Sábado – Pense por si

Jovens e suicídio: “São um grupo de risco justamente por terem pouca noção do risco”

Capa da Sábado Edição 30 de setembro a 6 de outubro
Leia a revista
Em versão ePaper
Ler agora
Edição de 30 de setembro a 6 de outubro
As mais lidas

É verdade que são mais propensos ao sofrimento e por isso especialmente vulneráveis, alerta a psicóloga Melanie Tavares. É preciso pais e escolas estarem atentos e não porem tudo "no saco da adolescência".

Duas mortes de adolescentes da mesma turma, separadas por poucos meses, no Agrupamento de Escolas de Castro Daire, instalou o receio de que pudesse existir um pacto entre os alunos - até porque, alegadamente, mais três casos chegaram a admitir que teriam a mesma ideia de se suicidarem. A psicóloga clínica Melanie Tavares, que trabalha no Instituto de Apoio à Criança, levanta a hipótese de que a justificação possa ser outra. "Segundo as informações que recolhi, o primeiro jovem que morreu consumia drogas pesadas. E o segundo acho que também. Portanto, como aquilo era um grupo muito coerente, penso não houve pacto nenhum, os que ficaram devem ter sentido um enorme sofrimento de terem perdido as suas referências - os amigos", diz à SÁBADO.

Na adolescência, 'há muitas coisas a acontecer que o jovem ainda não tem maturidade para saber gerir', diz Melanie Tavares
Na adolescência, "há muitas coisas a acontecer que o jovem ainda não tem maturidade para saber gerir", diz Melanie Tavares Bruno Colaço / Correio da Manhã

A especialista, coordenadora da mediação escolar do Instituto de Apoio à Criança, explica que nesta fase os amigos são mais importantes do que pai ou a mãe, e "talvez eles tenham achado que se calhar aquela era a única saída". A própria morte poderá ter sido acidental, fruto de um delírio provocado pelas drogas consumidas. Independentemente destes casos, importa estar atento aos adolescentes porque é verdade que "eles têm uma propensão maior ao sofrimento emocional", alerta. 

Deixa também uma informação importante: no Instituto de Apoio à Criança há uma linha de apoio a jovens e crianças até aos 18 anos "gratuita anónima e confidencial". O número é o 116111. "Onde eles podem participar, falar sobre tudo e sobre nada, onde têm espaço para falar com profissionais (psicólogos) e para pedir ajuda, para não se chegar a esse limite de sofrimento", sublinha.

Porque é que os adolescentes são especialmente vulneráveis?

É conhecido que a adolescência é uma fase muito conturbada, onde existem muitos conflitos internos, busca de identidade, onde os pares são uma maior referência do que os pais e muitas vezes há alguma dificuldade em encontrar um lugar na sociedade, no contexto dos amigos, ou dos pares. Para além disso, surgem imensas dúvidas acerca do futuro, o que é que querem fazer, para onde vão, quais serão as melhores decisões. Eles têm de tomar decisões com idades muito prematuras, escolher áreas, e pensar num curso superior enquanto profissão.

Portanto, às vezes, surgem maiores inseguranças e mais dificuldade em gerir tudo aquilo que são as dúvidas e as próprias etapas da adolescência – que também implica as primeiras saídas e as questões afetivas no sentido romântico. Às vezes, é muito difícil encontrar um caminho e, portanto, eles têm uma propensão maior ao sofrimento emocional. Daí que acabem por preferir o sofrimento físico.

Como assim?

Antes até da ideação suicida, antes do próprio suicídio, há muitíssimos casos de comportamentos autolesivos. Que, na grande maioria, não têm propriamente a intenção do suicídio, mas têm várias funções. Uma delas é aliviar a dor da alma, porque a dor do corpo é tão insuportável que acaba por mascarar aquela dor emocional. Depois, também são gritos de chamada de atenção, porque os adultos andam muito distraídos na sua vida, os pais têm pouco tempo para a parentalidade e muitos deles demitem-se dessa função. E as escolas estão muito formatadas para o saber fazer e pouco para o saber ser e para o saber estar.

Devíamos ter um reforço nas equipas, nas escolas, que não só fossem só professores, que houvesse mais técnicos de diversas áreas, obviamente psicólogos, mas animadores e assistentes sociais, que pudessem constituir uma rede de apoio a estes jovens. No Instituto de Apoio à Criança coordeno um projeto de mediação escolar que apoia as equipas multidisciplinares dos gabinetes de apoio ao aluno e à família – exatamente para esse trabalho de prevenção de situações de risco.

Esta maior propensão ao sofrimento também tem a ver com o crescimento?

Sim, o aparelho psíquico ainda não está desenvolvido o suficiente, só por volta dos 20 ou 22 anos é que podemos dizer que o aparelho psíquico está maturado. Portanto, há muitas coisas a acontecer que o jovem ainda não tem maturidade para saber gerir. Daí serem precisas mais estruturas de apoio, nomeadamente, a família. Estar atento, haver comunicação, estar disponível para o jovem, para acolher as suas dúvidas, não no sentido crítico, porque às vezes os pais têm um papel muito crítico na educação, não no sentido de culpabilizar, mas de compreender. E isso também não está a acontecer.

E voltando aos comportamentos autolesivos é importante referir que muitas vezes o suicídio acaba por acontecer porque algo correu mal, não era essa a intenção – poderia estar ali ao nível de uma chamada de atenção ou de uma purga da dor emocional, mas que depois corre mal.

Ou seja, muitos dos casos não são intencionais, não há uma coisa planeada?

É pensada e planeada, mas não para morrer. Se estivermos a falar de um corte no pulso, é uma coisa; se estivermos a falar de uma corda pendurada, é outra. Aí há intencionalidade perfeitamente evidente. Quando falamos em comportamentos autolesivos, como os cortes, muitas vezes a intenção não é morrer, mas a coisa acaba por sair mal. Mesmo com os consumos, por exemplo, de comprimidos, nem sempre é para morrer, é mais uma chamada de atenção.

Há diferença entre géneros, quem é mais propenso?

Elas tentam mais vezes. Mas eles são mais eficazes. Eu acho que a intencionalidade deles é mais definida. As miúdas são mais teatrais e dramáticas, eles são mais literais em tudo.

Há mesmo aqui um efeito de contágio nos jovens?

Neles há o efeito de contágio em tudo, eles imitam-se todos uns aos outros, exatamente porque uns são as referências de outros – daí a importância dos pares. Há esse risco acrescido nos jovens porque eles tendem a imitar os comportamentos dos outros com que se identificam.

Os jogos ou desafios lançados nas redes sociais também são muito apelativos.

É uma coisa que os desafia e eles não querem dar parte fraca. Portanto, se o outro consegue, se o outro faz, eu sou capaz de o superar. E depois a coisa corre mal. Porque há coisa importante: eles são um grupo de risco exatamente por terem pouca noção de risco. É verdade, eles têm pouca noção de risco, têm pouca noção de antecipar aquilo que pode correr mal. Para eles, o mais importante é aparecer, ser uma referência para os outros, ser o herói daquela situação, desafiar as regras e limites. E não ponderam o risco que está associado a determinados comportamentos e decisões.

Quem está mais vulnerável?

Os jovens que têm fragilidades nomeadamente de autoestima, que têm pouca estrutura social, poucos amigos, dificuldade em integrar-se. Depois, outra coisa importantíssima é a família. É muito importante que, nesta fase da adolescência, a família tenha aqui uma presença, que não tem de ser sempre física, mas ter uma resposta ativa, estar atento a alterações no comportamento do jovem, tentar gerar uma relação de confiança – e essa relação só se consegue com empatia ao sofrimento dos jovens.

Os pais e os adultos em geral tendem muito a desvalorizar a queixa. Por exemplo, nas escolas, os miúdos que são vítimas de bullying queixam-se e os adultos a primeira coisa que dizem é: “Não quero cá queixinhas.” Não valorizam os factos e aquilo que é o discurso da criança ou do jovem. Portanto, que eles se sintam compreendidos, podem ser coisas que não têm muito sentido mas na cabeça deles tem, e nós temos de aprender a securizá-los, a desmontar.

E se não formos capazes sozinhos procuremos ajuda profissional. Os pais não têm manual de instruções para os filhos e, às vezes, procurar um especialista é imprescindível. E não é de todo um sinal de incapacidade parental – antes pelo contrário, é de coragem e de perceber que há coisas de que já não somos capazes e há quem esteja capacitado para o fazer.

Quais são os sinais de alerta a que os pais e as escolas devem estar atentos?

Primeiro, não podemos pôr tudo no saco da adolescência. Se ele se isola no quarto, se não quer falar, não é por aí. É óbvio que são características, mas nós temos de conhecer os nossos filhos. De repente não sai do quarto, de repente não podemos entrar no quarto. Percebemos que passa o dia inteiro numa única tarefa que normalmente é jogar online. Dizem que têm amigos, mas nós nunca os conhecemos. Não existem amigos físicos, são todos virtuais, não há momentos sociais fora da escola. Há uma resistência a frequentar a escola. De repente, há um baixo rendimento escolar. Usam roupas desapropriadas à estação do ano. Por exemplo, nesta altura do ano andarem com sweatshirts de manga comprida, será para esconder alguma coisa, uma marca de comportamentos autolesivos?

Melanie Tavares do Instituto de Apoio à Criança alerta para o sofrimento dos jovens
É muito importante que a família tenha uma presença, que não tem de ser sempre física, estar atenta a alterações no comportamento do jovem, gerar uma relação de confiança – e isso só se consegue com empatia com o sofrimento deles Melanie Tavares

Ou seja, coisas que fogem ao padrão.

É tudo o que foge ao padrão, exatamente. E é importante que se perceba que eles precisam de estar uns com os outros. E que se eles só se isolam, alguma coisa não está bem. Ou é porque não se integram, ou é porque não são integrados, ou é porque não se identificam e isso causa sofrimento. Portanto, esse sofrimento vai-se manifestar de alguma maneira. Atenção que isto é um crescendo, ninguém acorda um dia a pensar dirigido para a ação. Há aqui um historial e alguém, no meio do caminho, não esteve suficientemente desperto para isso.

Quais são os sinais dessa escalada?

Quando há indicação de comportamentos autolesivos, esse é o sinal máximo de alerta. Aliás, nessa altura eu mando logo para a Psiquiatria, ainda que mantenha o apoio psicológico. Nunca descurando a medicação que é fundamental numa primeira fase para controlar a ideação suicida, não é só conversar. Às vezes, é preciso mais do que ajuda psicológica nesses casos e é importante que os pais também estejam permeáveis – alguns pais são muito renitentes à medicação psiquiátrica, mas se o filho for diabético também é para a vida toda. Às vezes é importante restabelecer os níveis hormonais e os dos neurotransmissores para garantir que o risco diminui.

E qual deve ser o papel da escola?

É ter equipas disponíveis para estar com os miúdos fora do contexto de sala de aula, fora do contexto formal. E é isso que a mediação escolar operacionaliza através dos gabinetes de apoio ao aluno e à família. São técnicos que fazem acompanhamentos individuais, mas que estão muito com eles nos contextos informais, nomeadamente do recreio. E são pessoas que não têm outras funções na escola, portanto, têm uma maior relação de proximidade e estão muito mais disponíveis.

Para além disso, nesses gabinetes também se atendem as famílias de forma mais informal. Porque, normalmente, a escola só chama os pais para falar de notas e quando os resultados são maus ou o comportamento é mau. Mas há coisas que ultrapassam as questões académicas. Nunca, como bem diz o professor Daniel Sampaio, se pode intervencionar um jovem sem o inserir no contexto família. Às vezes, há sinais que a escola percebe primeiro, mas depois contextualizando por aquilo que se observa em casa, acaba por adquirir outro significado.Tentar perceber como é que estão a gerir o dia-a-dia, o que fazem, o que pensam. E quem tem a tal escuta ativa vai conseguir perceber que apesar de o adolescente viver numa “Batcaverna”, há coisas que não são normais. Esconder-se a falar ao telefone, falar sempre em privado, por exemplo.

Panorama

Perto das pessoas e das comunidades

Os municípios portugueses têm tido um papel fulcral na promoção da saúde, do bem-estar e da inclusão. E é justamente neste âmbito que se destaca o contributo que a psicologia como ciência e profissão pode dar no cumprimento e na otimização dessa missão.