Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
18 de agosto de 2025 às 07:00

A Chave Esquecida

A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.

No Tribunal de Família e Menores de Lisboa, o segurança Marco encontrou uma chave no balcão logo após uma audiência particularmente tensa. Era uma chave dourada, com uma etiqueta onde se lia "Casa da Boa Vista" numa caligrafia cuidada. A audiência tinha envolvido um casal de idade, Rosa e Joaquim Pereira, numa disputa sobre a venda da casa de família. 

Marco guardou a chave na gaveta dos objetos perdidos, mas não conseguiu parar de pensar nela. A "Casa da Boa Vista" era mencionada constantemente durante a audiência - a casa onde tinham vivido quarenta e três anos, onde criaram três filhos, onde construíram uma vida que agora se desfazia entre papéis de divórcio. 

Na semana seguinte, Rosa voltou ao tribunal para uma conferência de pais sobre o neto. Marco aproximou-se dela durante uma pausa. 

"Desculpe, D. Rosa. Encontrei isto após a sua audiência da semana passada." Mostrou-lhe a chave. 

Rosa olhou para a chave e os olhos encheram-se de lágrimas. 

"Nem sabia que a tinha perdido," murmurou. "É a chave do portão dos fundos. A única que nunca mudámos em todos estes anos." 

"Ainda mora na casa?" 

"Não. Mudei-me para um apartamento na semana passada. O Joaquim fica com a casa até a vendermos. Se conseguirmos vender," acrescentou com amargura. 

Marco hesitou, depois perguntou: "Posso perguntar-lhe uma coisa? Porque é que se está a divorciar após quarenta e três anos?" 

Rosa sorriu tristemente. "Porque durante quarenta e três anos nunca aprendemos a falar um com o outro, apenas a viver em paralelo. E quando os filhos saíram de casa, descobrimos que éramos dois estranhos partilhando o mesmo endereço." 

Duas horas depois, quando Joaquim chegou para a mesma conferência, Marco fez-lhe a mesma pergunta sobre a chave. 

"A chave dos fundos? Uso-a todos os dias. Entro sempre por ali porque... bem, porque a Rosa costumava esperá-lo sentada na cozinha que dá para esse lado da casa. Força do hábito." 

"Ainda espera?" 

Joaquim ficou calado por um longo momento. "Não. Agora a cozinha está sempre às escuras." 

A conferência correu mal. Rosa e Joaquim discutiram sobre quem levava o neto ao futebol, sobre as despesas da escola, sobre tudo exceto o que realmente importava. Quando saíram, Marco tomou uma decisão impulsiva. 

"Sr. Joaquim, D. Rosa," chamou-os no corredor. "Tenho uma sugestão estranha. Sei que não é da minha conta, mas... que tal se fossem os dois à casa buscar as últimas coisas da D. Rosa? Juntos. Só desta vez." 

"Para quê?" perguntou Joaquim. 

"Para se despedirem da casa. Os dois. Depois de quarenta e três anos, a casa merece uma despedida como deve ser." 

Rosa olhou para a chave na sua mão. "Não sei se é boa ideia." 

"Uma hora," insistiu Marco. "Que mal pode fazer?" 

No sábado seguinte, Rosa tocou à campainha da sua própria casa pela primeira vez em duas semanas. Joaquim abriu a porta, mas ela mostrou-lhe a chave dos fundos. 

"Podemos entrar como fazíamos antes?" 

Caminharam juntos até ao portão dos fundos. A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas. 

"Lembras-te," disse Rosa, "da primeira vez que usámos esta chave? O chaveiro disse-nos que era a última cópia, que devíamos guardá-la bem." 

"E tu disseste que era a chave da felicidade, porque era a entrada secreta para casa." 

"Éramos tão novos." 

"E tão estúpidos," acrescentou Joaquim com uma risada triste. 

Passaram a hora seguinte a percorrer a casa, recordando histórias esquecidas. O quarto onde o filho mais novo tinha tido varicela. A sala onde a filha ensaiara para a peça de teatro da escola. O sótão onde guardavam os presentes de Natal. 

"Sabes que nunca te disse isso," disse Rosa quando chegaram ao quarto principal, "mas sempre gostei da forma como arrumava a cama. Cantos perfeitos, como no exército." 

"E eu sempre gostei da forma como deixavas o teu livro aberto na mesinha-de-cabeceira, mesmo quando adormecidas a meio da leitura. Fazia a casa parecer viva." 

Quando chegou a hora de partir, Rosa deixou a chave na mesa da cozinha. 

"Já não é minha," disse. 

"Podes ficar com ela," ofereceu Joaquim. "Como recordação." 

"Não. As recordações ficam na memória, não nas chaves." 

Seis meses depois, Marco viu Rosa e Joaquim no tribunal para a audiência final do inventário. Cumprimentaram-se com cordialidade, quase com carinho. Quando tudo terminou, Rosa aproximou-se de Marco. 

"Obrigada pelo conselho da chave," disse. "Vendemos a casa na semana passada." 

"E conseguiram despedir-se dela?" 

"Melhor do que isso," disse Joaquim, juntando-se à conversa. "Conseguimos despedir-nos um do outro como amigos. Quarenta e três anos merecem pelo menos isso." 

Saíram juntos do tribunal, talvez pela última vez, mas com a dignidade de quem fecha um capítulo sem destruir toda a história. 

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