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Ricardo Dinis Oliveira: "A ficção da série CSI tornou-se realidade"

Lucília Galha
Lucília Galha 02 de fevereiro de 2025 às 14:00
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Reconstruir cenas de crimes em modelos 3D ou usar um fio de cabelo para identificar o que uma pessoa consumiu há um ano já é possível. Mas resolver um crime em segundos ainda vai levar mais algum tempo, brinca o especialista forense, que é fundador da Associação Portuguesa de Ciências Forenses. Conheça o estado da arte das ciências forenses em Portugal.

O nome Horatio Caine não lhe passa com certeza despercebido. É normal, já que o universoCSI, Crime Sob Investigaçãoe, mais concretamente, o emblemático protagonista da versãoMiami(cuja imagem de marca eram os óculos de sol), esteve na série durante 10 anos, de 2002 a 2012. E a série como um todo teve 16 temporadas. O que talvez não saiba é que esta produção televisiva teve consequências positivas na vida real e, mais do que isso, também antecipou algumas das práticas e técnicas mais futuristas. O perito em Ciências Forenses, Ricardo Dinis Oliveira conversou com aSÁBADOsobre aquilo a que chama "o efeito CSI" e também sobre o estado de arte desta área em Portugal.  

Segundo o fundador da Associação Portuguesa de Ciências Forenses, que é também docente do Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU, a série foi muito importante para dar visibilidade a este trabalho. O especialista acabou de lançar um livro, chamado Ciências ou Ciência Forense? A transdisciplinaridade como pilar para a reformulação da atividade pericial em Portugal, que fala do percurso da área forense em Portugal e também aponta para o futuro, explicando como tecnologias como a inteligência artificial ou a nanotecnologia podem vir a revolucionar o trabalho que é feito neste âmbito.

Porque considera que Portugal está atrasado na área das Ciências Forenses?

Portugal despertou para esta realidade tarde. Até 2015, não havia licenciados na área, a primeira licenciatura só arrancou em 2012. Há um grande atraso de profissionalização desta área e, apesar dos avanços, continua a haver várias subespecialidades forenses para as quais não há ainda profissionais qualificados ou em número suficiente.

Isto significa que resolvemos crimes pior ou que somos menos eficientes?

Ambas. Não conseguimos ver o todo relativamente à prova pericial que coligimos, e por isso, somos também menos eficientes a resolver questões de índole criminal e outras.

O que trouxe de positivo o fenómeno CSI?

Despertou e trouxe para a Ciência Forense um número de estudantes e profissionais sem precedentes. Só em Portugal, o crescimento desta área nos últimos 25 anos superou o dos 100 anos de história precedentes. Também o número de artigos científicos cresceu de modo nunca visto. A Ciência Forense é uma das mais mediáticas da atualidade, mas é de sublinhar a enorme distância entre a ficção e a realidade.

Quanto do que é retratado na série é verdadeiro?

Em geral, as técnicas existem mas a forma romanceada e a velocidade como se obtêm resultados é ficção. Mas há um fenómeno curioso: coisas retratadas que eram ficção e acabaram por se tornar realidade. Por exemplo, a reconstrução 3D das cenas de crime. Quando a série começou, nos anos 2000, era ficção; hoje é realidade. Também já é possível analisar amostras cada vez mais complexas ou em quantidades muitíssimo pequenas. A análise retrospetiva é outra realidade. Usar-se cabelo para andar para trás no tempo é hoje possível – permitindo identificar o que uma pessoa consumiu (uma substância psicoativa ou uma droga da violação) há um ano. Isto porque o cabelo cresce em média 1 centímetro por mês. Se formos analisando cada centímetro individualmente, é possível fazer essa identificação.

E o que está só no domínio da ficção?

Uma grande diferença é que, nas séries, as pessoas que fazem investigação forense perseguem os criminosos. Ora, investigação criminal e produção de prova científica são áreas distintas. Outra é mesmo a rapidez com que resolvem um caso. Eles demoram 20 segundos e nós demoramos mais do que esse tempo só para abrir o Windows.

Como é que as técnicas forenses podem ser úteis para resolver crimes cibernéticos se não há provas físicas?

O cientista forense não se circunscreve ao laboratório. O que distingue a ciência forense é a particularidade de usar técnicas evoluídas para conseguir ver mais com menos vestígios. Há um conjunto de vestígios deixados pelas pessoas quando navegam nas plataformas digitais. Passwords de login, registos digitais, registos de acesso, rastreamento de IP, geolocalização. As perícias informáticas permitem rastrear a origem geográfica das drogas, descobrir possíveis redes de tráfico e desmantelá-las, porque as pessoas precisam de comunicar e os circuitos digitais facilitam o perpetrar do crime. As criptomoedas, por exemplo, podem ser usadas por estas redes e deixam um rasto digital.

De que forma é que a nanotecnologia contribui para que a investigação forense seja mais célere?

Por exemplo, no Instituto Universitário de Ciências da Saúde da CESPU, estamos a usar nanopartículas de ouro para a revelação de impressões digitais em locais de crime. Estas são altamente eficazes para a revelação em superfícies difíceis, como plástico, vidro, papel térmico. Também é possível analisar drogas ou fazer análise de solos no local dos crimes, porque se conseguiu ir diminuindo cada vez mais o tamanho dos equipamentos analíticos ao ponto de serem transportáveis.

Na toxicologia, que é uma área que tem crescido muito, é possível fazer testes de despistagem rápidos para saber qual a droga que está a ser apreendida. Em resumo, a nanotecnologia permite que o perito não fique perdido no terreno num conjunto imenso de vestígios que não se traduzem num real valor de prova.

A Inteligência Artificial já está a ser usada nesta área?  

A IA poderá ser uma ferramenta de consultadoria para vítimas, advogados, juízes. Uma espécie de assistente pessoal para a formação de futuros especialistas forenses. Pode ajudar-nos a analisar um conjunto imenso de dados, sobretudo em casos complexos, com múltiplas perícias, enormes volumes de informação processual. Pode reduzir a força braçal, permitindo uma pré-seleção da informação mais útil para ser depois analisada pelo ser humano.

O que é a fenotipagem genética e quais são as potencialidades?

É das ferramentas mais promissoras. Desde que sequenciámos o ADN percebeu-se que somos polimórficos (todos iguais, mas todos diferentes). A variabilidade da espécie humana está a ser utilizada para criar terapêuticas direcionadas. Ora, levando esta perspetiva para a Ciência Forense, ao se conhecerem as características pessoais e polimorfismos genéticos, começa a ser possível retratar o perfil biológico e traçar perfis descritivos dos suspeitos ou das vítimas. Conseguimos fazer a fenotipagem para verificar a cor dos olhos, do cabelo, da pele, ancestralidade e afinidade populacional, a sua estatura ou estrutura facial.

Isto já é feito em Portugal?

Esta técnica já faz parte de várias perícias no âmbito da genética forense, porque permite identificar agressores sexuais. É a prova praticamente inequívoca de que aquela pessoa esteve lá, porque o ADN é único e irrepetível – exceto em casos pontuais como gémeos homozigóticos.

Fale-me um pouco do seu percurso. Por que razão seguiu esta área?

Como sempre quis descobrir o desconhecido, queria ser astrónomo. As Ciências Forenses só chegaram durante o doutoramento, quando fui desafiado pela Professora Teresa Magalhães, maior especialista em avaliação dano corporal e violência doméstica do País, a trabalhar com ela. Deixei a área clínica e iniciei a vida de professor universitário. Comecei a debruçar-me sobre o primeiro caso em que foi acionada a Medicina Legal: o crime da Rua das Flores, no Porto. Foi uma investigação fascinante. Durante anos, esmiucei, procurei, encontrei até descendentes de alguns dos envolvidos. Entre muitas provas recolhidas, foi possível exumar o primeiro cadáver autopsiado no País e verificar que técnicas então usavam, e que erros foram cometidos.

Como é que aprendeu a não levar o trabalho para casa?

Não consigo. Nós, especialistas forenses, ficamos permanentemente a pensar em possíveis soluções, porque cada caso tem uma rotina analítica para desvendar a prova que é única e irrepetível. Para mim, os tempos mortos são inspiradores para encontrar a solução ou caminho para escarafunchar. Às vezes, arranjo soluções para casos quando estou a correr, portanto, quando estou livre e despreocupado. Diz-se que o exercício físico dá sanidade mental e a mim dá-me pistas muito importantes.

Qual foi a cena de crime que mais o impressionou?

O que mais me impressiona na ciência forense são os maus-tratos a crianças. Creio que não é necessário dizer mais.

O que é mais desafiante quando se chega a uma cena de crime e quais são as cenas de crime mais difíceis?   

Ter o olho treinado para o detalhe, esse é o maior desafio e que só fui descobrindo com a profissão. Este olho treinado é baseado no saber que vamos acumulando. As cenas de crime mais difíceis são sobretudo os desastres de massas, porque há um conjunto imenso de material biológico destruído, misturado, algum até já carbonizado. São os mais complexos para se fazer a perícia forense.

Por último, a que se deve o fascínio das pessoas pelos crimes?

Também já me questionei sobre isso. Deixo a resposta fisiológica: porque, eventualmente, este tipo de notícias gera e liberta dopamina. Este é o neurotransmissor do prazer. Talvez acompanhar estes casos enigmáticos e complexos faça ativar os circuitos neuronais da recompensa e do prazer.