Peixe, fine dining, discos de vinil e sustentabilidade: a receita do Pesca
O restaurante que Diogo Noronha abriu no Príncipe Real, em Lisboa, tem agora dois menus de degustação. Ao GPS, o chef serviu o menu Maré antes de explicar a filosofia que tem comandado a sua vida e o seu trabalho
Na restauração, a "sustentabilidade" pode por vezes parecer um chavão, uma tendência ou algo que nos seria explicado por um empregado de mesa no início da refeição - "o nosso conceito é..." -, mas não para Diogo Noronha, ochefde 38 anos, brilhante na orelha e braços tatuados, que abriu o Pesca no fim de Setembro no Príncipe Real, em Lisboa, e que acaba de apresentar dois menus de degustação dedicados - tal como a carta normal - às boas coisas que o mar nos dá.
"Não é um conceito", diz Diogo, que parece esconder alguma irritação pela hipótese de o seu interlocutor (nós, portanto) duvidar da sua sinceridade em relação ao seu novo restaurante, o quarto em Lisboa depois de ter aberto o Rio Maravilha, na Lx Factory, a Casa de Pasto, no Cais do Sodré, e antes desses o Pedro e o Lobo, entre o Rato e o Príncipe Real - onde hoje mora o K.O.B. by Olivier.
Markus Almeida
"A minha maneira de estar como cozinheiro e como pessoa sempre foi nesse sentido [o da sustentabilidade]. Não é uma novidade na minha vida", diz, revelando que o seu percurso de cozinheiro começou - e manteve-se "durante 10 anos" - pela cozinha vegan, macrobiótica e vegetariana: "Estudei na Natural Gourmet Institute for Health and Culinary Arts", em Nova Iorque, que é uma escola pioneira no macrobiótico, no tema do local, do produto de proximidade, da sazonalidade e de uma opção de construção do menu mais à volta de vegetais e de proteína que não é animal."
Terminados os estudos, Diogo trabalhou em restaurantes vegan e de alta gastronomia nos Estados Unidos (no Per Se, de Thomas Keller, com três estrelas Michelin) e em Barcelona (no Moo, com consultoria dos irmãos Roca, do El Celler de Can Roca, e no Alkimia, de Jordi Villà, ambos com uma estrela) até há oito anos, quando regressou.
O Pesca, enquanto ideia, surgiu em 2016. Foi o ano em que Rui Sanches, o CEO do grupo Multifood - responsável por uma série de projectos de restauração bem sucedidos em Lisboa, da pizzaria ZeroZero e da cadeia de hambúrgueres Honora-to ao Alma, o restaurante estrelado de Henrique Sá Pessoa - o desafiou para abraçar um novo projecto, afastando-o do Grupo Mainside, com quem trabalhava desde 2013.
"Tenho aqui alguns projectos que quero desenvolver e acho que és a pessoa certa para os desenvolver comigo", conta Diogo, citando a forma como foi convidado. Como sempre gostou muito de trabalhar peixe - de todas as secções da cozinha foi aquela em que, "enquanto cozinheiro, não chef", mais gostou de estar -, o convite de "criar um restaurante com uma abordagem sustentável e subordinado em exclusivo ao peixe, com uma cozinha mais criativa e de autor", revelou-se um desafio irrecusável para Diogo Noronha.
O peixe, a maré, a maresia e os cocktails
A fachada do Pesca é discreta e estreita. Quem caminhe distraído pela R. da Escola Politécnica, facilmente passa à frente da pequena porta do Pesca sem se dar conta do que ali mora. A começar, logo na entrada, há um bar que funciona de forma independente. Estamos no território dobarmanFernão Gonçalves, mas nem precisaríamos de ter entrado para pedir um negroni salgado envelhecido com funcho do mar (€12), pois perpendicular ao balcão, virada para a rua, uma janela promete entupir o passeio quando os dias aquecerem - e já faltou mais. As ideias de sustentabilidade e desperdício zero não escapam ao bar, onde as palhinhas de plástico (proibidas) deram lugar a umas de madeira.
Foi, pois, de negroni na mão - mas sem palhinha - que percorremos o corredor, fizemos uma tangente à cozinha aberta e chegámos à sala de jantar nas traseiras, com mesas e cadeiras feitas de sobras de madeira de um prédio que esteve em obras na vizinhança.
A escolha do menu a ser degustado recaiu sobre o Maré - custa €80, contempla oito momentos e é o mais completo da casa. O outro, o Maresia, custa €50 e dá direito a amuse-bouche, entrada, prato, pré-sobremesa e sobremesa.
O jantar começou como mandam as regras: com um limpa palato a abrir caminho para as entradas (três: ostra panada, tártaro de lula e gambas da costa algarvia com beringela e azeitona) e os pratos principais (dois: peixe-espada preto com nori e salmonete braseado).
Entre os pratos, Vagner Costa, ochefde sala, vai perguntando se queremos mais pão. A resposta era sempre a mesma: "Sim, por favor, mais pão de fermentação natural feito no restaurante e mais daquela manteiga dos Açores polvilhada com alface do mar." O uso do pão é só um exemplo da ideologia do Pesca: as sobras são aproveitadas para fazer as migas que servem de base ao prato de salmonete braseado e que Diogo Noronha descontrói.
"Sinto que este é o momento de afirmar um restaurante que pretende ser sustentável, mas isto é um caminho - na verdade é impossível abrir as portas e dizer que somos 100% susten- táveis", diz, apontando de seguida a hotelaria e a restauração como os "grandes contribuintes para o desequilíbrio do planeta".
O segredo para percorrer o caminho está em "encontrar os parceiros certos", que partilhem a visão e que queiram trabalhar de forma consciente: "É um desafio." A Fat Tuna - exemplifica - é uma empresa de Cascais que vende peixe português pescado à linha e que é morto através de uma descarga na espinha. "Não só é uma forma muito mais humana e rápida de matar o peixe, como a própria qualidade fica muito diferente."
Navegação de longo curso
Quanto à eventualidade de a chuva de estrelas Michelin pingar para os seus lados, Diogo mostra-se pouco preocupado, provavelmente por saber que existem factores fora do seu controlo, como os critérios nebulosos dos inspectores do Guia. "Um restaurante [premiado pelo Guia] com estas características, de ambiente mais descontraído, existe em Paris, Londres ou Barcelona", conta, por contraste com Lisboa, onde por norma as estrelas vão parar a restaurantes de hotéis e restaurantes luxuosos, como o Feitoria ou o Belcanto.
"Estou a desenvolver o projecto num grupo com provas dadas e para tentar atingir esse tipo de objectivos não podia estar mais confortável do que estou neste momento", reconhece. Enquanto fala, o gira-discos roda um álbum de funk dos anos 70. A música sempre foi importante para Diogo, que admite ter uma grande colecção de discos, que todos os meses aumenta. "É aqui que passo a maior parte do meu tempo, não faria sentido que o restaurante não tivesse música. As playlists tanto são compilações com coisas upbeat como mais calmas." E nas calmas é, de facto, como Diogo se sente em relação ao Pesca.
Pesca
R. da Escola Politécnica, 27, Lisboa
3.ª a dom., 12h-15h e 19h-24h || Menu Maresia: €50 (€80 com harmonização de vinhos); menu Maré: €80 (€125 com vinhos)