Sábado – Pense por si

Mariana Esteves
Mariana Esteves Economista
22 de janeiro de 2024 às 08:43

Habitação: "Ai aguenta, aguenta!"

A renda mediana dos novos contratos de arrendamento em Lisboa atingiu 15,79€/m2 no 3º trimestre de 2023 (INE). Ora, se consideramos uma casa de 60m2 (um luxo, eu sei), a renda corresponde a quase 950€.

O pacote de medidas do governo para dar resposta à crise na habitação, oMais Habitação, entra em vigor já no próximo mês. Para percebermos em que estado estas medidas encontram o país, vejamos o estado atual da habitação em Portugal. Para quem sente a crise na pele, já sabe o que aí vem, mas que este retrato sirva para que ninguém se esqueça da verdadeira gravidade da situação.

Com base nos dados do INE, sabemos que, entre o segundo semestre de 2017 e o primeiro de 2023, o valor mediano das rendas em Portugal aumentou mais de 56%. Só nos últimos 6 meses, o aumento foi de 5%. Segundo o IHRU, em 2022, o valor mediano das rendas de novos contratos era superior ao rendimento médio líquido da população empregada por conta de outrem em 28,3 pontos percentuais. Para percebermos o que esta diferença entre rendimento e rendas representa, olhemos para Lisboa, onde se concentra grande parte das oportunidades de emprego e onde muitos estudantes vêm para o ensino superior. A renda mediana dos novos contratos de arrendamento em Lisboa atingiu 15,79€/m2 no 3º trimestre de 2023 (INE). Ora, se consideramos uma casa de 60m2 (um luxo, eu sei), a renda corresponde a quase 950€. Para um agregado de duas pessoas (porque viver sozinho é outro luxo), cada uma com um salário médio português (1.143,4€), isto implica uma taxa de esforço de 41.5%. Com o aumento de 6.94% previsto pela inflação, a renda passa a 1.010€ e a taxa de esforço atinge os 44%. Claro que, quando estas contas não são feitas em casal, a situação é ainda mais grave.

Comprar casa também não é uma opção para a grande maioria. Em Lisboa ou no Porto, comprar implica uma poupança de 20 a 30 mil euros e está fora do alcance de 80% da população, como mostrou, no ano passado, o estudo da Fundação Francisco Manuel dos Santos, coordenado pelo economista Paulo Rodrigues.

Mas, pelo menos, acabaram os regimes de Residente Não Habitual (RNH) e Nómadas Digitais que contribuíam para a inflação dos preços na habitação, não é? Mais ou menos. Até ao final de 2024, mantém-se tudo igual: Portugal vai continuar a receber mais RHN, que continuam a beneficiar de uma taxa única e reduzida de IRS (10% para pensões e 20% para rendimentos de trabalho). Um RNH que adquira o estatuto este ano usufruirá do benefício fiscal até 2034, prolongando por mais uma década um regime injusto que, só em 2022, representou uma despesa fiscal de 1,36 mil milhões de euros, segundo o Tribunal de Contas.

À saga da falta de habitação acessível junta-se a saga da falta de habitação digna. A pobreza energética no país é uma das mais elevadas na União Europeia (UE), com 20,8% da população sem capacidade de manter a casa adequadamente aquecida (um aumento de 3,3 pontos percentuais em relação a 2022), segundo o INE. Agravando ainda mais a situação, dados do Eurostat, mostram que 25,2% dos portugueses vivem em casas com infiltrações e humidade, a segunda maior taxa da UE, superada apenas pelo Chipre (39,1%).

No final de 2023, o estudo "Pobreza Energética em Portugal: uma análise municipal", coordenado pela economista Susana Peralta, mostrou-nos que a pobreza energética é maior entre nas pessoas que arrendam casa, especialmente para quem tem apoios ou renda condicionada. Para agravar esta realidade, quase 40% dos inquilinos vivem em edifícios que precisam de reparações. Isto demonstra uma dupla falha da resposta pública: chega a poucos e, quando chega, é sem condições dignas.  Para responder a esta crise, foi apresentada no início deste mês a "Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética 2023-2050". Como o nome diz, "longo prazo", e, por isso, a correr bem, teremos de esperar até 2050 para que dentro de casa esteja menos frio do que lá fora.

Como um eco do passado, a filosofia do "Ai aguenta, aguenta!" ressurge diante da crise habitacional em Portugal. A luta pelo direito à habitação não aguenta mais e retorna às ruas em todo país dia 27 de janeiro. Apareçam!

Ouvir:
A carregar o podcast ...
Mais crónicas do autor
29 de julho de 2024 às 08:35

Armas de destruição matemática ou como a Inteligência Artificial pode matar

Se queremos deixar de ter armas de destruição matemática e passar a ter instrumentos de salvação da humanidade, está na hora de perceber o poder da ciência de dados e da inteligência artificial e não deixar o feitiço virar-se contra o feiticeiro.

22 de julho de 2024 às 07:09

O movimento popular contra o Alojamento Local

Em Portugal, a habitação é a terceira maior preocupação, depois do aumento do custo de vida e da saúde, segundo o Eurobarómetro.

15 de julho de 2024 às 12:00

A economia, estúpido!

Ao longo do tempo que vou estudando economia e acompanhando a vida pública, cada vez mais concluo que o bem-estar económico e material da população determina vivamente os resultados eleitorais.

08 de julho de 2024 às 07:15

Como taxar os ricos

Segundo o Relatório sobre a Evasão Fiscal Global 2024, os países da União Europeia são os que mais perdem com o desvio de dinheiro para paraísos fiscais. Aproveitando a concorrência fiscal entre países, esta é uma forma relativamente simples e rápida de atrair capital estrangeiro e aumentar a receita fiscal de um país.

01 de julho de 2024 às 07:33

O PCJC (Processo de Corrosão da Justiça em Curso)

A violação do segredo de justiça alimenta uma constante mediatização, que leva a julgamentos populares e ao sentimento que "na política são todos uns gatunos". Pior que este sentimento é a sua normal e perigosa conclusão "de que o era preciso era alguém que limpasse isto tudo".

Mostrar mais crónicas

As 10 lições de Zaluzhny (I)

O poder não se mede em tanques ou mísseis: mede-se em espírito. A reflexão, com a assinatura do general Zaluzhny, tem uma conclusão tremenda: se a paz falhar, apenas aqueles que aprendem rápido sobreviverão. Nós, europeus aliados da Ucrânia, temos de nos apressar: só com um novo plano de mobilidade militar conseguiríamos responder em tempo eficaz a um cenário de uma confrontação direta com a Rússia.

Cuidados intensivos

Loucuras de Verão

Até porque os primeiros impulsos enganam. Que o diga o New York Times, obrigado a fazer uma correcção à foto de uma criança subnutrida nos braços da sua mãe. O nome é Mohammed Zakaria al-Mutawaq e, segundo a errata do jornal, nasceu com problemas neurológicos e musculares.