Sábado – Pense por si

Rui Maciel
Rui Maciel Economista
25 de março de 2024 às 07:31

Como fazer política sem estar num partido político?

A política manifesta-se das mais demasiadas formas nas nossas vidas, quer, por exemplo, na maneira como tratamos quem nos serve à mesa ou até na maneira como nos vestimos.

Neste texto pretendo desmistificar uma ideia frequentemente defendida pela minha geração: é preciso estar num partido político para se ser politicamente ativo. Em tempos de alta politização, muitos jovens sentem-se desprovidos de instrumentos para intervir politicamente. Este sentimento deve-se ao descontentamento demonstrado quando se fala de juventudes partidárias vistas, com ou sem razão, como as incubadoras de todos os maus vícios da política.

A política manifesta-se das mais demasiadas formas nas nossas vidas, quer, por exemplo, na maneira como tratamos quem nos serve à mesa ou até na maneira como nos vestimos. Neste parágrafo quero mencionar outro. Um exemplo de ativismo político em Portugal é deixarmos de tratar por Senhor Doutor quem não é doutor. Questiono: por que devemos tratar todos por "Senhor Doutor" quando essas pessoas são nossos iguais? Por que insistimos numa prática que reflete uma sociedade excessivamente hierarquizada, que é especialmente crítica no mercado laboral português. Valorizam-se mais os títulos e o tratamento do que o mérito e o trabalho das pessoas. Além de ser improdutivo pela criação de barreiras de comunicação desnecessárias entre equipas de trabalho, é só mais um sintoma de uma sociedade retrógrada, que atrasa o desenvolvimento de relações pessoais, e que hierarquiza o valor e dignidade humana em função da sua posição social.

Outro exemplo individual, derivado de uma conversa com a minha colega de podcast. Descobri que ela usa mais o género feminino neutro quando dá exemplos em textos para desafiar o padrão predominante do masculino no português, porque a predominância do género masculino na linguagem é reflexo de uma sociedade onde as mulheres historicamente não tinham representação nos demais campos da sociedade.

É curioso que quando iniciamos a nossa socialização na escola, por exemplo, sejamos encorajados desde cedo a focarmo-nos nas classificações individuais, algo extraordinariamente político. O desporto é provavelmente uma das poucas atividades onde somos encorajados a um sentimento coletivo. Os desportos de equipa são, neste momento, dos únicos exemplos societários no qual o interesse do indivíduo é posto em causa pelo interesse da equipa. Basta pensar quando estamos a ver um jogo de futebol e criticamos aquele jogador "guloso" que não passa a bola a ninguém. Porque não é assim até ao nível educativo, no qual valorizamos um "bom" aluno, que tira as melhores notas, mesmo que essa pessoa seja de mau trato e não partilhe por exemplo apontamentos com os seus colegas?

A nível comunitário quero falar da quantidade de associações e de iniciativas que valorizam a participação jovem na sociedade. Um exemplo é a associação "Último Recurso", que desempenha um papel fundamental no ativismo climático em Portugal. Outro caso é o da "Praça do Luxemburgo", recentemente galardoada com o Prémio Europeu Carlos Magno para a Juventude, que traz o debate europeu para as praças portuguesas. A associação "A Próxima Geração" ambiciona criar uma escola política não partidária para capacitar os jovens portugueses a serem mais ativos. A Cooperativa Rizoma, situada em Lisboa, opera como uma mercearia de bairro com o objetivo de formar "uma comunidade que satisfaz necessidades básicas de consumo de maneira económica, ecológica e socialmente justa." Ademais, há em

Portugal o clube do livro feminista "Heróides", onde "analisamos as obras sob uma perspetiva feminista", demonstrando como o próprio ato da leitura é político.

Por fim, quero dizer que quando uma pessoa acorda para política, ela pode ser extraordinariamente desgastante. Temos a nossa vida e, muitas vezes, dispensar do nosso bemestar para fazer um ato político é difícil. Seja quando vemos alguém a desrespeitar um empregado de mesa (que infelizmente já vi demasiadas vezes), ou até quando andamos na rua e vemos alguém a atirar lixo para o chão, e ficamos irritados pela falta de sentimento comunitário. Mas com isto, quero dizer-vos, a política pode ser difícil, mas quando bem feita, é a coisa mais bonita do mundo e nascem coisas tão bonitas como o 25 de abril, que te deu a liberdade para criticares este texto e para eu escrever estas coisas.

Recomendações:

Praticamente de Sam the Kid.

Entrevista de Carlos Vaz Marques a Sam the Kidque deu origem ao sample "Até quando Sam se vai chamar The Kid?"

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