o imobiliário, notam três analistas ouvidos pela SÁBADO. A possibilidade de atuar na compra e venda de casas e terrenos é só uma pequena parte do objeto empresarial de uma consultora cuja atuação é praticamente ilimitada – e que abre uma porta financeira, de escrutínio impossível, para potencial acesso ao primeiro-ministro.   

António Pedro Santos/LUSA

O objeto social da empresa que vem listado em primeiro lugar é "outras atividades de consultoria para os negócios e a gestão". "Dá para fazer tudo e mais alguma coisa para os clientes que quiserem, aos preços que quiserem, sem ser possível escrutinar", aponta João Paulo Batalha, vice-presidente da Frente Cívica, uma associação de defesa de causas de interesse público. "A questão da lei dos solos tem a utilidade de mostrar a relação direta potencial entre uma política pública e eventuais novas oportunidades de negócio para a empresa que tem o imobiliário no seu objeto social, mas há um risco maior numa consultora de largo espectro", acrescenta. 

A opinião é partilhada por Susana Coroado, politóloga da Dublin City University e ex-presidente da Transparência e Integridade, e por Luís de Sousa, investigador principal no Instituto de Ciências Sociais em Lisboa. A vulnerabilidade identificada é potencial, ou seja, o facto de existir não significa que se tenha materializado ou que se vá materializar – é, isso sim, um ponto fraco na arquitetura de prevenção de riscos e conflitos de interesse no topo do Governo.

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As pessoas ouvidas pela SÁBADO dão um exemplo de como se pode materializar esse risco: um privado com interesses na esfera pública (um contrato que deseja, um licenciamento que quer desbloquear, etc.) contrata de forma generosa um serviço à empresa da família do primeiro-ministro. "Alguém pode subornar um político através da sua empresa, ainda por cima uma empresa de consultoria onde cabe tudo – é tudo legal porque o privado pode dizer ‘eu contratei’", explica Susana Coroado. O serviço pode ser prestado ou não – o escrutínio é impossível – e a compra de influência é legalizada através de um contrato (que pode ser protegido por confidencialidade).

Outro exemplo possível inerente a uma consultora: a mulher ou os filhos poderiam dar a entender a um cliente da consultora que conseguiam uma reunião com o primeiro-ministro ou com alguém do governo, ou que conseguiriam pedir ao primeiro-ministro para desbloquear um processo ou dar conhecimento antecipado de uma alteração na regulação de uma atividade económica.

A definição de conflito de interesses da OCDE, um think tank de economias desenvolvidas, aponta que este "envolve um conflito entre o dever público e os interesses privados de um oficial público, no qual este tem interesses privados que podem influenciar de forma imprópria o desempenho das suas funções e responsabilidades". O conflito, lê-se no guia de recomendações da OCDE, "pode envolver atividade legítima privada, ligações pessoais e interesses de família", desde que sejam "considerados razoavelmente" como fontes "prováveis" de influência imprópria sobre o titular do cargo público.  

O Código de Conduta aprovado pelo atual Governo, em abril do ano passado, também usa a palavra "razoabilidade", mas aperta mais o crivo. "Considera-se que existe conflito de interesses quando os membros do Governo, ou os membros dos gabinetes, se encontrem numa situação em virtude da qual se possa, com razoabilidade, duvidar seriamente da imparcialidade da sua conduta ou decisão, nos termos dos artigos 69.º e 73.º do Código do Procedimento Administrativo".

O artigo 69º aponta impedimentos na tomada de decisão direta em atos que colidam com o interesse do cônjuge ou filhos. Um problema, no caso do primeiro-ministro, passa por saber quem avalia a existência de um conflito de interesses. "No caso do secretário de Estado [Hernâni Dias] foi o primeiro-ministro que tomou a decisão, mas no dele não há essa figura", observa Susana Coroado.

Os três especialistas admitem que o regime de incompatibilidades não pode ser de tal forma apertado que acabe por funcionar como uma barreira ao já difícil recrutamento para funções públicas. O problema neste caso, contudo, não está no facto de os familiares do primeiro-ministro terem por si só um negócio – "a mulher podia ter uma farmácia", exemplifica Coroado, ou outra empresa maior que gerisse; os filhos podiam ter fundado um negócio, com ou sem o pai como sócio inicial, que estariam agora efetivamente a gerir.

O problema está na amplitude dada pela consultoria – um mundo tipicamente opaco e de atuação 360º – e na forma como Montenegro está ligado à empresa. Luís Montenegro saiu dos órgãos sociais em setembro de 2022, três meses depois de ter subido a líder do PSD, e passou as quotas da empresa um mês depois de ter assumido o cargo de primeiro-ministro, segundo indicou ao Correio da Manhã (CM). Ao CM, o primeiro-ministro deu como exemplo um serviço de apoio na área da proteção de dados prestado pela Spinumviva à Cofina, o anterior proprietário do jornal e da SÁBADO, ilustrando a sua atuação junto a privados – e garantiu, mesmo não sendo formalmente sócio nem gestor da Spinumviva, que a empresa não fará negócios na área imobiliária. 

"Ele formalmente não tem autoridade para dar essa garantia", comenta Batalha, a menos que na substância esteja ligado à gestão da empresa que tem a sede na sua própria casa. Os gestores e sócios são a mulher de Montenegro (que tem formação em Ciências da Educação) e os filhos que, segundo o jornal digital "Página Um", têm 20 e 23 anos – a empresa teve lucros de 345 mil euros nos três anos entre 2021 e 2023 (as contas de 2024 ainda não são conhecidas).

Os analistas ouvidos pela SÁBADO notam que, além dos esclarecimentos a prestar (sobre que tipo de clientes e atividades tem tido a empresa), o curso de ação mais apropriado para resolver a vulnerabilidade criada pela consultora é pedir à família que encerre o negócio que o atual primeiro-ministro criou há quatro anos – e que, além de servir para faturar serviços de consultoria, também serve para gerir o património imobiliário, rural, deixado em herança.

"A obrigação de resolver a situação que dá origem ao conflito de interesses, e que esta no código de conduta do Governo, não é cumprida dizendo apenas ‘não se preocupem que conheço os donos da empresa e eles não vão fazer negócios imobiliários’", nota João Paulo Batalha. Uma opção menos eficaz – mas mitigadora de riscos, admite Batalha – é a restrição do objeto da empresa, eliminado a consultoria e o imobiliário. Essa ausência no objeto social não impede, contudo, que esses serviços sejam prestados pontualmente.

Uma dimensão adicional do conflito de interesses, tratada também no guia da OCDE, é da aparência de conflito de interesses - uma questão importante numa altura de desconfiança aberta sobre a classe política. Em "O que pensam os portugueses sobre corrupção: percepções-atitudes-práticas", o relatório do projeto do ICS coordenado por Luís de Sousa e Pedro Magalhães, o cenário de consultoria política é dos que pontua mais alto no inquérito à população sobre riscos de corrupção.   

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