Sábado – Pense por si

João Paulo Batalha
João Paulo Batalha
30 de outubro de 2025 às 07:38

O banco que foi roubado duas vezes

O Novo Banco só podia acabar assim: com o Estado a sair por uma porta e a PJ a entrar por outra.

Chegaram, fizeram os discursos, assinaram os papéis e puseram-se rapidamente na alheta antes que algum jornalista lhes fizesse perguntas embaraçosas. A cerimónia, ontem, de venda da posição do Estado no Novo Banco trouxe um simbolismo apropriado ao historial da casa: ao mesmo tempo que, no salão nobre do Ministério das Finanças, Miranda Sarmento fechava o negócio com os franceses do BPCE, a Polícia Judiciária mobilizava mais de 100 inspetores na sede do banco e em dezenas de outros alvos por todo o país, a investigar suspeitas de corrupção, burla qualificada e branqueamento de capitais. 

Em causa, desta vez, estão negócios feitos já no tempo da gestão do Novo Banco pelo fundo abutre Lone Star, que agora vendeu o que restava do BES, embolsando lucros chorudos na operação. A suspeita é de que ativos do Novo Banco foram vendidos a preço de saldo a compradores relacionados com a própria Lone Star, com prejuízo para o banco. Prejuízo que depois foi cobrado aos contribuintes, através do Fundo de Resolução. Ricardo Salgado já tinha demonstrado que a melhor forma de assaltar um banco é sendo o seu dono. Os cobóis do Texas que ficaram com o “banco bom” com o favor do Estado vieram para o segundo assalto. 

Não foi azar. Este tipo de abuso estava praticamente inscrito no contrato de venda do “banco bom” que resultou da “resolução” do BES. A linguagem dos resgates bancários está cheia de eufemismos mas, para falar bem e depressa, a venda do Novo Banco à Lone Star foi, desde o início, uma licença para roubar. O banco, que já tinha sido capitalizado pelo Estado em 4,9 mil milhões de euros, era a parte boa – os ativos sólidos e apetecíveis – do Banco Espírito Santo. Os ativos tóxicos ficaram no BES em liquidação, um osso de 11 mil milhões de euros que os contribuintes continuam a mastigar. O Novo Banco foi entregue em 2017 à Lone Star, que comprou 75% por mil milhões de euros, entrados como capital – ou seja, ficaram no banco comprado, não no Estado vendedor.  

Mas o negócio vinha com uma cláusula de salvaguarda: caso os ativos do Novo Banco não fossem assim tão virtuosos, e acabassem vendidos abaixo do valor pelo qual estavam contabilizados, a Lone Star podia compensar a quebra dos seus rácios de capital servindo-se de um “mecanismo de capital contingente” (mais um eufemismo) que lhe permitia ir buscar até 3,89 mil milhões de euros ao Fundo de Resolução. Ou seja, por mil milhões de euros, que entraram como pelo do cão comprado, os cobóis do Texas compraram o direito de se servirem de quase 4 mil milhões. Acabaram por praticamente esgotar o cartão de crédito do contribuinte, cobrando 3,4 mil milhões ao Fundo de Resolução, que agora demorará uns 20 anos a pagar ao Estado o dinheiro que deu à Lone Star.  

O que está agora em investigação é a suspeita de que os cobóis do Texas e os seus capatazes na gestão do Novo Banco escolheram os melhores ativos, venderam-nos a si próprios ou a entidades relacionadas a preço de saldo, e nem tiveram de engolir o prejuízo nas contas do banco, porque o Fundo de Resolução cobriu o buraco. Sobre responsabilidades criminais logo se verá o que diz o Ministério Público e o que, daqui a muitos anos, sentenciarão os tribunais – se lá chegarmos. Entretanto, os gestores do Novo Banco vão embolsar mais de mil milhões de euros em prémios, só com a venda aos franceses do BPCE. 

A saga do BES, prolongada no Novo Banco (com tantos vícios do velho), é um caso de estudo do capitalismo de compadrio que capturou o Estado e depreda os recursos públicos. O ministro das Finanças festejou ontem os 1,6 mil milhões de euros que cabem ao tesouro público pela venda do Novo Banco – uma gota de água nos prejuízos que engolimos com toda esta operação. O Estado sai pela porta pequena, com a PJ a bater à porta grande. Seja com as velhas boas famílias nacionais ou com abutres estrangeiros, a história do banco que foi roubado duas vezes é o retrato de um país demasiado servil à cupidez dos salteadores. 

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