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No submundo das raves: "Éramos uma alternativa a Ibiza"

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Festas de arromba de música eletrónica ganharam expressão em castelos, a partir dos anos 90. Quem recuperou os registos e viveu esses tempos conta à SÁBADO como era. O documentário Paraíso mostra mais, em exibição dia 27 (amanhã) na discoteca Lux e com estreia nas salas de cinema a 9 de outubro.

Rave quer dizer delírio, em festas clandestinas ou semi-clandestinas. A expressão inglesa começou a ganhar forma em Portugal numa altura em que a ditadura acabara há pouco mais de uma década e a adesão à Comunidade Económica Europeia (CEE) era ainda recente. Com Cavaco Silva aos comandos do Governo, o País sentia-se próspero na segunda metade dos anos 80. À noite, Lisboa fervilhava com as discotecas, sobretudo de rock, mas havia quem saísse da norma sonora. Inspirada no Studio 54, de Nova Iorque, a discoteca Alcântara-Mar abria as portas em 1987, na Rua da Cozinha Económica, e seria a antecâmara para a cultura rave. A pista só fechava ao nascer do sol, dando a conhecer o acid house e o techno, importados do Reino Unido e de Detroit (EUA), respetivamente.

O documentário Paraíso é um olhar sobre a cultura rave em Portugal nos anos 80 e 90, alternativa a Ibiza
O documentário Paraíso é um olhar sobre a cultura rave em Portugal nos anos 80 e 90, alternativa a Ibiza D.R.

De copo na mão e óculos escuros, os frequentadores dançavam sozinhos, como que hipnotizados pelas batidas. Em cima das colunas ou nos balcões dos bares de decoração barroca, os bailarinos animavam ainda mais as hostes (Vítor Machado e Manuel Potes, Alcântara Dancers). Calçavam botas plataforma, vestiam roupas coladas ao corpo e espetavam os cabelos (numa expressão artística e vaga reminiscência do punk). "Comecei no Alcântara-Mar de 11 para 12 de fevereiro de 1992. Nunca me esquecerei: era o dia de aniversário do meu irmão e entrava na tropa", recorda à SÁBADO DJ Vibe (António Pereira), 58 anos acabados de fazer e um dos muitos participantes de Paraíso.

O documentário do cineasta Daniel Mota, produzido por João Ervedosa e Maria Guedes, recorda este e outros espaços míticos do movimento de contracultura, com códigos e fauna próprios finalmente decifrados para o grande público. Depois exibido no festival Indie Lisboa (em maio), o filme à base de entrevistas, de quase hora e meia, será apresentado na discoteca Lux no próximo sábado (dia 27), às 22h30, antes de chegar às salas de cinema a 9 de outubro. A festa revivalista segue com DJ Vibe e Rob Di Stefano, à meia-noite, e pelas 2h ganha reforços com os Alcântara Dancers.

Celebração do passado

João Ervedosa (38 anos) e Maria Guedes (37 anos) não viveram esses tempos, mas gostariam de ter lá estado. O filme tem esse efeito, de certa nostalgia, de um ambiente semi-secreto que alguns viveram em pleno. Mas João Ervedosa assegura à SÁBADO: "Não somos saudosistas. Éramos uma alternativa a Ibiza, porque aqui ainda era algo novo, enquanto Ibiza já atraía turistas do mundo inteiro. Depois de mais de 30 anos, esse fator novidade já não existe. Para nós faz mais sentido falar em celebração do passado, do presente que continuamos a viver e do futuro que ainda está por vir."

O acesso a imagens e arquivos foi difícil, pelas imagens perdidas em sótãos e caves. Não havia telemóveis, fotograva-se e filmava-se pouco, o que havia estava guardado em cassetes de VHS de má qualidade.  "O que fez com que o filme tenha estado dez anos em produção. Uma das coisas que nos diziam muitas vezes era que as pessoas se vestiam de forma especial", acrescenta Maria Guedes. 

A animação era fora de horas
Os produtores do documentário, João Ervedosa e Maria Guedes
DJ Vibe (António Pereira) recorda o momento da internacionalização com So Get Up (1994)
O ambiente de uma das raves
Bailarina numa discoteca de música de dança
A Dj residente do Lux, Yen Sung, dá o testemunho na discoteca (onde será exibido o documentário)
O realizador de Paraíso, Daniel Mota
O Dj Alex Fx (Alexandre Fernandes) algures entre 1993 e 1995, no espaço Cais 447
A animação era fora de horas
Os produtores do documentário, João Ervedosa e Maria Guedes
DJ Vibe (António Pereira) recorda o momento da internacionalização com So Get Up (1994)
O ambiente de uma das raves
Bailarina numa discoteca de música de dança
A Dj residente do Lux, Yen Sung, dá o testemunho na discoteca (onde será exibido o documentário)
O realizador de Paraíso, Daniel Mota
O Dj Alex Fx (Alexandre Fernandes) algures entre 1993 e 1995, no espaço Cais 447

O interesse de ambos pelo tema já vinha de trás, mas foi na Rádio Quântica que se materializou num programa em que conversavam com os pioneiros da música de dança portuguesa. "Rapidamente percebemos que a rádio não era o melhor meio para contar esta história, porque havia uma parte visual que começámos a descobrir através desses convidados", contam. Aí nasceu a ideia de fazerem um documentário e convidaram Daniel Mota para filmar e realizar, sem terem noção da dimensão que o projeto tomaria. O arquivo do fotógrafo Da Fonseca tornou-se uma peça importante do puzzle, reconhecem: "É difícil de abordar porque existe pouca informação disponível, e talvez por isso não existam mais trabalhos do género. Esperamos que no futuro existam mais!".

Daniel Mota conhecia a dupla pelo programa de rádio, a sua relação com o movimento era pouca. Tem 34 anos. "Sendo que, curiosamente, os primeiros pequenos trabalhos que tive na vida como realizador/videógrafo foram pequenos vídeos promocionais para várias discotecas da zona Norte do Pais", lembra o realizador. 

Locais de filmagem

Com muitas paragens pelo meio, a produção independente (financiada pelos próprios) passou por várias etapas tecnológicas nos bastidores. "Atravessámos cinco câmaras diferentes, oito microfones diferentes, etc. A única coisa que sabíamos desde o inicio era que queríamos criar este formato de entrevista, onde o entrevistado está a falar com outro entrevistado, provocando uma 'conversa entre amigos' guiada por nós", explica Daniel Mota. Não raras as vezes, havia entrevistas com mais de três horas e "cheias de incoerências" e então veio a "magia" de Henrique Brazão na fase de montagem. Juntou-se à equipa e com "paciência e precisão" conseguiu produzir uma linha narrativa coerente, segundo o realizador.

A única coisa que sabíamos desde o início era que queríamos criar este formato de entrevista, onde o entrevistado está a falar com outro entrevistado
Daniel Mota, realizador do documentário Paraíso

Os locais de filmagem foram sempre sugeridos pelos entrevistados. Por exemplo, Yen Sung falou no Lux (onde é DJ residente); o Dj Luís Leite num restaurante em frente ao antigo Alcântara-Mar; Dj Jiggy e A. Paul junto ao Teatro da Lanterna Mágica (onde começaram os afters do X-Club). Houve também entrevistas em ambientes mais íntimos, como o DJ Vibe no estúdio. Grande parte das conversas decorreram na discoteca Planeta Manas, que fechou em julho último. O DJ norte-americano Danny Tenaglia deu um curto depoimento depois de atuar, ao nascer do sol, às 7h, num camarim do Hard Club (Porto).

Primeira rave num convento

O título Paraíso evoca o fenómeno nacional, vivido à margem da pop, quando Rob Di Stefano disse em tempos: "Underground house from a paradIse called Portugal" (um submundo num paraíso chamado Portugal). Dançava-se em castelos, fumava-se à vontade, consumiam-se drogas sintéticas (ecstasy). O dito delírio ou "raven partiers" (dizia José Rodrigues dos Santos no noticiário da RTP) ganhava mais adeptos entre muralhas.

A primeira rave, ou das primeiras – é dificil a exatidão pela falta de registos, à época não havia telemóveis –, aconteceu no Convento de São Francisco, em Coimbra, no sábado de 13 de fevereiro 1993. A Rave On começava às 23h e era organizada por António Cunha, que no ano anterior abrira a editora Kaos. Tratava-se da primeira chancela dedicada a este estilo de música, com uma estrutura empresarial "bem definida", segundo DJ Vibe: "Funcionando como uma verdadeira empresa, com uma equipa interna de seis a sete pessoas, cada uma com a sua função e departamento: financeiro, marketing/comunicação, A&R (artistas e repertório) e eventos."

Ravers a caminho de uma festa num castelo
Flyer a anunciar a Rave On, no Convento de São Francisco, em Coimbra (1993)
Notícia de época sobre a rave no Castelo de Santa Maria da Feira
Ravers a caminho de uma festa num castelo
Flyer a anunciar a Rave On, no Convento de São Francisco, em Coimbra (1993)
Notícia de época sobre a rave no Castelo de Santa Maria da Feira

Depois da Rave On vieram mais: no Castelo de Santa Maria da Feira (a 13 de agosto de 1994), entre as 22h e as 10h da manhã. Contava com "30 mil watts de som e 100 mil watts de luz (...) animadores e performances de fogo, um video wall e realidade virtual", noticiava a imprensa da época. A abertura da pista fazia-se com os portugueses The Ozone, mas o regresso a casa dos mesmos ficou marcado pela tragédia. Um dos elementos do duo, Eduardo Melo, morria aos 21 anos na sequência de um acidente. A carrinha capotava, algures entre Aveiras e o Carregado.

O caminho fazia-se de forma pioneira, inocentemente. "É um espírito muito português, do bora fazer. De certo modo, este é o grande contexto socioeconómico. Mantido na obscuridade da ditadura durante 48 anos, Portugal emerge como uma sociedade relativamente inocente. Mas com um espírito muitas vezes inquebrável. O que nem sempre é positivo", enquadra à SÁBADO o realizador Daniel Mota. Por negativo, o cineasta considera os "brandos costumes", a tal resiliência que faz com que "muitas vezes o povo não reclame convincentemente e de forma aberta coisas que são seu pleno direito." 

Dificuldade em "exportar grandes nomes" 

O Dj Alex Fx (Alexandre Fernandes) viveu o boom do lado dos samplers, teria então 17 ou 18 anos, quando os computadores escasseavam e a sincronização fazia-se em modo MIDI. "Era uma forma muito mais introspetiva e de tentativa/erro que era usada para se fazer música. Eu já tinha alguma experiência, porque tinha começado a trabalhar com essas tecnologias nos anos 80 e o facto de ser multi-instrumentista ajudava imenso em termos de composição e arranjos", conta à SÁBADO.

Na altura, 98% da música era em formato de vinil, enquanto Alex Fx mostrava novas sonoridades na discoteca Amnésia, na praia de Francelos em Vila Nova de Gaia (demolida em 2003). "Vinham pessoas de Inglaterra de propósito (público). Eu era tão inocente que julgava que eram turistas. Era tudo menos um wild boy. Nunca vi aquilo como trampolim do que quer que fosse. Estava a fazer o que realmente gostava e era pago miseravelmente. Mas isso era o extra", recorda.

O facto de sermos um povo que gosta de receber, faz com que ainda hoje tenhamos um défice de exportar grandes nomes
DJ Alex Fx (Alexandre fernandes)

Para lá, o Dj Alex Fx deslocava-se de comboio e regressava a casa de boleia ou táxi. "Como não tinha carro e não gostava de incomodar ninguém, apenas ia aos clubes que estavam mais próximos do Porto ou quando ia tocar (ao vivo) em algumas festas e me arranjavam boleia para poder levar os quilos e quilos de material." 

Olhando em perspetiva, Alex Fx considera que foi uma "jornada tremenda", mas pecou pelo "espírito de subserviência que veio  incutido de muitas gerações." Esta forma de ser e de estar reflectiu-se na música de dança, acrescenta: "O facto de sermos um povo que gosta de receber faz com que ainda hoje tenhamos um défice de exportar grandes nomes lá para fora e continuar a querer que venham cá os grandes nomes."

Se há momento de viragem para fora chama-se So Get Up (1994), protagonizado por Dj Vibe e Rui da Silva com voz de Ithaka Darin Pappas. "Foi o catalisador que permitiu à música eletrónica portuguesa ganhar reconhecimento internacional. O disco não só foi tocado nos EUA, como também na Europa", conta Dj Vibe.

Foi o catalisador que permitiu à música eletrónica portuguesa ganhar reconhecimento internacional
Dj Vibe (António Pereira) sobre So Get Up

So Get Up apareceu em artigos internacionais sobre a música, como os publicados na Billboard Magazine e incluído em charts DJ de revistas, ou seja, listas das músicas que os DJ's tocavam na altura, equivalentes às atuais playlists do Spotify. Para Dj Vibe, o futuro deste tipo de música continiua a ser promissor, ainda que noutros moldes: "Onde a cena eletrónica é credível e integrada na própria cultura, sendo reconhecida pelo governo e pela sociedade, e não marginalizada, como exemplo em França, na Alemanha, Inglaterra ou nos EUA." Depois, há os destinos de sempre, como Ibiza, remata: "Uma instituição e onde continuam abrir clubbings."

Reconhecer Abismo

"From the River to the Sea", desde o rio até ao mar é tudo deles, resumidamente, a convulsão de delírio consiste em varrer com Israel, a única democracia da região, única.